Expresso Livros

Falemos da estreita relação entre a gripe e a leitura

Uma semana com gripe faz muito pela leitura. É a conclusão a que chego após sete dias de total marasmo físico. Com o corpo em greve de tudo e vários focos de revolta, restam os olhos para comunicar com o mundo. De repente, na impossibilidade de enfrentar qualquer empreendimento mais sério, encontramo-nos a saltitar pelos livros, não por obrigação, mas por puro prazer (como nas férias). A gripe é uma espécie de férias da mente.

Aproveitei para agarrar num volume que há muito me observava do seu canto, de um autor que muito admiro, o colombiano Héctor Abad Faciolince. O título do novo livro é poético e irónico, e um potenciador da curiosidade. “Salvo o Meu Coração, Tudo Está Bem”, lançado agora pela Alfaguara, conta a história de um homem, o padre Luis Córdoba, que está à espera de ser submetido a um transplante cardíaco. Como a fraca saúde lhe impede de estar sozinho enquanto aguarda, hospeda-se numa casa onde vivem duas mulheres e os seus três filhos. O que se segue é o relato de uma partilha profunda que leva o sacerdote a repensar as suas escolhas de vida. Ele está à espera de um coração, mas o seu coração trai-o. O amor trai-o.

Nascido em Medellín, na Colômbia, o autor tornou-se conhecido entre nós graças a um outro romance, “Somos o Esquecimento que Seremos”, publicado por cá em 2023, mas originalmente de 2006. Antes de ser escritor, Faciolince estudou medicina, filosofia e jornalismo, foi expulso da Universidade Pontifícia Bolivariana por ter escrito um artigo considerado irreverente sobre o Papa, formou-se em Literaturas Modernas em Turim, viu os seus pais a serem assassinados pelos paramilitares colombianos em 1987, salvando-se ele próprio por milagre. Foi Prémio Nacional de Jornalismo Simón Bolívar em duas oportunidades, ao mesmo tempo que os seus livros iam sendo lidos e também premiados, e traduzidos numa dezena de línguas.

O ano passado, quando se noticiou a morte da escritora ucraniana Victoria Amelina, após a queda de um míssil russo num restaurante em Kramatorsk, a leste da Ucrânia, ele estava lá, naquele jantar em que um grupo de escritores colombianos homenageava a ucraniana, que – como fez outro autor desse país, Andrei Kurkov – com a invasão do país largou a literatura e se envolveu na documentação dos crimes de guerra russos. Faciolince salvou-se de novo, e narrou essa experiência. “De repente estávamos no inferno (...). A primeira coisa que me veio à cabeça foi - fomos mortos. E também senti um grande pesar e culpa em relação à minha mulher e aos meus filhos”, contou ao jornal “Folha de São Paulo”.

E por falar de infernos aos que é necessário reagir, outro livro que a gripe me fez cair nas mãos foi “Autodefesa - Uma Filosofia da Violência”, de Elsa Dorlin, editado pela Antígona. Trata-se de um ensaio sobre os grupos e movimentos políticos que, em vários e diferentes contextos, tiveram de recorrer a métodos violentos para se protegerem, escrito por uma investigadora francesa que se debruça justamente sobre as relações entre a violência, o género e a raça, e que, doutorada pela Sorbonne, é hoje professora de Filosofia Política e Contemporânea na Universidade de Toulouse. “Eu proponho aqui percorrer uma história constelar da autodefesa. Traçar esse itinerário não consistiu em vasculhar por entre os exemplos mais ilustrativos, mas antes em procurar uma memória das lutas da qual o corpo dos dominados constitui o principal arquivo: os saberes e culturas sincréticos da autodefesa escrava, as práxis de autodefesa feminista, as técnicas de combate elaboradas na Europa de Leste pelas organizações judias contra os pogroms...”, explica a autora, lançando a pergunta capital deste livro: “No dia-a-dia, que faz a violência às nossas vidas, aos nossos corpos e aos nossos músculos? E eles, por sua vez, que podem simultaneamente fazer e não fazer na e pela violência?” Sim, o livro fala do corpo. Do “influxo nervoso” e muscular que obriga o corpo à defesa da violência com violência.

