Auschwitz aconteceu há mais de 80 anos. Há 80 anos, o campo de concentração que se converteu no símbolo do extermínio nazi foi liberto pelo exército russo. Objeto de investigação em todo o mundo desde então, a todos nos diz respeito. Poucos anos depois de lá ter estado, o sobrevivente Primo Levi escreveu o romance-testemunho “Se Isto é um Homem” (D. Quixote), porque o maior medo de quem de lá saiu, dos poucos que de lá saíram vivos, era o de ‘cá fora’ contar a história e que ninguém acreditasse. Estudar Auschwitz é estudar a Alemanha nazi e as suas muitas e irrepetíveis particularidades, mas é também estudar o que define o genocídio, palavra aliás criada para descrever o carácter massivo e direcionado das matanças sobretudo de judeus e de ciganos durante a II Guerra Mundial. E continuar a falar de Auschwitz tem também, hoje, de servir para que nada remotamente semelhante ocorra em qualquer outro momento da História ou lugar do mundo e, se não for possível evitá-lo, para desmascarar, repudiar e combater o regresso a uma tal barbárie. Até porque o genocídio, segundo a ruandesa Scholastique Mukasonga (que escreveu “Inyenzi e as Baratas”, editado em 2024 pela Livros do Brasil, sobre a história da sua família assassinada no genocídio do Ruanda), “é por definição a existência de uma solução final que tem lugar após uma longa preparação”. E também por definição, é sempre imperfeito: há quem viva para o contar.
Se Auschwitz deve muito à indiferença e ao silêncio, um grande número de sobreviventes deve a vida a quem, intrépida e corajosamente, mudou o rumo da sua própria história para os ajudar. Todas as guerras e todos os genocídios têm pessoas destas, anónimas e benévolas, das quais não sabemos nada, que se arriscaram por acreditar no valor da vida humana. Uma delas chamou-se Lorenzo Perrone e a sua história é contada no livro “O Homem que Salvou Primo Levi”, da Guerra & Paz. Escrito pelo historiador Carlo Greppi, dá-nos a procura detetivesca empreendida para descobrir quem foi aquele pedreiro piemontês também prisioneiro no campo que, ao longo seis meses, forneceu a Primo Levi uma sopa diária que o salvou da desnutrição e da morte. Internado em Monowitz, ou Auschwitz III, ou Buna – um subcampo de trabalho criado para servir a IG Farben, nomeadamente na produção do gás mortal Zyklon B – o químico Levi recebeu o pobre complemento alimentar das mãos do pedreiro Perrone, que vivia fora da vedação da Buna. Levi compensou Perrone mandando arranjar os sapatos de couro deste e emprestando-lhes os seus enquanto o calçado estivesse no sapateiro.
“Primo Levi, talvez a maior testemunha do século XX, escreveu em várias ocasiões (...) que devia a Lorenzo não só a sua vida, mas algo mais”, conta-nos Carlo Greppi, nascido em Turim tal como o autor de “Se Isto é um Homem”, livro no qual este descreve assim o seu salvador: “Por muito sentido que possa haver em querer especificar as causas perante as quais precisamente a minha vida, entre milhares de outras equivalentes, conseguiu resistir à provação, creio dever a Lorenzo pelo facto de estar hoje vivo. Não tanto pela sua ajuda material, mas por me ter lembrado constantemente, pela sua presença, pela sua forma tão plana e fácil de ser bom, que ainda existia um mundo justo além do nosso, algo e alguém ainda puro e inteiro, não corrompido e não domesticado, alheio ao ódio e ao medo.”
Em “Os Que Sucumbem e os Que se Salvam” (D. Quixote), polémico ensaio escrito 40 anos depois do anterior no que representa um regresso ao universo de Auschwitz para o contar já com um olhar mais analítico (e crítico), Levi fala daquele jovem italiano como ele que estava a construir uma parede, e que se empenhava, apesar de tudo, apesar de ali estar a ser paulatinamente morto, em erigir paredes “direitas, sólidas, com tijolos bem entrelaçados e com toda a cal necessária. Não o fazia por obediência a ordens, mas por dignidade profissional”.
Hoje, com o fascismo em franca ascensão, impõe-se também a leitura de um outro livro, curto e sumarento, da autoria de Antonio Scurati – o autor dos dois volumes de “M”, a completa e extensíssima biografia romanceada de Benito Mussolini. Este é um pequeno volume intitulado “Fascismo e Populismo – Mussolini Hoje”, editado, como os outros, pela ASA, começa assim: “Chega um momento em que já não é lícito escondermo-nos. Quem quer contar a História - a que se escreve com maiúscula, a experiência coletiva dos povos no curso do tempo, o tempo que só se torna humano entrando numa narrativa – deve reconhecer-se como parte dela. Quem aspira a este género de narração deve declarar-se culpado.” Mas culpado de quê, questiona o leitor. Ele responde: “De ser um de muitos. De ser como todos. Como todos, envolvido, implicado, participante. De não poder – como ensinou o poeta – distinguir o dançarino da dança. De não poder nem querer fazê-lo. Ter perdido o sentido da História é causa de uma das grandes mutilações da nossa época, época sob muitos outros aspetos privilegiada.”
