Expresso Energia

Sol na eira, mas não no meu quintal

getty images

Os dias que correm são preciosos para refletirmos sobre que energia queremos, quando, como e a que preço. Para muitos dos que vão lendo estas linhas, essas condições não são propriamente opções. Somos uma sociedade repleta de consumidores passivos, amarrados a um conjunto de ideias feitas: “a fatura é caríssima” (nota: nem todas são iguais), “mudar de fornecedor dá muito trabalho” (não dá) e “o mercado é decidido e comandado pelos mesmos de sempre” (não é bem assim e nos últimos anos é notória a diversificação de agentes e o ganho de poder do consumidor que é também produtor).

O apagão de 28 de abril é um fenómeno de estudo relevante: sobre esse incidente escrevemos aqui ainda hoje, depois de no início da semana termos dado conta das acusações à Red Eléctrica, e de há uns dias termos também explorado no Expresso cinco ideias-chave sobre um colapso ibérico sem precedentes). Mas o blackout é já uma memória distante para boa parte dos portugueses, num país que discute pouco a energia, resultando num quadro de reflexão genericamente pobre. Nuns dias apela-se ao combustível barato. Noutros combate-se as alterações climáticas. Aqui e ali defende-se a aposta em fontes endógenas, mas minerar lítio não pode ser. Pugna-se por eletricidade acessível para todos. Mas linhas de alta tensão é que não.

É curioso que há um ano, a 27 de junho de 2024, esta mesma newsletter tenha seguido para os estimados leitores com o título “No meu quintal”. O que hoje temos é uma derivação do que então escrevemos. E para quem se interessa pelo tema da transição energética esta circunstância será preocupante o suficiente para não embarcar de férias totalmente descansado. Avançámos de forma substancial no desbloqueio dos elementos que vinham travando a aceleração dessa transição?

Como afirmou recentemente Ernest Moniz ao Expresso, nesta entrevista, “temos um longo caminho para descarbonizar a economia”. Somente um quarto do nosso consumo final de energia é eletricidade, uma forma de consumo onde é teoricamente fácil concretizar a descarbonização. Nos restantes três quartos a estrada é longa e sinuosa. Mas mesmo na eletrificação de consumos os obstáculos são assinaláveis.

O conflito no Médio Oriente é um bom exemplo da vulnerabilidade energética que enfrentamos com a nossa dependência do mercado das matérias-primas. As guerras e as tensões geopolíticas andam de mão dada com a volatilidade dos preços do petróleo e do gás. O crude disparou quando Israel atacou o Irão, mas aliviou entretanto. O gás natural teve comportamento idêntico: o contrato TTF (referência na Europa) escalou para mais de 41 euros por megawatt hora (MWh), mas entretanto já caiu 17%, sendo agora negociado a pouco mais de 34 euros por MWh.

O encarecimento do petróleo e do gás ataca a carteira dos cidadãos e a tesouraria das empresas e, como temos visto nos últimos anos, em várias crises, pode alimentar uma espiral inflacionista e pressionar a economia. No caso do gás natural esse efeito desdobra-se na fatura elétrica, já que qualquer agravamento do custo do gás se repercute no preço grossista da eletricidade e, posteriormente, no que paga o consumidor.

Um eventual fecho do Estreito de Ormuz (cenário que hoje parece remoto) teria “um impacto significativo no custo das cargas de gás natural liquefeito (GNL) para Espanha e Portugal”, observa Jacob Mandel, responsável pela área de matérias-primas da consultora Aurora Energy Research. “Portugal obtém a maior parte do seu gás dos EUA e Nigéria e a maioria dos navios que passam por Ormuz têm como destino a Ásia, mas os compradores portugueses estão em concorrência global pelas cargas de gás contra outros compradores na Europa, Ásia e outras regiões”, explica-nos o especialista.

No que respeita ao petróleo, o Governo português até estabeleceu para 2025 um quadro “prudente”, como considerou Ricardo Cabral, professor do ISEG, que considerou “exageradas” as estimativas de um aumento do preço do crude para 110 dólares caso o Estreito de Ormuz venha a ser fechado. O Governo definiu como pressuposto para o corrente ano um custo do Brent (petróleo de referência na União Europeia) de 75,5 dólares por barril. Se houver um disparo superior a 20% face a esse pressuposto, o Produto Interno Bruto (PIB) diminuirá 0,1 pontos percentuais, estimou o Executivo no Orçamento do Estado para 2025.

Entretanto, o Brent já recuou para cerca de 68 dólares por barril, retirando pressão dos mercados (e dos governos). Mas isso não diminui a necessidade de políticas públicas responsáveis, capazes de induzir processos eficazes de transição energética. É difícil compreender a racionalidade do regresso à taxa normal de IVA de equipamentos como painéis solares e aparelhos de ar condicionado. Dentro de dias ficará substancialmente mais caro contratar uma instalação fotovoltaica doméstica, cujo IVA subirá de 6% para 23%. A associação Zero chama-lhe um “atentado à política climática” e um “retrocesso fiscal”.

Este está longe de ser o único problema que a política de descarbonização em Portugal tem pela frente. Há dias noticiámos no Expresso a oposição de vários municípios aos parques eólicos da Madoqua para alimentar o seu projeto de hidrogénio verde em Sines. “É o momento de dizermos basta”, declarou a presidente da Câmara de Vila Verde sobre a possibilidade de o seu município ser atravessado por mais linhas de muito alta tensão, defendendo que Vila Verde não deve “continuar a ser o território de sacrifício para as necessidades energéticas de outras regiões”. “É uma questão de prioridades e as prioridades são diferentes dependendo das zonas do país”, defendeu também a presidente da Câmara de Montalegre.

