Expresso Livros

Não somos, nunca fomos, não seremos estátuas de sal

Ao contrário do que se diz no Genesis, olhar para trás nem sempre nos converte em estátuas de sal. Nessa cena bíblica, a mulher de Lot, ao fugir da cidade corrupta de Sodoma, faz o gesto de virar a cabeça, desobedecendo Deus. Simbolicamente, ela ‘dava-se ao luxo’ de olhar para o passado, para a destruição e para a morte quando tinha a vida, a fertilidade e o futuro pela frente. Esse simples movimento paralisou-a para sempre. Matou-a. O texto do primeiro livro da Bíblia é belíssimo e incontornável na literatura (pelo menos) ocidental, e dolorosa a imagem desta mulher sem nome que se agarra ao que deixou, como acontece aos seres humanos de todos os tempos. Talvez a lição desta imagem seja a contrária da que tentou transmitir: talvez o passado seja o que nos agarra, a memória o que nos salva, e qualquer construção só possa existir tendo como base as ruínas do que um dia foi. Nesse sentido, o passado seria não estagnação, mas movimento puro, impulso primordial.

“Alguém Falou sobre Nós”, o novo ensaio da espanhola Irene Vallejo, acabado de sair pela Bertrand, versa inteiro sobre esta questão. No início, coloca-a assim: “Recordemos o difícil começo. Para o recém-nascido que uma vez fomos, até as habilidades mais simples requeriam esforços esgotantes. A bicicleta da nossa infância atirou-nos muitas vezes para o chão antes de conseguirmos domesticá-la. Quando nos apaixonámos pela primeira vez, a timidez paralisava os gestos e as palavras, e faltava-nos coragem sequer para nos aproximarmos do outro. Ao iniciarmos um novo trabalho, as menores tarefas pareciam encostas íngremes ou ladeiras escorregadias.” A também autora do maravilhoso “O Infinito num Junco”, de 2020, compila neste novo livro fragmentos – na verdade, textos curtos escritos para um jornal - que ‘constelam’ em torno da ideia de que a Antiguidade Clássica tem, no nosso pensamento e cultura, uma presença sempre atualizada. Assim, logo os títulos demonstram como a linguagem está impregnada da matéria invisível desse berço, “amor platónico”, “sem meias-medidas", “inveja cega” ou “embriaguez do poder”, e este último encabeça um texto sobre a ‘hybris’, a palavra grega que significa ‘arrogância’ e ‘excesso’. “Os antigos diriam que os governantes começam a ser perigosos quando sentem repulsa em reconhecer a culpa”, lemos.

Não apetece ler mais?

A mesma avidez infantil nos invade quando pegamos em “Empúsio”, o novo romance da polaca Olga Tokarczuk, editado pela Cavalo de Ferro e traduzido, como os anteriores livros da escritora, por Teresa Fernandes Swiatkiewicz. Romance “de terror naturopático”, como é apresentado, possui um trecho do “Livro do Desassossego” de Fernando Pessoa como epígrafe - “todos os dias acontecem no mundo coisas que não são explicáveis pelas leis que conhecemos das coisas” - e narra a viagem e o internamento de um jovem estudante de Lviv num sanatório termal situado em Görbersdorf, na Baixa Silésia, para travar o avanço de uma tuberculose. Numa versão tokarczukiana da “Montanha Mágica” de Thomas Mann, ele irá encontrar outros doentes, vindos de locais como Viena, Breslau ou Berlim, e com eles manterá conversas filosóficas sobre a natureza e o mundo, a política, Deus e, sobretudo, a natureza e os direitos da mulher. Porém, lá fora, como sempre nesta imensa escritora, há uma floresta que também é personagem. E nela ocorreram e ocorrem coisas terríveis.

“Não há necessidade de acrescentar o que quer que seja ao mundo; o mundo é como o vemos. É como é. Há leis que podem ser descritas. O seu número é finito. Algumas delas, ainda não as conhecemos. Deus existe e criou o mundo. Os seres humanos são, por natureza, canalhas; logo, precisam de ser controlados e de aprender constantemente”, diz-nos um parágrafo.

“Ver é o mais importante, afirmara Thilo certa vez, e não é exclusivamente uma questão de ver com os olhos que temos; nós temos de ver igualmente com os outros sentidos, só que esta ideia ainda não foi comprovada. Era assim que se dizia. Fecha os olhos e observa. Vês o mesmo quarto, certo? Vês onde está o equipamento e vês as suas formas. Vou apagar a luz, porque já não é necessária”, avisa-nos noutro.

