Expresso Energia

A transição a perder gás?

Ministra Graça Carvalho e o CEO da EDP, Miguel Stilwell, inauguram eletrolisador na central do Carregado

O corte de fita da passada terça-feira na central termoelétrica do Ribatejo foi, como costumam ser todos os cortes de fita, rodeado de sorrisos. Está pronto o projeto de hidrogénio que dá o primeiro passo na descarbonização da central de ciclo combinado da EDP no Carregado. Nem a fita era verde (a cor que muitas elétricas têm vindo a imprimir aos seus planos de negócio), nem o hidrogénio tem cor: afinal, para já, a EDP alimentará os eletrolisadores com energia da rede. A aprendizagem que daí decorra trará, com certeza, lições para o futuro. Mas no presente confrontamo-nos com desafios essenciais numa Europa pouco competitiva, lenta e fortemente dependente do exterior. A energia pode ser um importante fator de competitividade, mas a transição parece estar a perder algum gás, não obstante haver diversos projetos, muitas ideias e abundante capital no mercado. A digitalização crescente das nossas vidas requer mais eletrões. Estaremos a tratar de lhe dar resposta, nas infraestruturas energéticas, com o ritmo suficiente?

O projeto da termoelétrica do Ribatejo é de demonstração. Mas quão eficiente é afinal usar eletricidade para produzir hidrogénio que possa ser queimado para voltar a gerar eletricidade? Num contexto em que as centrais de ciclo combinado a gás são tidas como peça essencial da segurança energética do país, capazes de responder com flexibilidade às flutuações e desvios de oferta e procura na rede elétrica, faz sentido considerar, a longo prazo, a continuidade da sua existência. E a substituição do gás natural (importado) por gases renováveis (produzidos localmente) pode fazer sentido. Mas essa solução técnica concorrerá com outras opções já à disposição dos gestores da rede, desde as centrais hidroelétricas às baterias, passando pelos contratos de flexibilidade (como os deste projeto da E-Redes).

A cerimónia que assinalou o arranque do hidrogénio verde no Carregado espelha alguns dos desafios que o mundo da energia enfrenta. Um pequeno projeto com um eletrolisador de pouco mais de 1 megawatt (MW) levou mais de cinco anos desde o momento em que foi anunciado pela EDP até ao corte de fita para anunciar ao país o difícil parto da primeira molécula. O bebé nasceu de boa saúde, com alguns milhões de euros de investimento (e apoio público). Por que leva tanto tempo pôr em marcha uma experiência tecnológica que era vista, desde o início, como uma promissora solução para os desafios de descarbonização que Portugal enfrenta?

No mesmo dia em que a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, andava pelo Ribatejo entre moléculas de hidrogénio, o secretário de Estado da Energia, Jean Barroca, passava pelo Convento do Beato para lançar a conferência “European Battery Raw Materials Conference”, fórum por onde passaram temas críticos para o futuro do Velho Continente. O armazenamento é um dos capítulos mais fascinantes que teremos para ler na história energética da Europa e não são poucas as questões que daí decorrem.

Teremos nas baterias de lítio uma curva de redução de custos tão acentuada como tivemos nos painéis fotovoltaicos na última década e meia? Que capacidade terá a Europa para fabricar os equipamentos de que precisará (vale muito a pena, aliás, ler o artigo "Terras raras: a derrota estratégica da Europa", de Rodrigo Tavares)? Pode Portugal ter um papel relevante nessa aventura, agora que em Boticas se vai percebendo a riqueza do subsolo? Haverá assim tanto mercado para soluções de armazenamento se o desenvolvimento dos pequenos reatores nucleares se afirmar como um instrumento economicamente viável para garantir continuidade e flexibilidade às redes elétricas?

Muitas destas questões vão sendo discutidas em fóruns setoriais, entre especialistas e conhecedores, mas enfrentam, mais tarde ou mais cedo, um ambiente político complexo, difícil, marcado, com frequência, pelo medo de agir e de tomar decisões mal compreendidas pela sociedade civil.

