Expresso Energia

Não há eletricidade grátis (mas podemos pensar sobre o assunto)

Imagem de Arek Socha por Pixabay

Na última terça-feira mais de 50 mil pontos de consumo na ilha de La Palma, nas Canárias, ficaram sem eletricidade, na sequência de um apagão, resultante de um problema numa central termoelétrica, reavivando o histórico blackout de 28 de abril, que deixou a Península Ibérica num caos durante longas horas, e que até hoje continua a suscitar intensa especulação sobre o que a ministra Maria da Graça Carvalho já designou como “a causa das causas”. O apagão será uma importante base de trabalho para engenheiros e investigadores na área da energia. Mas, para lá da relevância académica do episódio de há mês e meio, sobressai a evidência do caráter fundamental da eletricidade no nosso quotidiano. Ela tem um custo. Mesmo quando estamos às escuras.

O mundo da energia, como quase tudo à nossa volta, é feito de histórias. E o misterioso apagão de 28 de abril tem entusiasmado muitos dos que nas últimas décadas participaram na construção do sistema elétrico que hoje nos garante, com razoável fiabilidade, um abastecimento de energia contínuo. José Amarante dos Santos, engenheiro que começou a trabalhar em 1976 na EDP e que de 1994 a 2004 passou pela REN, escreveu esta semana no seu blogue umas linhas sobre a central hidroelétrica de Castelo do Bode, descrevendo com bastante detalhe o funcionamento do sistema de arranque autónomo desta unidade. Recentemente, numa conferência, João Conceição, administrador da REN, ironizava sobre Portugal se ter tornado de repente um país cheio de especialistas em blackstart. O apagão teve pelo menos o mérito de nos pôr a refletir sobre a importância da eletricidade e da segurança de abastecimento.

O sistema de arranque autónomo, utilizado com alguma frequência na década de 1950 (nos primeiros anos de vida de Castelo do Bode), foi concebido numa outra era, distante do ambiente digital que hoje conhecemos. “Desde que entrei na EDP em maio de 1976 não me recordo de ter ocorrido um apagão nacional antes de 28 de abril de 2025”, escreveu José Amarante dos Santos. O “apagão da cegonha”, em 2000, foi muito mais circunscrito geograficamente. O que ocorreu em 2025 foi de uma escala sem precedentes. E isso é relevante para o debate que hoje, sob a pressão de obter respostas rápidas, ocorre em torno da procura de explicações para o episódio de 28 de abril. Talvez não exageremos se afirmarmos que esse colapso da rede marca um antes e um depois no desenvolvimento dos sistemas elétricos ibéricos, que daqui em diante terão de reforçar os investimentos na sua resiliência e segurança. Também isso tem um preço.

Há dias a ENTSOE (a associação europeia de operadores das redes de transporte de eletricidade) criou uma página dedicada ao apagão de 28 de abril, que vale a pena consultar, para conhecer uma parte da cronologia dos acontecimentos dessa data. A página conta que antes do colapso das 11h33 de 28 de abril (ou 12h33 na hora espanhola) já tinha havido dois períodos de instabilidade relevantes: das 11h03 às 11h07 (afetando os sistemas elétricos português e espanhol) e das 11h16 às 11h22 (entre a Península Ibérica e o resto da Europa).

Hoje ainda não sabemos o que tecnicamente motivou o colapso. A explicação detalhada do sucedido será importante para que Portugal e Espanha possam nos próximos anos desenhar os seus sistemas elétricos com proteções mais robustas para fazer face à crescente incorporação de fontes renováveis, com grandes variações de produção ao longo do dia.

Sabemos agora que a ENTSOE a 26 de maio enviou uma carta à espanhola Red Eléctrica enfatizando “a importância de uma transmissão expedita dos dados solicitados”, e que dois dias a associação europeia enviou uma outra missiva ao Governo espanhol que evidenciava a dificuldade na recolha de elementos para a investigação: “a Red Eléctrica recentemente informou-nos da relutância de terceiros na partilha de dados relevantes”. Essas entidades diziam estar obrigadas a respeitar cláusulas de confidencialidade. O apuramento de responsabilidades será, por isso, difícil e demorado.

O que mudou

Passado mais de um mês depois do apagão, a rede na Península Ibérica continua a ser explorada com limitações. A REN mantém algumas restrições nas importações de eletricidade oriundas de Espanha, tendo prolongado até 18 de junho os limiares de 2,5 gigawatts (GW) de capacidade de importação das 8h às 9h e das 18h às 19h e de 3 GW das 9h às 18h, deixando as restantes horas (essencialmente o período noturno) sem restrições.

