Expresso Livros

E por fim, então, morreu a morte, a difícil morte

Quando um historiador de 95 anos que escreve muito bem vai à gaveta dos textos esquecidos para recordar quem foi, só pode vir ao mundo um livro luminoso. É o caso de “Crónicas e Discursos”, de António Borges Coelho, agora lançado pela Caminho. São punhados de história pessoal e coletiva que uma pena sensível transformou em testemunhos de um tempo já passado. Assim, o nome dos capítulos nos situa no mapa de ação de um homem que esteve nove anos preso durante o Estado Novo e que, enquanto progredia na academia para se tornar professor catedrático, foi escrevendo em jornais e revistas, e falando, oferecendo-nos hoje o resultado dessas intervenções.

O que se inicia com reportagens – e encontramo-lo a descrever a Damaia em 1968, um bairro pobre com 40 mil habitantes, para “A Capital”; ou uma viagem a Salisbury, capital da Rodésia que hoje é o Zimbabué, narrada no mesmo ano naquele jornal – prossegue com outras publicações sobre assuntos muito diversos, demonstração da heterodoxia do seu pensamento e curiosidade. Sobre o ‘seu’ Trás-os-Montes: “O que se diz de Trás-os-Montes poderia dizer-se de todo o povo do interior português. Que amealhaste nestes cinco séculos, velho conquistador de impérios? A mortalha preta das tuas mulheres, a fraga cada vez mais osso, o quintal dia a dia esgarçado e repartido.” Sobre a invasão do Iraque, em 2003, para o “Le Monde Diplomatique” (e as suas palavras permanecem tão atuais): “Ouço os sinos de Hemingway que dobram. Pelos mortos, não na terra negra e fria dos versos de António Nobre, mas nas areias e nos escombros das casas. Dobram pela arrogância das armas e o calar da diplomacia e do direito.”

Da Relógio D’Água, chega-nos outro tesouro intemporal, um texto que contém frases como esta: “O infortúnio obriga-nos a conhecer como real aquilo que não acreditamos ser possível.” É “A Experiência de Deus”, título dado a um conjunto de escritos que Simone Weil incorporou no seus “Cadernos de Marselha”, entre 1941 e 1942, estava ela em trânsito com os pais, de Paris para aquela cidade do sul de França, a fugir da ocupação nazi. A filósofa que trabalhou na indústria automóvel para compreender o ponto de vista do operariado e que em 1936 se alistou nas Brigadas Internacionais para lutar em Espanha ao lado dos republicanos, em maio de 1942 conseguiria emigrar para Nova Iorque e depois para Londres. Mas o ano passado em Marselha, onde desaguaram muitos intelectuais e resistentes, resultou frutífero, colaborando sob o pseudónimo de Emile Novis (anagrama do seu nome) com “Les Cahiers du Sud”, um jornal fundado por escritores como ela refugiados.

Judia laica, Simone foi um exemplo de abertura e mergulhou na Bíblia por inteiro, antigo e novo testamento, à procura das fontes do cristianismo. Estudou profundamente o livro sagrado, questionando-o e fazendo anotações. Daí surge este volume de conteúdo aforístico e fragmentário, feito de considerações sobre Deus e a religião, de pontes com o mundo clássico grego e com outras esferas da Filosofia – Kant, Espinosa. Porém, o que aparece é a tentativa de compreender de que falamos quando falamos de Deus, o que essa palavra evoca ou invoca, qual a natureza da fé. “A fé. Acreditar que nada do que podemos alcançar é Deus. Fé negativa. Mas também, acreditar que aquilo que não conseguimos alcançar é mais real do que aquilo que conseguimos. Que o nosso poder de alcançar não é o critério da realidade, mas, pelo contrário, é enganador. Acreditar, enfim, que o inatingível mesmo assim aparece, escondido.”

