Em 1969, o João Abel Manta cartoonista — que também era arquiteto, pintor e ilustrador — publica, na sua habitual colaboração com o “Diário de Lisboa”, o único cartoon em que o desenho cede o lugar à palavra. Escreve ele, em letra escolar, não fosse alguém não perceber: “O abaixo assinado, artista plástico de profissão e português de nacionalidade, vem solicitar autorização para, em liberdade, preencher semanalmente este retângulo. Lembra, em abono do seu pedido, que só essa liberdade tornou possível a existência desse importante sector das Artes Plásticas que se chama Caricatura.” A este cartoon, intitulado “Requerimento”, seguiu-se outro, “Requerimento indeferido”, porque censurado — uma mão ligada incapaz de pegar na caneta, que apenas deixa na página aleatórias manchas de tinta.
Antes do 25 de abril de 1974, o desenho e a palavra eram empreitadas perigosas. E isto torna a reedição dos Cartoons de João Abel Manta (Tinta-da-China) um dos acontecimentos mais importantes dos últimos tempos. Trata-se da primeira vez que o livro fica acessível após a sua edição original, em dezembro de 1975. Há 48 anos. Volume grosso, pesado, tremendamente lúcido, contém trabalhos de 1969 a 1992. Além do óbvio interesse que todos os desenhos, sem exceção, apresentam — quantos Abel Manta há dentro de Abel Manta? —, são os iniciais aqueles que suscitam maior perplexidade. Admira-se a habilidade de Manta em conseguir ‘filtrar’ conteúdos pela malha apertada da censura: a lembrança da guerra do Vietnam em tempos de extrema vigilância ideológica devido à ‘nossa’ (e já gasta) guerra colonial, assim como a representação de dois homens negros de punhos erguidos exibindo a luva do Black Power, gesto que lhes valeu o afastamento do desporto pelo presidente do Comité Olímpico Internacional. Ainda mais emocionam os cartoons que não viram publicação. Num deles, a censura é uma velha de nariz adunco — por cima da qual pende uma ratazana enforcada — a encarnar uma professora ao pé dos alunos, cada um representando um órgão da imprensa, tanto mais sorridente quanto mais colado ao regime. Noutros, Portugal vomita um “excesso de condimentos histórico-patrióticos” ou se afunda no mar pelo “peso dos anos mortos”.
Hoje, 49 anos passados desde a revolução dos cravos, o perigo não desapareceu: mudou de feições. Ainda o peso dos anos mortos nos aflige. Graças à democracia, tudo é possível. Até um partido de extrema-direita convocar, no 25 de abril, uma manifestação em frente ao Parlamento onde ganharam assento nas urnas, e fazer nessa data, repito, em frente ao Parlamento onde ganharam assento nas urnas, a saudação nazi. Este é o respeito pela democracia que advogam. Usam-na para a destruir. Vale a pena citar João Luís Barreto Guimarães num dos poemas que fazem parte da sua “Poesia Reunida” (Quetzal): “rimo-nos destes breves momentos de ilusão / deste azul suave deste verde brando mas vamos passando / os dias a sonhar (até ver) rimo-nos até ver até ver”.
Ter os olhos abertos e ver é um dos papéis da literatura, tão crucial como tê-los fechados e imaginar. E há aqueles escritores que abarcam ambos, e que ainda por cima escrevem em português. É o caso de Itamar Vieira Júnior, cujo segundo romance acabou de chegar às livrarias. Chama-se “Salvar o Fogo” (D. Quixote) e vem na esteira do anterior, o maravilhoso (e duríssimo) “Torto Arado”, que venceu os prémios LeYa, o Jabuti e o Oceanos. Tal como aquele, o novo livro tem a Bahía como cenário, mais exatamente um povoado remoto onde vive e de onde foge um rapaz de nome Moisés. Ele foge de um destino — o de ser padre —, mas nem de todos os destinos é possível fugir. Em “A Doença como Metáfora”, agora reeditado pela Quetzal, Susan Sontag analisa, no final dos anos 1970, como o cancro se tornou a ‘nova tuberculose’, e como ambas se tornaram chão para a construção de edifícios metafóricos que nos impede e protege de olhá-las de frente. “Embora o modo como a mistificação de uma doença se processa tenha lugar num quadro de expectativas renovadas, a doença propriamente dita (a tuberculose antes, o cancro hoje) desperta um tipo de terrores completamente obsoletos. Qualquer doença que seja vista como um mistério e seja profundamente temida será considerada moralmente, se não literalmente, contagiosa.”
Sontag segue a definição de metáfora proposta por Aristóteles na sua “Poética”, ou seja, “dar a uma coisa o nome que pertence a outra coisa”. Esta operação da linguagem é incontornável e tão antiga como a filosofia e a poesia. Editada pela Assírio & Alvim, com organização de Fernando Cabral Martins e colaboração de Manuele Masini, a poesia de Luiza Neto Jorge foi agora novamente reunida e difere das duas antologias anteriormente publicadas por incluir textos inéditos de jornais e revistas, além de poemas há muito esquecidos. Como não podia deixar de ser, do livro “Poesia”, 384 páginas de pura iluminação, consta aquele famoso poema que ensina a cair.
O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede
até à queda vinda
da lenta volúpia de cair,
quando a face atinge o solo
numa curva delgada subtil
uma vénia a ninguém de especial
ou especialmente a nós uma homenagem
póstuma.
