Kafka morreu há cem anos, mas é um dos autores mais influentes e atuantes no presente. Cada um tem o ‘seu’ Kafka, e o leitor terá certamente o seu, pessoalíssimo e universal como o são sempre estas apropriações. Agustina Bessa-Luís, segundo ela mesma “leitora impaciente da obra de Kafka”, fixou no papel um conjunto de reflexões em torno do escritor checo ou, como refere Alberto Luís na introdução - a que ele chama “advertência” - “um breve quadro de meditações literárias sobre a situação do homem kafkiano face ao mundo e a ele próprio”.
“Kafkiana” de Agustina, acabado de sair pela Relógio D’Água, é um relato do encontro, um encontro entre dois escritores. Começa por evocar uma das cartas a Milena, em que Kafka narra como tentou oferecer a exorbitante quantia de dez kreuzers a uma mendiga e, para não lhe dar a nota de uma vez, o que poderia escandalizar a visada, trocou-a por moedas de um kreuzer e foi dando voltas à praça a fim de o dinheiro lhe ser dado aos poucos. “A generosidade exagerada, como todo gesto exagerado, pode significar arrogância, e Kafka, criança como era, teve o talento de compreender isso”, escreve Agustina.
Ela identifica-se com a mendiga de Praga: “Ele tem um tesouro para me dar; oferece esse tesouro com uma delicadeza fantástica e astuciosa, mas o coração humano, necessitado de palavras mais consoladoras do que profundas, resiste a compreender a esmola laboriosa do pensador. Sem paciência, a paciência que falou à mendiga de Praga, não se chega a receber toda a riqueza de Kafka.” Noutro fragmento, lemos: “O caso de Kafka está longe de ser esclarecido, porque não pertence à disciplina psicanalítica nem à intriga dos costumes, nem sequer ao tom burguês das opiniões. É um caso subterrâneo - cuja conclusão é a da obscuridade.”
Rainer Maria Rilke nasceu, como Kafka, em Praga, mas era oito anos mais velho do que ele. Kafka cursava ainda a escola primária quando Rilke deixou Praga, em 1890. Distantes em estilo e percursos de vida, o segundo era já um poeta consagrado na altura em que o primeiro publicou o primeiro texto. Mas parece que Rilke, em 1922, terá avisado o editor Kurt Wolff: “Por favor, certifique-se de que me avisa sempre que qualquer coisa de Franz Kafka venha a público. Deixe-me assegurar-lhe que não sou de modo algum o seu pior leitor.” E mais tarde: “Nunca li uma linha deste autor que não me preocupasse ou surpreendesse da forma mais estranha.”
“O Livro das Imagens”, lançado pela Assírio & Alvim, foi escrito entre 1902 e 1906. Em Portugal, a sua obra tem vindo a ser sistematicamente traduzida por Maria Teresa Dias Furtado, que no prefácio a este livro nos resume o empreendimento: trata-se de um conjunto de 45 poemas e um ciclo intitulado ‘As Vozes’, escritos depois de duas viagens à Rússia, país que “significa para o poeta não só a vivência da solidariedade para ele nova e de uma Pátria (espiritual), mas também um primeiro encontro com a paisagem, que inclui uma grande viagem pelo rio Volga.” O próprio Rilke terá explicado ao seu editor: “Neste livro não há nada que não seja importante e que não seja festivo. Cada palavra integrada no séquito do verso deve mover-se e a mais pequena não deve ficar atrás da maior em dignidade exterior e beleza.”
Há nelas a transição para a maturidade, e são estas as que lemos mal abrimos o livro:
“Quem quer que sejas: de noite para fora sai
do teu quarto, onde tudo sabes e desejas;
a tua casa é a última antes da lonjura, que sobressai:
quem quer que sejas.
Com os teus olhos, que cansados mal
se libertam da soleira gasta e real,
ergues lentamente uma árvore escura
e coloca-la frente ao céu, esguia, sozinha, pura.
E fizeste o mundo. E ele é grande, a emergir
tal uma palavra que ainda no silêncio amadurece.
