A cimeira da Organização de Cooperação de Xangai acontece há quase um quarto de século mas a última edição, que decorreu há dias em Tianjin, assumiu uma importância redobrada. Depois de largos meses de uma guerra comercial ancorada em Washington DC e espoletada pelo apetite insaciável de Donald Trump de engrandecer a América (e ensandecer o resto do mundo), o encontro asiático evidenciou o espírito de amizade, mas sobretudo de interdependência, de potências como a China, a Índia e a Rússia. Uma tríade de atores políticos globais com um papel central no mapa-mundo da energia. Alguns têm-na para dar, outros para vender. Usam-na como meio para atingir um fim: crescer economicamente, reforçando o seu poder, ou contrapoder, face às lideranças ocidentais. Portugal não é alheio a essas dinâmicas: compramos gás aos Estados Unidos e à Rússia, painéis solares e carros elétricos à China. E sobre a Índia veremos o que o futuro nos reserva.
Esta semana a Reuters publicava uma interessante análise, assinada por Ka Sing Chan, sustentando que o presidente chinês, Xi Jinping, terá saído da cimeira de Tianjin com uma vitória importante: a afirmação do “electro-yuan”. Pequim está a construir, por via do seu poderio na eletrificação de base renovável, uma posição de influência relevante na Ásia, que criará fluxos de energia verde assentes na moeda chinesa, da mesma forma que durante décadas os Estados Unidos conseguiram afirmar o dólar como divisa de referência no mercado petrolífero.
As fotografias que nos últimos dias nos chegaram do outro lado do mundo mostram o clima de proximidade que foi construído entre Xi Jinping, Vladimir Putin e Narendra Modi, com recados para Trump (pode ler aqui uma síntese) e a confirmação da vontade chinesa de reforçar, na Ásia, a cooperação na energia, bem como na tecnologia e na inteligência artificial. Note-se o caráter crítico da energia nesse leque de prioridades de Xi Jinping: é bem conhecido o desafio que a expansão da IA coloca pelo volume de eletricidade que os centros de dados consomem. A construção de uma nova ordem mundial centrada na Ásia será indissociável da ideia de que aquela região poderá reforçar de modo relevante o seu papel nos mercados energéticos globais.
Vale a pena lembrar o disparo que a cotação do gás natural liquefeito (GNL) sofreu em 2012 na ressaca do acidente na central nuclear de Fukushima em 2011: o Japão reforçou as compras de gás no mercado internacional, foi capaz de “desviar” navios que seguiam rumo a outros destinos, e acabou por encarecer as compras de GNL de meio mundo. A Europa, amplamente dependente desse combustível, pagou caro. Sem imaginar que a fatura que então suportava seria uma fração apenas do enorme fardo que teria de carregar uma década depois, quando a Rússia invadiu a Ucrânia.
A Europa vê-se hoje, como ontem, com extrema dificuldade em garantir às suas indústrias um futuro próspero de energia abundante e barata. Para tentar salvar a indústria automóvel, Bruxelas deu um desconto generoso aos bens industriais americanos, numa decisão celebrada em Washington com lavagante. Trump tem a faca, o queijo e o marisco na mão, e ainda muito gás para vender, com a certeza de que essa energia será adquirida pela indústria europeia a preços mais altos do que os que são pagos pelas fábricas americanas.
Num artigo publicado esta semana no Expresso o consultor de assuntos europeus Henrique Burnay resumia em poucas palavras o que está a acontecer: “A China tenta fazer amigos, os Estados Unidos não se importam de perder os que tinham, e a Europa não consegue fazer novos”.
Na matriz energética chinesa, olhar para a forma como o país gera a sua eletricidade evidencia a forte dependência do carvão (conforme o gráfico abaixo, que recuperamos de uma anterior edição desta newsletter). Mas as necessidades energéticas vão muito além disso.
E a China precisa de facto de reforçar parcerias e aprofundar relações bilaterais. Importa muito mais energia do que exporta, e cada vez mais ano após ano: as importações energéticas de Pequim dispararam 984% entre 2000 e 2023, segundo a Agência Internacional de Energia (AIE). E as importações líquidas (ou seja, o que a China adquire ao exterior deduzido dos pequenos volumes exportados) representavam em 2023 uma fatia de 24% do consumo energético total do país. Ou seja, a China consegue com os seus próprios recursos suprir três quartos da energia que vai consumindo, mas continua a precisar do exterior para alimentar a sua indústria (que cobre 48% do consumo de energia final, muito mais que os 16% dos transportes e os 14% das famílias).