Como os livros estão sempre ligados por um fio invisível e a maioria das vezes despercebido, chegamos a um volume escrito pela mais conhecida psicóloga clínica da Hungria, Noémi Orvos-Tóth. Em “Destino Herdado”, que saiu pela Lua de Papel, fala-se de um tipo de violência mais oculta, menos percetível, mas capaz de condicionar a nossa passagem pelo planeta. Fala-se de hereditariedade e transmissão dos traumas de geração em geração, um mal-estar que nos perpassa e que pode vir de tão longe que lhe perdemos o rasto. Não é um objeto literário, mas uma ferramenta de compreensão dos mecanismos que moldam as nossas ações e emoções quotidianas, muitas delas condicionadas por um lastro que nem sequer é nosso, mas daqueles que nos antecederam. O que Orvos-Tóth nos diz é que existem processos terapêuticos que nos ajudam a sair dessa roda dentada. Que, com alguma paciência, não temos de ser devorados pelo passado dos nossos pais e avós.

O próprio passado como objeto de literatura e de autoficção surge no volume “Meus Desacontecimentos” (Companhia das Letras), da brasileira Eliane Brum. Repórter premiada – em 2021 recebeu o Prémio Maria Moors Cabot, atribuído pela Universidade de Columbia -, é colunista no “El País” e publica regularmente em títulos como o “The New York Times” ou o “The Guardian”, mudou-se para Altamira, na Amazónia, para documentar os atentados àquilo que considera ser “o centro do mundo”, e já escreveu vários livros e um romance, sendo este pequeno livro o primeiro a ser lançado em Portugal. “Como contadora de histórias reais, a pergunta que me move é como cada um inventa uma vida. Como cada um cria sentido para os dias, quase nu e com tão pouco. Como cada um se arranca do silêncio para virar narrativa. Como cada um habita-se", começa.

A obra está composta de várias narrativas breves, todas autobiográficas. Mas com o tom e a textura da ficção. “Dizem que apanhei apenas uma vez do meu pai. Tinha três ou quatro anos. Ele atravessara a noite escrevendo um discurso. Na manhã seguinte, eu peguei uma tesoura e esquartejei o papel, as palavras, as letras, em pedaços tão pequenos que não puderam ser colados. Nem lidos. Dizem que os meus gritos foram ouvidos de longe. Eu não me lembro. Talvez esse tenha sido o momento em que me tornei escritora”, lemos.

Há sempre uma hora H. Todos podemos questionar-nos sobre qual é a que nos fez, a que nos tornou, a que nos construiu. Aproveitando que a gripe ainda perdura, que tal fazermos esse exercício?

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Vermelho Delicado”, de Teresa Veiga (Tinta-da-China)

“Do fundo da escuridão até à verde luz brilhante do sol. Do nada até todas as coisas. De cada coisa até ao esquecimento”, lemos num dos contos deste volume que confirma o lugar insubstituível desta escritora no contexto das letras portuguesas.

“A Cegueira do Rio”, de Mia Couto (Caminho)

Novo romance do autor moçambicano, que nos revela desde logo que “factos e personagens deste livro foram inspirados em eventos reais ocorridos numa e noutra margem do rio Rovuma, que separa Moçambique da Tanzânia”.

“Canção para Ninar Menino Grande”, de Conceição Evaristo (Orfeu Negro)

Primeiro romance publicado em Portugal de uma das mais importantes vozes literárias negras do Brasil, hoje com 77 anos. “Creio mesmo que não devemos desprezar as minúcias de um relato, se quisermos nos aproximar o mais possível da história em sua quase totalidade. Principalmente se for um caso de amor”, assim começa.

NÃO-FICÇÃO

“História Global da Literatura Portuguesa”, dirigida por Annabela Rita, Isabel Ponce de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real (Temas e Debates)

Um livro com mais de 100 artigos por vários autores que nasceu para ser uma referência, um farol que pretende que “a literatura portuguesa [seja] inserida no novo paradigma de uma cartografia globalizante”.

“Sob o Signo de Saturno”, de Margot e Rudolf Wittkower (Edições 70)

Um volume extenso sobre o carácter e o comportamento dos artistas da antiguidade à Revolução Francesa, enriquecido com profusas ilustrações, escrito por um casal de Berlim, ele historiador da arte, ela designer de interiores e estudiosa da arquitetura.

“La Fabbrica – Uma história de gelados”, de Lisa Schroder (La Fabbrica)

Livrinho que nos conta a história de uma fábrica de gelados que três italianos fundaram na Lisboa nos anos 1930 e que existe até hoje. Que trouxeram para cá as máquinas e os utensílios, já empenhados em se estabelecerem na cidade e dar-lhe alguma coisa do seu saber, vindos de uma aldeia dos Alpes chamada Borca di Cadore.

E é tudo por hoje. Se tiver sugestões ou comentários, pode enviá-los para lleiderfarb@expresso.impresa.pt

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