E quando a tua vontade o sentido esclarece,
deixam-no teus olhos ternamente cair...”
Abrir um livro tem destas surpresas. Como ler as primeiras páginas de “Nada”, de Carmen Laforet, publicado pela Cavalo de Ferro, e encontrar, além de um estrondoso romance, um prefácio escrito em 2004 por Mario Vargas Llosa. “Suspeitava essa rapariga de vinte e poucos anos que era Carmen Laforet quando escreveu o seu primeiro romance, que retratava nele de maneira tão implacável quanto lúcida uma sociedade brutalizada pela falta de liberdade, pela censura, pelos preconceitos, pela falsa modéstia e pelo desamparo e quem na história da sua comovedora criatura, Andrea, essa menina ingénua à qual na história ‘roubam um beijo’ e escandalizam, exemplificavam um caso de desesperada e heroica resistência à opressão?, questionava o Nobel peruano.
“Nada” é a chegada à Barcelona franquista de uma jovem de 18 anos, em inícios dos anos 1940, com o propósito de estudar Letras na universidade e de unir-se ao que resta da sua família da classe média possível naquele tempo - “uma delgada membrana que se encolhe”, diz Vargas Llosa. Andrea, assim se chama a personagem, vai deparar-se com “uma moral pacata até ao inumano, que aliena homens e mulheres e os empobrece”. Tudo o que é vivido pela primeira vez acontece submerso nesse caldo de vontade e perturbação. Não era necessário o “The Guardian” ter destacado “a admirável mestria” da obra – distinguida com o Prémio Nadal em 1945 – para sabermos, logo que se abre o livro, estar perante uma peça literária rara e poderosa.
Quando Andrea chega a Barcelona, à meia-noite, e sente o encanto das luzes tristes da estação, conta-nos: “Comecei a seguir – uma gota na corrente – o rumo da massa humana que, carregada de malas, se dirigia para a saída. A minha bagagem era uma grande mala muito pesada – porque estava quase cheia de livros – e eu mesma a transportava, com toda a força da minha juventude e da minha ansiosa expectativa.” A força de uma juventude que não se deixa encarcerar é a dela, e por uns momentos é também a nossa. Nessa primeira imagem, ela usa um casaco velho, e pensamos: se calhar era outono. Mas, afinal, era verão.
Sim, chegou o verão.
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“Cama de Gato”, de Kurt Vonnegut (Alfaguara)
Uma sátira da Guerra Fria, feita de humor ácido, com um jornalista como figura central, em busca de decifrar a catástrofe de Hiroxima. “Chamem-me Jonas. Os meus pais chamaram. Enfim, mais ou menos. Chamaram-me John”, começa o romance.
“A Luz que Eu Buscava Intensa”, de Luís Amorim de Sousa (Tinta-da-China)
Coletânea de poemas do autor nascido em 1937, em Angola, que dirigiu o serviço noticioso português da BBC em Londres, que às tantas escreve: “o que fazer de mim / nos dias verdadeiros”.
“Os Rostos”, de Tove Ditlevsen (D. Quixote)
Da autora da “Trilogia de Copenhaga”, que Patti Smith qualificou de “monumental”, um romance que conta a história de Lise, uma escritora de livros infantis que vê o seu mundo a ruir.
NÃO-FICÇÃO
“Sobre Franz Kafka”, de Max Brod (Relógio D’Água)
Três grandes ensaios do amigo e executor testamentário do autor checo – e graças ao qual conhecemos a sua obra -, o primeiro dos quais uma biografia iluminadora, concisa e completa.
“À Descoberta das Ilhas Virgens”, de José Pedro Castanheira (Tinta-da-China)
“Diário de bordo de uma viagem à Madeira a fugir das tempestades e das orcas”, assim se autodescreve este pequeno volume escrito pelo jornalista que, no mesmo tom, também redigiu “Volta aos Açores em Quinze Dias”.
“História da Palestina Moderna”, de Ilan Pappe (Caminho)
Reedição pertinente de um livro escrito por um historiador polémico, que conta a história de dois povos e duas identidades nacionais a viverem no mesmo espaço.