Num artigo imprescindível publicado há dias pela Bloomberg NEF, Michael Liebreich regressava ao tema do pragmatismo climático. Provocador, como é habitual, Liebreich deixava várias recomendações. “Deixemos de nos ajoelhar perante Greta Thunberg e comecemos a preocupar-nos com as faturas de energia”, escreveu. O argumento é que a política climática deve ser revista, reformulada, livre de ameaças de cenários assustadores e de uma ditadura climática, para procurar uma nova forma de gerir a transição, mais inclusiva, que tenha em conta as preocupações das comunidades, os seus interesses e uma noção de justiça e harmonia.

Advogando também uma revisão de metas, Liebreich constata o evidente: o ótimo é inimigo do bom. O foco deve estar em descarbonizar 90% do consumo rapidamente e a um custo comportável, e a melhor forma de o fazer será tornar a eletricidade mais limpa e “eletrificar quase tudo”. E quanto ao restante consumo, que será provavelmente bem mais caro para descarbonizar? Não é uma questão que precisemos de responder já hoje, aponta o especialista.

Mas nem toda a descarbonização passará pela eletrificação. Esta quinta-feira a Goldenergy anunciou ter assinado contratos para o fornecimento de biometano (certificado com garantias de origem) às cerâmicas Recer e Aleluia. Na quarta-feira a Rega Energy também revelou ter assinado com a Certeca Indústrias Cerâmicas um acordo de fornecimento de biometano durante 10 anos, permitindo àquela empresa substituir 20% do seu consumo de gás natural por uma alternativa verde.

O caminho da transição energética decorrerá a diferentes velocidades. Como mostram os últimos números da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), nos primeiros sete meses deste ano a capacidade fotovoltaica em Portugal cresceu 626 megawatts (MW) face ao registo de final de 2024. É uma média de 89 MW por mês, muito distante do ritmo de 148 MW mensais de instalações fotovoltaicas do ano passado. O país tem recurso, território e investidores disponíveis para fazer mais (e melhor), aproveitando de forma inteligente a oportunidade de descarbonizar a economia e diminuir a sua dependência do exterior.

A saída, anunciada há dias, do presidente da EMER – Estrutura de Missão para o Licenciamento de Projetos de Energias Renováveis, Hugo Carvalho, é mais um sinal pouco animador sobre as perspetivas de aceleração da transição energética no país. Visita-se o site da entidade e a última notícia é de abril. Na sua página no LinkedIn a EMER anuncia, no entanto, uma terceira edição do encontro “Posto de Transformação”, a 25 de setembro, com “350 vagas para os mais ágeis”, para sessões de formação. Que resultados tiveram as primeiras duas edições? Acelerámos efetivamente os procedimentos?

Agilidade é o que parece ser fulcral conseguir entre alguns dos atores e decisores da transição. O contexto é complexo: projetos que demoram anos para operacionalizar, concursos que derrapam, longos licenciamentos e listas de condicionantes de proporções quase bíblicas. Tornar a nossa matriz energética mais sustentável precisa de um pouco mais de vontade e velocidade.

DESCODIFICADOR

Hidrogénio verde. É um gás resultante de um processo de eletrólise da água, separando o oxigénio e o hidrogénio. Se esse processo consumir eletricidade renovável, o hidrogénio é considerado verde. Mas tem as mesmas aplicações do “hidrogénio cinzento” (obtido a partir do gás natural, com uma reação que separa o carbono do hidrogénio), do “castanho” (a partir do carvão) e do “rosa” (com eletrólise, mas assente em energia nuclear). Pode ser usado como substituto do gás natural (e já há experiências com a incorporação de até 20% nas redes de gás), sendo apontado como possível solução para descarbonizar sectores onde a eletrificação de consumos é mais difícil (como os do aço, do cimento e do transporte pesado). Também pode ser usado para produzir amoníaco verde, descarbonizando a produção de fertilizantes.



E VALE A PENA LER

O think tank Ember publicou esta semana uma nova análise, intitulada “The Electrotech Revolution”. Aponta uma nova etapa de desenvolvimento, filha da digitalização, e capaz de tirar partido da eletrificação de base renovável para oferecer soluções competitivas para ajudar a retirar os combustíveis fósseis da equação energética do planeta. O documento pode ser lido aqui.

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