A China é, aliás, o maior comprador mundial de energia (sob as formas de petróleo, gás natural e carvão), o que lhe confere um importante poder negocial junto das economias exportadoras de combustíveis fósseis. Dados da AIE indicam que a China importa anualmente quase o dobro do volume importado pela Índia (terceiro comprador do mundo) e mais 70% do que os Estados Unidos da América (segundo grande importador energético a nível global).
Uma análise publicada em agosto pelo CREA – Centre for Research on Energy and Clean Air, um centro de investigação finlandês focado em temas ambientais, sublinha como o bloco asiático se tornou particularmente relevante para a Rússia depois da invasão da Ucrânia: entre o final de 2022 e julho deste ano, a China comprou 44% de todas as exportações russas de carvão e a Índia adquiriu outros 20%; no petróleo a China foi o destino de 47% das exportações russas desde 2022, logo seguida da Índia, com 38% (figurando a União Europeia com somente 6%). Só no gás natural liquefeito (GNL), entre as grandes fontes de energia, é que a Rússia manteve como destino-chave a UE, compradora de 51% do que a Rússia exportou desde 2022, com a China a assumir uma quota de 21% e o Japão 18%.
Segundo dados da AIE, a Índia, apesar de ligeiramente mais populosa, consome menos de um terço da energia da China. Mas está mais dependente do exterior, já que as importações líquidas cobrem 36% das necessidades energéticas do mercado indiano. Fortemente dependente do carvão e do petróleo, a Índia tem hoje quotas residuais de fontes de eletricidade como a hídrica, a energia solar e a eólica e a nuclear. Mas o crescimento da população e da economia introduzem uma pressão adicional para reforçar a matriz energética, em particular com fontes mais sustentáveis e capazes de melhorar a qualidade do ar que se respira no país.
Seja pela oferta de petróleo com desconto, ou pelo acesso contínuo a gás natural, os laços entre Rússia, Índia e China estão a fortalecer-se. Na recente passagem de Vladimir Putin pela China, Moscovo e Pequim assinaram um memorando para a construção de um novo gasoduto que atravessará a Sibéria, mais do que duplicando o fluxo atual de gás por via terrestre. O novo gasoduto terá uma capacidade para transportar anualmente 50 mil milhões de metros cúbicos (50 BCM), muito próximo dos 55 BCM para os quais foi desenhado o Nord Stream 2, pelo qual a Rússia previa incrementar as suas vendas de gás para a Europa. Depois veio uma guerra. E uma nova transformação na dinâmica de poder e de fluxos energéticos à escala global. E enquanto Portugal se mantiver como uma economia energeticamente dependente do exterior isso também condicionará, de alguma forma, o que cada um de nós pagará para atestar um carro de combustível, para recarregar uma bateria ou para aquecer a água do banho. Não se esqueça: isto anda tudo ligado.
DESCODIFICADOR
GNL. É a sigla em português para gás natural liquefeito (em inglês, LNG, de liquefied natural gas), um dos recursos energéticos mais relevantes a nível global, por permitir, com grande flexibilidade, transportar gás entre produtores e consumidores em pontos distantes do globo, reduzindo a dependência dos gasodutos terrestres. O GNL, todavia, é substancialmente mais caro do que o custo do gás para entrega por via terrestre próximo do local de produção, uma vez que a liquefação, o transporte por navio e a regaseificação têm importantes consumos de energia e encarecem este combustível. Para ser transportado por via marítima o gás natural é liquefeito, a temperaturas negativas de 162 graus centígrados, comprimindo o seu volume em 600 vezes.
E VALE A PENA LER
A Ember Climate publicou em agosto uma nova análise sobre a importância das baterias para os mercados de eletricidade da Índia, sublinhando que estes equipamentos mantêm a capacidade de proporcionar aos investidores retornos significativos. Considerando a dimensão do mercado indiano, a criação de economias de escala na fileira das tecnologias de armazenamento é uma oportunidade a seguir com atenção por qualquer país que considere as baterias como peça essencial do seu sistema elétrico.
A newsletter termina aqui, e a próxima edição chegará aos leitores dentro de duas semanas, a 18 de setembro. Se tiver algum comentário, sugestão ou reparo, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Até breve!