Expresso Livros

Como o ser humano pode ser descrito em cinco livros

A guerra não é (só) o que se passa lá fora. Porque para a relatar, para lhe compreender os contornos, para sentir compaixão e até para nos revoltarmos, uma guerra tem de reverberar cá dentro. Essa passagem do fora para dentro está determinada pelo que somos, pela história pessoal que carregamos, pela geografia onde nascemos. Isso explica que uma guerra nos faça mais ‘mossa’ do que outra, nos inquiete e preocupe mais – ou menos. O livro “O Silêncio da Guerra”, do filósofo e investigador espanhol Antonio Monegal, lançado pela Objectiva, surge justamente de uma tentativa de “explorar o lugar da guerra na nossa cultura e memória coletiva” e de, ao fazê-lo, o autor se deparar com a recordação imediata e espontânea da Guerra Civil espanhola e das histórias que, sobre ela, lhe foram contadas pelo pai.

Quem não esteve na guerra escreve sobre a guerra, e a literatura deu disso muitas provas. “Há uma ligação entre o fascínio da criança e o tipo de obsessão que Borges tinha pelas espadas e guerras dos seus antepassados: admiração pela coragem, sobretudo daqueles que, como Borges, desfrutam de uma vida sedentária e pacífica e não são corajosos”, diz-nos Monegal corajosamente. Mas a questão de fundo é, para ele, mais simples: “O que é uma guerra para quem não viveu nenhuma na própria pele? De onde saem as imagens e os relatos que organizam o nosso conhecimento desse fenómeno?” Que papel tem a relação da imaginação com a memória neste processo de dar às guerras um nome e um significado, e qual a importância que nele assume ouvir quem tenha o ‘lugar da fala’ e seja um testemunho? E o que fazer quando da guerra só resta o silêncio dos que a viveram, por terem renunciado a esse lugar? Como reconstruir esse vazio? O que edificar nele? Qual o papel da literatura nessa construção?

O livro, diz Monegal, é sobre “a guerra representada”, sobre “a forma como falamos da guerra, escrevemos sobre ela ou a vemos, ou seja, sobre como podemos adequar a linguagem a uma experiência que lhe escapa”. Não é isso que andamos todos a fazer, por estes dias?

De outro espanhol, desta feita um brilhante paleontólogo, chega-nos o volume “O Nosso Corpo”, publicado pela Temas e Debates. Trata-se de Juan Luís Arsuaga, que analisa sete milhões de anos de evolução do corpo humano, não dissociada daquilo que nos diferencia em termos biológicos dos outros animais. “Se já ficamos maravilhados com a anatomia animal e humana, estática ou em ação, ainda mais impressionante é averiguarmos como evoluiu e de que modo se diferenciou das restantes criaturas, começando pelos nossos parentes mais próximos: os grandes símios”, diz-nos o cientista, propondo deste modo uma paleontologia e uma história natural do ‘nosso’ corpo, também aqui chamado de “máquina humana”.

Neste livro-viagem vertiginoso, Arsuaga cita Ryszard Kapuscinski para explicar como a anatomia humana, nos seus magníficos pormenores, está presente até quando vemos um jogo de futebol “comodamente sentados no sofá de casa”. E como o ato de nomear é crucial ao processo de conhecimento. Dizia o grande jornalista polaco no livro “Andanças de Heródoto”: “Descobri uma relação entre ter nome e existir, já que, sempre que regressava ao hotel, me dava conta de que, ao andar pela cidade, tinha visto apenas aquilo que sabia nomear, por exemplo, lembrava-me de uma acácia, mas não da árvore que crescia mesmo ao lado, por lhe desconhecer o nome. Em suma, compreendi que, quanto mais vocabulário reunisse, mais rapidamente – e com maior riqueza, na sua inabarcável diversidade – o mundo se me revelaria.”

E dentro do mundo estão eles, não só nós. E eles primeiro que nós. Em “Carta Aberta aos Animais e aos que os Amam”, editado pela Quetzal, o francês Frédéric Lenoir desnuda a ligação utilitária que o ser humano tem com outros seres vivos, traçando o caminho de uma ética que critique, assim modificando-o, o modelo antropocêntrico no qual vivemos. Professor na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, este filósofo nascido no Madagáscar - autor também de “O Milagre Espinosa” - escreve, para começar: “Queridos animais (não humanos): Que estranho deve parecer-vos o ser humano! Provavelmente, veem-nos como um animal entre tantos, mas imagino que se questionem sobre a natureza por vezes tão contraditória do nosso comportamento para convosco. Por que motivo, por exemplo, em certos locais do mundo respeitamos tanto os cães e os gatos e noutros os maltratamos? E se amamos tanto os animais de estimação e estamos dispostos a fazer mil sacrifícios por eles, como somos capazes de devorar com deleite bebés - cabritos, vitelos, leitões - arrancados às suas mães e conduzidos sem contemplação ao matadouro?