Para Scurati, neste texto que decorre de um discurso feito nos Encontros Internacionais de Genebra, em 2022, as nossas existências ocidentais “encolheram subitamente”, medidas pelo “metro curto do presente” e incapazes de nos sentirmos “atravessados por um tempo grande, que vem de longe e vai longe”. Ele refere-se ao facto de o seu país, e logo o seu país, ter elegido um governante de extrema-direita “cujos expoentes têm uma história pessoal, biográfica e política que provém do neofascismo”. Esta nova vaga de neofascistas tem perante si uma encruzilhada: ou se desprende cabalmente daquilo que o liga ao passado, ou “se prepara para rever toda a história de Itália tentando mudar a marca desse passado, para deitar sobre [eles] uma suposta nova luz que negue e ignore a sua escuridão”. E é fácil prever, diz este filósofo e escritor, que é a segunda via a dominar. “O fascismo não foi uma comédia, foi uma tragédia”, observa ele, acrescentando, qual luz vermelha a piscar mesmo à frente dos nossos olhos: “Não há nada de estúpido nisto. É um processo que reativa uma história de necessidades, estados de alma e sentimentos primários, experiências de vida ancestrais, mesmo pré-históricos. Se desprezarmos este atavismo com um esgar de condescendência, os estúpidos somos nós. Não há nisto nada de cómico ou divertido. Se nos rirmos disto, não riremos por muito tempo.”
Há poucas razões para rir, mas a reedição da obra de Clarice Lispector ao longo de 2025 pela Companhia das Letras merece vários sorrisos. Em janeiro saíram já dois títulos, “Perto do Coração Selvagem”, o primeiro romance da autora ucraniano-brasileira nascida com o nome de Chaya, e “Água Viva”, publicado em 1963. Estão para sair “Um Sopro de Vida”, de 1978, e o bastante anterior “A paixão Segundo G.H.”, livro belo e estranho que nos chega às mãos com posfácio de Carlos Mendes de Sousa, um dos especialistas mundiais da obra da escritora. A coleção conta também com outras colaborações importantes, de nomes como Susana Moreira Marques, Joana Matos Frias e Pedro Mexia.
“Ouve-me, ouve o silêncio. O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa”, diz Clarice em “Água Viva”. Ouçamos com atenção.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“A Invenção do Amor e outros poemas”, de Daniel Filipe (Presença)
Nos cem anos do nascimento do autor, a reedição daquele que foi o primeiro livro da coleção Forma, lançado em 1969. E que nos traz, entre outros, um poema lido por Mário Viegas e filmado por António Campos. E que nos diz: “Chamem as tropas aquarteladas na província / Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva / Todos Decrete-se a lei marcial com todas as suas / consequências / O perigo justifica-o Um homem e uma mulher / conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade”.
“As Crianças Adormecidas”, de Anthony Passeron (Livros do Brasil)
Um romance premiado, sobre o qual a escritora Annie Ernaux comentou ser “um texto tão poderoso, tão comovente, que permanece connosco muito após a sua leitura”.
“Conta-me Tudo”, de Elizabeth Strout (Alfaguara)
Neste romance da autora norte-americana ressurgem personagens de livros anteriores, como Olive Kitteridge e Lucy Barton.
NÃO-FICÇÃO
“Uma Leitura do Génesis”, de Marilynne Robinson (Relógio D’Água)
A autora de romances como “Gilead” e “Casa” apresenta aqui a sua interpretação do “Génesis”, o primeiro livro bíblico. “A Bíblia é uma teodiceia, uma meditação sobre o problema do mal. Sendo isto verdade, tem de tomar em consideração as coisas como elas são”, lemos no começo.
“O Imperador Vermelho”, de Michael Sheridan (Bertrand)
“Xi Jinping e a nova China” é o subtítulo deste livro escrito por um jornalista especializado na história do país e que foi aí correspondente, além de autor, em 2021, de “The Gate od China”, uma história de Hong Kong.
“História da Medicina Portuguesa durante a Expansão”, de Germano de Sousa (Temas & Debates)
Volume de 2013 agora reeditado, assinado pelo conhecido patologista clínico, lê-se na Introdução: “Sou de opinião que a chamada pequena história, a história do quotidiano, a história de uma ciência ou de um determinado setor da sociedade, torna mais percetível e esclarece melhor a grande História.”
Por enquanto é tudo. Se tiver sugestões ou comentários, pode enviá-los para lleiderfarb@impresa.expresso.pt