A mulher de Lot morre ao (não) escapar. Mas haverá hoje um lugar para onde fugir? Que planeta sem espaços seguros estamos a engendrar? Ou já seremos algo similar a estátuas inertes e incapazes de imprimir no mundo qualquer mudança? Em “Tasmânia”, o italiano Paolo Giordano formula estas perguntas. Editado agora pela D. Quixote e com tradução de Vasco Gato, o romance tem como protagonista um jornalista e escritor que assiste, em 2015, à cimeira da ONU sobre a emergência climática, enquanto atravessa uma crise pessoal. E tem um lugar, o único no planeta, que poderia constituir um refúgio em caso de catástrofe. “Se fosse obrigado a salvar-me [reparem nesse ‘se fosse obrigado’], escolheria a Tasmânia.” Esse sítio é o que dá nome ao livro, um país real e simbólico e em redor do qual se estrutura toda uma reflexão sobre o estado do mundo visto como um organismo em que tudo se encontra intimamente ligado. “Todos nós temos uma mente gradualista: se as coisas sempre foram de uma certa maneira, por que haveríamos de mudar logo agora? A humanidade habita o mesmo planeta há duzentos mil anos, será possível que tudo tenha de vir abaixo logo quando eu estou vivo?

O que é isto de estarmos onde estamos, quando estamos? “Falta por aqui uma grande razão / uma razão que não seja só uma palavra / ou um coração / ou um meneio de cabeças após o regozijo / ou um risco na mão / ou um cão / ou um braço para a história / da imaginação (…)”, escreveu Mário Cesariny, que este ano teria completado os cem, na “Antologia” da Assírio & Alvim, e lançada ao mesmo tempo que uma outra, organizada logo após o 25 de abril de 1974 e intitulada “Poetas do Amor, da Revolta à Náusea”. Com edição de Fernando Cabral Martins, é ele quem nos diz: “A sátira [em Cesariny] desenvolve essa feição pragmática, tornando-se uma dimensão decisiva, partilhada por outros companheiros dos primeiros passos surrealistas, de uma geração que nasce e cresce num país sem saída.

Será Portugal a nossa Tasmânia? Ou não?

OUTROS LIVROS POR ARRUMAR

FICÇÃO

“Perturbação”, de Thomas Bernhard (Relógio d’Água)

“Cresce a sensação de que [este autor] é o romancista mais original e concentrado a escrever em alemão”, disse George Steiner sobre Bernhard. Com tradução de Leopoldina Almeida, chega-nos o terceiro romance do escritor austríaco, publicado em 1967.

“Memórias Encontradas numa Banheira”, de Stanislaw Lem (Antígona)

Humor, sátira, distopia passada no ano 3149, um único documento que subsiste após uma praga que dá cabo de todos os registos escritos do mundo, um funcionário perdido nos labirintos burocráticos que tem uma missão secreta que desconhece, num país que o vigia de modo constante.

Anna Kerénina”, de Lev Tolstói (Porto Editora)

Trata-se da tradução deste clássico russo feita por José Saramago, quem no prólogo escreveu: “Escrever é traduzir. Sempre o será. (…) O trabalho de quem traduz consistirá, portanto, em passar a outro idioma (em princípio, o seu próprio) aquilo que na obra e no idioma originais já havia sido ‘tradução’, isto é, uma determinada perceção de uma realidade social, histórica, ideológica e cultural que não é a do tradutor.”

“A Metamorfose”, de Franz Kafka (Livros do Brasil)

Esta edição, mais uma, traduzida do alemão por Álvaro Gonçalves, da pequena e intensa novela do autor checo sobre a transformação em inseto (um escaravelho, uma barata? Há teses de doutoramento escritas sobre esta indecisão) do funcionário Gregor Samsa reclama ser “conforme a edição crítica” da obra.

NÃO-FICÇÃO

"História da Nação Portuguesa”, de Yves Léonard (Planeta)

O historiador francês traça um percurso pela história do país que há anos dedica a sua investigação - acabou também de lançar por cá a biografia de Salazar, pelas Edições 70 -, começando com uma citação de Pessoa: “As nações são mistérios, cada uma é todo o mundo a sós.”

“Istambul”, de Bettany Hughes (Crítica)

Um livro bom de ler sobre a cidade-charneira do mundo, que foi capital de três grandes impérios. A autora baseia-se em novas descobertas arqueológicas para fazer a biografia desta metrópole com oito mil anos de história.

“Sobre os Sonhos”, de Sigmund Freud (Crisântemo)

Depois de escrever “A Interpretação dos Sonhos”, o fundador da psicanálise quis elaborar desse ensaio uma versão mais curta, que publicou em 1901. É uma boa forma de iniciar-se nesta teoria freudiana capital para toda a investigação posterior sobre o tema.

“Histórias de Jazz”, de Leonel R. Santos (Guerra & Paz)

Um livro da autoria do crítico de jazz que hoje escreve para o JL, com capa ilustrada por Nuno Saraiva, que conta 14 histórias que o jazz inspirou.

“A Cultura como Enigma”, de Guilherme d’Oliveira Martins (Gradiva)

Crónicas e ensaios que sublinham a importância das humanidades, que ligam cultura e ciência, e onde se lê: “Uma biblioteca é a melhor metáfora do mundo. É um labirinto cujos caminhos se fazem de perguntas e respostas. E há um misterioso fio de Ariadne que nos leva em cada estante, em cada livro, em cada palavra, à descoberta dos enigmas que nos permitem vislumbrar os contornos dos sentidos que a humanidade reveste.”

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