O exemplo citado mostra o tom coloquial do livro, que, porém, se densifica à medida que se avança nas páginas. Fala-se de história, de costumes, de predação, de religião. Do contexto em que surge a domesticação animal – e “não é por acaso que a palavra dinheiro (pecunia) deriva de pecus, gado. Ser rico significava ter gado” -, e do modo como essa indústria desenvolveu diversas e refinadas formas de crueldade. Da confusão (que nos protege) entre os animais e as coisas, ou da coisificação dos animais, que assenta na sua inferiorização, o que leva a que Lenoir cite Mark Twain ao dizer: “o homem é o único animal que cora; mas também é o único animal que tem motivos para corar.”

Outro filósofo mais célebre, também francês, teve por estes dias um livro a sair em Portugal. Jacques Rancière, de quem “As Viagens da Arte” surgiu pela mão da Orfeu Negro. Um volume pequeno e de bolso, mesmo adequado para levar em viagem, com seis textos escritos sob diferentes pretextos, como o 250º aniversário do nascimento de Hegel, um convite de uma sociedade de arquitetos ou uma exposição “sobre a arte no país dos sovietes”. Aquilo que os une, independentemente do seu motor, é girarem “em torno de um paradoxo constitutivo daquilo a que chamamos arte moderna e que considerei mais exato designar por ‘regime estético da arte’”, explica-nos, no Preâmbulo, o pensador. Numa palavra, ele quer analisar “os movimentos que levaram a arte para fora e além de si mesma”, num processo de singularização da arte em oposição ao universo mais hierárquico das ‘belas-artes’, que teve como correlato “a indeterminação das suas fronteiras”.

Sim, é um livro de filosofia e não destituído de uma certa dureza teórica, mas contém pelo meio um texto, intitulado “O que diz a palavra ‘música’”, sobre a cisão interna de uma arte que, ao tornar-se mais do que técnica e educação da alma, é privada do recurso de qualquer educação - o da palavra e o da representação. “Precisa então da assistência das palavras que dizem o que a língua dos sons diz sem falar. Contudo, fica envolvida nos conflitos que estas palavras geram ao mostrarem que há música no que não é música, música que não é arte, música que é menos ou mais que uma arte.”

E musical sem ser música será igualmente um romance antigo e que diz muito às minhas lembranças de adolescência: “A Trégua”, do imenso escritor e poeta uruguaio Mario Benedetti, de 1960, reeditado agora por cá pela Cavalo de Ferro. Situado em Montevideu, conta uma história de amor. Uma como tantas outras, transgressora, impossível, feliz e por isso infeliz. Não quero aqui narrá-la sob pena que o leitor a descarte – e vale mesmo a pena ler. “Ela dava-me a mão e não era preciso mais nada. Bastava-me para sentir que era bem recebido. Mais do que beijá-la, mais do que deitarmo-nos juntos, mais do que qualquer outra coisa, ela dava-me a mão e isso era amor.”

Soa até banal, como tudo ao qual se retira um contexto. Mas é uma boa forma de acabarmos esta Estante. Com uma banalidade amorosa. Tenham todos um bom fim de semana.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“As Flores do Mal”, de Charles Baudelaire (Assírio & Alvim)

Livro capital deste poeta francês, com tradução, textos e notas de Fernando Pinto do Amaral. “Na poesia de Baudelaire encontramos por vezes essa suspensão do real num ideal não diretamente presentificável e associado às imagens da beleza concebidas pelo poeta”, lemos no prefácio.

“Lá em Baixo no Vale”, de Paolo Cognetti (D. Quixote)

Romance mais recente do escritor italiano, também autor de “As Oito Montanhas”, que recebeu os prestigiados Prémio Strega e Médicis Étranger. “Era uma fêmea que não vira ainda o seu segundo inverno, nem outro mundo para lá da garagem à beira da regional. Sozinha, nas traseiras da oficina, brincava com um farrapo de pneu velho; mordia-o, atirava-o e corria para o ir buscar, quando se apercebeu de que tinha aparecido um cão cinzento, que a fitava”, lemos.

“Não Digas o que a Baiana Tem”, de Paulo Teixeira (Caminho)

Romance de um poeta, nascido em Moçambique, e que vive há uma década no Brasil. O trabalho com a linguagem vai beber a todas estas geografias para descrever o que se passa quando um encontro entre pessoas acontece.

NÃO-FICÇÃO

“Israel vs. Palestina”, de Ilan Pappé (Ideias de Ler)

Apresentado como “a mais breve história do conflito”, um livro do polémico historiador israelita radicado no Reino Unido. Uma cronologia que remonta a 1882, quando o território estava sob mandato otomano.

“Liberalismo”, de Juan Ramón Rallo (Presença)

“Os 10 princípios fundamentais da ordem política liberal” - é o subtítulo deste volume, escrito por um especialista em Direito e Economia que nos diz: “O problema é que, quando quase tudo é suscetível de ser qualificado como ‘liberalismo’, então, o termo ‘liberalismo’ passa a não significar absolutamente nada.”

“O Mundo Criou o Ocidente”, de Josephine Quinn (Temas e Debates)

Professora de História Antiga na Universidade de Oxford, esta investigadora diz na introdução deste livro monumental: “Atualmente, as civilizações são uma forma tão familiar de ver o mundo que podem parecer factos naturais, um modelo universal para a organização da sociedade humana. Na realidade, são uma invenção europeia relativamente recente, fazendo parte de um fenómeno a que chamo ‘pensamento civilizacional’”.

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