Justamente sobre um ateu desiludido fala o livro Niels Lyhne, do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, recém-publicado pela Antígona. O que dizer de um romance cuja última frase é: “E por fim, então, morreu a morte, a difícil morte.”? Jacobsen escreveu-o em 1880, cinco anos antes de morrer de tuberculose e depois de traduzir para a sua língua “A Origem das Espécies” de Darwin – ele que estudou botânica e biologia, e era um naturalista e ateu muito admirado por Strindberg e por Ibsen. “Niels Lyhne”, por sua vez, além de ser o livro de cabeceira de Rainer Maria Rilke – que o cita em “Cartas a um Jovem Poeta”, notando que este livro e a Bíblia são os únicos que vale a pena ler -, foi também um texto importante para Kafka, Joyce e Thomas Mann.

“'Niels Lyhne’, que Stefan Zweig definia como o Werther da sua geração, fascinou durante decénios, mas sobretudo por volta do fim do século, leitores e escritores de toda a Europa”, comenta Claudio Magris no posfácio. Para o escritor italiano, o livro é “a história de um ateu, o protagonista, que vive coerentemente a sua convicção resistindo à tentação de a abandonar no fim da vida, como acontece aos outros”. Porém, tal não acontece sem sofrimento. Lynhe, escreve Jacobsen, “sentia-se imensamente só. Não tinha família nem amigos que lhe fossem chegados ao coração. Mas havia sobre ele uma solidão maior do que essa. (...) Não sabia o que haveria de fazer consigo e com as suas qualidades. É bem certo que tinha talento, só que não conseguia usá-lo sem dar com o caminho certo, e sentia-se como um pintor sem mãos. Como invejava os outros, fossem pequenos ou grandes, não importa por onde singrassem na existência, sempre conseguiam maneira de se agarrarem a alguma coisa!”

E é assim que ele morre a difícil morte, sem “um Deus a quem se lastimar e a quem suplicar”. Sem se agarrar a nada.

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Um Lugar Luminoso para Gente Sombria”, de Mariana Enriquez (Quetzal)

Depois do romance “A Nossa Parte da Noite”, a escritora argentina volta ao terror com estas doze histórias em que mistura o monstruoso, o surreal e o sobrenatural. “Primeiro, creio eu, tenho de descrever o bairro. Porque no bairro está a minha casa, e na casa está a minha mãe. Uma coisa não se percebe sem a outra. Não se percebe porque é que não me vou embora. Porque posso ir-me embora. Posso ir-me embora amanhã”, lemos logo no começo.

“O Caderno Proibido”, de Alba de Céspedes (Alfaguara)

Um romance situado na Roma de 1950, escrito por uma autora italiana nascida em Roma, em 1911, e sobre a qual Annie Ernaux disse: “Ler Alba de Céspedes foi como aceder a um universo desconhecido: classes sociais, sentimentos, atmosferas.”

“Os Filhos de Nihil”, de Pedro M. Fernandes (Guerra & Paz)

Romance que venceu este ano o Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal, escrito por um jovem investigador na área da Inteligência Artificial, e que começa assim: “O primeiro filho de Nihil foi um Neandertal. As nossas cordas vocais não seriam capazes de pronunciar o seu nome, mas este soava a algo semelhante a ‘Jo-haan’. De modo a simplificar, daqui em diante o nome será João.”

NÃO-FICÇÃO

“Racismo Woke”, de John McWhorter (Tinta-da-China)

“Como uma nova religião está a dividir a sociedade” – este é o subtítulo de um livro que “não é de meras queixas”. “Escrevo isto instigado visceralmente pelo facto de, na ideologia em questão, brancos que se intitulam nossos salvadores fazerem os negros parecerem os seres humanos mais idiotas, fracos e comodistas da história da nossa espécie.”

“Liberdade e Igualdade”, de Daniel Chandler (Presença)

Obra extensa que Thomas Piketty considera “extraordinária” e “imperdível”, e um dos melhores livros do ano para o “Finantial Times”, subordina as suas páginas à pergunta: “O que será uma sociedade justa?” O autor é um economista e filósofo que parte da tese de John Rawls para concluir que existe uma forma de sair da crise social e política que atualmente vivemos.

Colditz - Os Prisioneiros do Castelo”, de Ben Macintyre (D. Quixote)

A verdadeira história dos oficiais britânicos raptados pelos nazis durante a II Guerra Mundial, investigada pelo historiador e colunista do “The Times”, sobre a qual o “Daily Express” desafia: “Pense no John Le Carré no melhor do seu início de carreira – mas escrevendo sobre a realidade.”

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