Os dados da Direção-Geral de Energia e Geologia sobre a evolução da potência instalada em Portugal mostram que a eólica foi a fonte renovável que, em termos relativos, menos cresceu no país na última década.

Consegue-se compreender o empenho de alguns decisores locais em travar infraestruturas nas quais não encontram benefícios tangíveis para o seu eleitorado. No final de 2023 o Governo de António Costa aprovou, após ouvir a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), o pagamento de compensações pelos “projetos elétricos estratégicos de grande impacto” que sejam “geradores de significativas externalidades locais negativas”. O Decreto-Lei 18/2024 incluiu nesse pacote as interligações transfronteiriças e outros projetos de referência do plano de investimento da rede elétrica, reconhecendo a importância nacional dessas infraestruturas. Preço a pagar: 1% dos custos das subestações e 5% dos custos das linhas, em benefício dos municípios.

Mas essas compensações (que se somam aos €13.500 por MVA que cada município aprove para centros produtores de eletricidade renovável) poderão deixar de parte muitos projetos e linhas de eletricidade que, não sendo classificados como “estratégicos” a nível nacional, servirão para ligar novos parques eólicos e centrais solares. Seja para alimentar a produção de hidrogénio verde ou para fornecer a energia de um centro de dados ou para eletrificar o consumo de novas indústrias, não é por se tratar de investimentos privados que eles são menos críticos para o futuro do país. Criarão emprego e riqueza em vários pontos do território, aproveitando e dinamizando competências locais e nacionais, e robustecendo o sistema elétrico, com uma capilaridade maior na rede, capaz de fazer chegar energia verde a qualquer ponto do território. Incluindo os municípios em regiões de baixa densidade, que continuarão a precisar de acesso à eletricidade de forma contínua.

A coesão territorial não se observa somente na melhoria da rede de estradas no interior do país, ou no incentivo à fixação de novos trabalhadores em áreas rurais, canalizando fundos para regiões que ao longo de décadas foram perdendo população para o litoral e para os maiores centros urbanos. Essa coesão obriga a um espírito de compromisso, capaz de reconhecer que é do interesse nacional e coletivo ter no país uma incorporação crescente de eletricidade limpa, que aproveite recursos endógenos e renováveis, a custos competitivos, capazes de atrair novas indústrias, que, por sua vez, criarão mais emprego.

É hoje sabido que diversas multinacionais têm objetivos ambiciosos em torno da agenda verde, comprometidas com o reforço dos seus lucros de forma sustentável, o que inclui alimentar as suas operações com fontes renováveis, livres de emissões de dióxido de carbono. A gigante Amazon alcançou em 2023 o marco de ter 100% do seu consumo de eletricidade proveniente de renováveis, e é uma das empresas líderes na assinatura de contratos de longo prazo (PPA na sigla em inglês) para viabilizar novos parques eólicos e fotovoltaicos que produzam eletricidade verde. A Meta, dona do Facebook, é outro dos grandes compradores de energia renovável (sobretudo nos Estados Unidos mas também na Europa). Não o fazem só porque é politicamente correto: algumas fontes renováveis, como a solar e a eólica em terra, proporcionam hoje custos de energia competitivos, e o seu casamento com baterias alimenta a expectativa de um fornecimento de energia contínuo e eficaz.

Por cá, o projeto da Start Campus em Sines (um centro de dados gigante) foi desenhado para consumir 100% de eletricidade renovável. E novos negócios vão surgindo pelo país fora, implicando uma combinação de investimentos em autoconsumo e em centrais de maior dimensão, onde os recursos (vento e sol, sobretudo) estão disponíveis.

Cabe também ao poder local atrair e fixar novos habitantes e captar novas atividades económicas, que terão sempre algum impacto na paisagem, e que criarão novos consumos energéticos (com o que isso implica na ocupação do território). Essa dinamização local é do interesse de todos, incluindo os municípios que hoje se opõem com firmeza a mais infraestruturas energéticas. A alternativa é o definhamento.

DESCODIFICADOR:

PPA. Os power purchase agreements são contratos de aquisição de energia que garantem a um determinado comprador o acesso a um certo volume de eletricidade ao longo de um período de tempo pré-definido (por vezes cinco anos, outras vezes 10 ou 15 anos), e a um custo acordado com o produtor. Os PPA são vistos como uma ferramenta que dá previsibilidade de custos aos consumidores (ou a comercializadores, que adquiram energia para abastecer a sua carteira de clientes), mas que também garante um fluxo de receitas estável para o produtor. Esse tipo de contratação tende a facilitar o investimento em novos projetos de energia renovável, já que lhes retira risco, permitindo aos promotores angariar financiamento com um custo de capital mais baixo.


E VALE A PENA LER:

Nas últimas semanas foram publicados vários relatórios em Espanha sobre o apagão ibérico de 28 de abril. Vale a pena ler o documento produzido pelo comité criado pelo Governo espanhol. A Red Eléctrica também apresentou as suas próprias conclusões, já contestadas pela associação espanhola Aelec, que recorreu a uma análise com a colaboração do instituto português Inesc Tec, disponível aqui. Para mais informação recomenda-se ainda a página da associação europeia ENTSOE sobre o apagão ibérico.


Aqui termina esta edição da newsletter. A próxima virá a 10 de julho. Se tiver alguma dúvida, reparo ou sugestão, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Continuação de boas leituras no Expresso e votos de um ótimo resto de semana!