E é postumamente que, por cá, ficamos a conhecer a argentina Aurora Venturini, cujo romance “As Primas”, que a tornou conhecida além das fronteiras do seu país, está agora a ser lançado pela Alfaguara. Venturini escreveu-o aos 85 anos — o espanhol Enrique Vila-Matas qualificou-o de “perversamente genial” — e com ele venceu um prémio que, tarde ma non troppo, a catapultou. Não que ela não tivesse feito já um caminho: licenciada em Filosofia e em Educação, o próprio Jorge Luís Borges entregou-lhe uma distinção pelo livro de poesia “El Solitario”, em 1948. Após o golpe de 1955, exilou-se em Paris, onde viveu um quarto de seculo e privou com figuras como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Eugène Ionesco, Albert Camus e Juliette Gréco. Era uma mulher peculiar no seu tempo, que admitia detestar a cozinha e as tarefas domésticas, e que escreveu perto de 30 livros. Somente o último teve a repercussão necessária para a tornar imortal. Morreu em 2015, aos 92 anos, em Buenos Aires.
Uma noite, ao segundo prato do jantar, o paleontólogo Juan Luis Arsuaga e o escritor Juan José Millás conversavam sobre tudo e sobre nada, o vinho na mesa já escasso, o robalo no ponto, até chegarem ao tema da morte e, consequentemente, o da eternidade. Para um rato-toupeira-nu, explicava Arsuaga, a eternidade são as três décadas que a vida costuma durar, em contraste com a do rato doméstico, que vive apenas três anos. Mas o que é a eternidade para um ser humano? De onde vem este conceito? E para onde vai?
A morte só é pensável enquanto fim da eternidade para a qual estamos irremediavelmente lançados. Vários jantares e várias viagens de carro em conjunto depois, davam ao mundo um livro, “A Morte Contada por um Sapiens a um Neanderthal” (Presença) — volume que se segue e complementa “A Vida Contada por um Sapiens a um Neanderthal”, lançado há um ano. Ambos leem-se de um fôlego. Fala-se de veados, de abutres, de elefantes, de biologia evolutiva, de ADN, dos medos que invadem a velhice, de Oscar Wilde, de Darwin, de psicanálise.
No final, cita-se Amin Maalouf: “Se a morte não fosse inevitável, o homem teria desperdiçado a sua vida toda a evitá-la. Não teria arriscado nem tentado, empreendido, inventado ou construído fosse o que fosse. A vida teria sido uma convalescença perpétua. Sim, meus irmãos, demos graças a Deus por nos ter dado o dom da morte para que a vida tenha um sentido; a noite, para que o dia tenha um sentido; o silêncio, para que a palavra tenha um sentido; a doença, para que a saúde tenha um sentido; a guerra, para que a paz tenha um sentido. Agradeçamos-lhe por nos ter dado o cansaço e a tristeza, para que o descanso e a alegria tenham um sentido.”
OUTROS LIVROS POR ARRUMAR
FICÇÃO
“O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson (Penguin Clássicos)
Escrito em 1886, esta reedição tem introdução de Alberto Manguel, que avisa: “Todos os escritores encarnam um mistério.”
“As Boas Intenções”, de Augusto Abelaira (Minotauro)
Terceiro romance do autor, publicado em 1963, gira em torno de um trio de personagens e das relações políticas e amorosas entre elas.
“Até ao Fim da Terra”, de João Pedro Marques (Porto Editora)
Romance histórico, leva-nos até o século XIX, quando o exército de Massena invade Portugal.
“A Neta”, de Bernhard Schlink (ASA)
Do autor de “O Leitor”, um dos nomes mais relevantes da literatura alemã, este livro foi definido como um grande romance sobre a Alemanha.
“O Fedorento”, de Rosemary Tonks (Guerra & Paz)
Romance de culto da década de 1960, agora traduzido pela primeira vez por cá, centra-se no paradoxo das relações amorosas.
“Lucy à Beira Mar”, de Elizabeth Strout (Alfaguara)
O “The Guardian” definiu-o como o livro “mais subtil e comovente” da autora britânica. Uma história de amor em plena pandemia.
NÃO-FICÇÃO
“História Global da Alimentação Portuguesa”, dir. de José Eduardo Franco (Temas e Debates)
Grande volume sobre o que comemos, antes e hoje: de onde vieram os produtos que fazem parte da nossa alimentação e para onde foram, e que transformações sofreram ao longo do tempo.
“A Guerra Incomportável”, de Germano Almeida (Prime Books)
Ou, como diz o subtítulo, “como Putin mudou o nosso espaço de segurança e liberdade e condiciona o nosso futuro.”
“À Sombra das Vozes”, de José Viale Moutinho (Compahia das Ilhas)
Tríptico de poesia em prosa ou, como diz o próprio autor, “uma viragem parcial na minha escrita poética ”.
“Última Vida”, de Fernando Pinto do Amaral (D. Quixote)
Coleção de poemas dividida em três partes: sonetos, uma ‘carta-de-não-amor em sete estâncias’, e poemas em vésperas de um “fim do mundo” anunciado.
“Tribuna Negra — A história do movimento negro em Portugal 1911-1933 ”, de Cristina Roldão, José Augusto Pereira e Pedro Varela
No período em que o livro se concentra, houve no país um movimento negro que combateu o racismo e se bateu por direitos nos países colonizados. Esta é a sua história.
“A Filosofia Contemporânea — Figuras e Movimentos”, de Sofia Miguens (Edições 70)
De uma autora que é ela própria filósofa e professora universitária, o livro apresenta-se como um “guia acessível que se move com o mesmo à vontade entre as tradições analítica e continental e a filosofia contemporânea”.
“Sobre a Liberdade”, de John Stuart Mill (Ideias de Ler)
Clássico publicado em 1859, é um dos textos mais relevantes sobre a liberdade individual e política.