A gestão das interligações tem sido cautelosa, permitindo aos operadores económicos voltar a adquirir a abundante e competitiva energia fotovoltaica espanhola durante as horas de sol, mas com alguns limites na disponibilidade comercial das interligações. Vale a pena lembrar que pouco antes do apagão Portugal estava a importar 2,7 GW de Espanha (um registo dentro dos intervalos que hoje a REN já permite). Vários responsáveis têm afirmado que, considerando o grau de interligação entre os dois países, era impossível que o colapso da rede espanhola não contagiasse a rede portuguesa. Na manhã desta quinta-feira, 12 de junho, Portugal esteve a importar em força de Espanha, chegando a utilizar 3 GW de capacidade, ou seja, mais até do que ocorria no momento do apagão.

Não foi só a gestão da capacidade de interligação ibérica que mudou. A dinâmica de preços no mercado ibérico de eletricidade também foi afetada. Depois do apagão, Portugal e Espanha registaram preços grossistas diferentes, sistematicamente mais baixos do lado de lá, embora o mercado espanhol venha somando encargos muito substanciais com serviços de sistema, encarecendo a fatura final do consumidor.

A separação do preço spot entre Portugal e Espanha (o fenómeno de market splitting) durou até 9 de junho. Mas esta semana, a 10 e 11 de junho, os dois países voltaram a registar preços diários iguais (que tornaram a descolar esta quinta-feira, novamente com o lado português a suportar um valor um pouco mais alto).

Em todos os dias do mês passado o mercado espanhol teve preços mínimos negativos, ao contrário de Portugal, que só por uma ocasião (18 de maio) registou horas com preços abaixo dos zero euros por megawatt hora (MWh).

O registo de preços negativos no mercado spot pode favorecer temporariamente quem tenha tarifários indexados. Mas em junho a tendência tem sido de agravamento. Espanha chegou a registar algumas horas de preços negativos, mas com menor significado do que em maio. E a 10 de junho preço grossista médio, quer em Portugal quer em Espanha, ultrapassou os 100 euros por MWh, um patamar elevado, num dia com um perfil peculiar.

Espanha vinha suportando preços mínimos muito baixos, em torno dos zero euros por MWh. Mas a 10 de junho a hora mais barata no mercado grossista espanhol traduziu-se num preço spot de mais de 54 euros por MWh, que voltaria a afundar-se para 1,1 euros por MWh a 11 de junho.

Os dados da plataforma Omie indicam que de 9 para 10 de junho houve uma ligeira redução da produção eólica e uma quebra mais acentuada da produção fotovoltaica, movimentos que foram compensados principalmente por aumentos da geração hídrica e das centrais alimentadas a gás natural. Foi o suficiente para que os agentes económicos fizessem vingar algumas ofertas de preço mais elevadas, assegurando, por um dia, um almoço farto para a generalidade dos produtores de eletricidade da Península Ibérica.

A 10 de junho tivemos os preços mais altos em quase três meses. Na passada terça-feira as centrais solares (e os demais produtores) tiraram a barriga de misérias, mas os registos de quarta e quinta-feira trouxeram uma normalização do perfil de preços, com valores mais próximos do zero nas horas de sol.

Exercícios difíceis

A volatilidade do mercado grossista (a que já estávamos habituados), as restrições nas interligações (a que não estávamos assim tão acostumados) e a alteração dos perfis de consumo (há cada vez mais unidades de produção para autoconsumo, algumas baterias e muitos carros elétricos) são fatores que tornam mais complexos os exercícios que a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) tem de efetuar para definir as tarifas de acesso à rede (TAR) que todos os anos são cobradas à generalidade dos consumidores de eletricidade.

As TAR são uma base comum de custos do sistema elétrico que o regulador impõe a todos os comercializadores. Depois, cada um dos fornecedores do mercado adota a sua estratégia de contratação de energia e práticas comerciais mais ou menos agressivas para conquistar ou fidelizar clientes. Os encargos das TAR introduzem alguma rigidez na estrutura de preços da energia elétrica. Para o bem (porque amortecem o impacto da volatilidade do mercado grossista na fatura final do cliente) e para o mal (porque oneram o sistema e os consumidores com alguns custos que poderão não estar a ser geridos da forma ótima).

Nas tarifas aprovadas para 2025 a ERSE estipulou que na baixa tensão normal a tarifa de acesso para um cliente com potência de 6,9 kVA será de 31,74 cêntimos por dia, o que significa que esse consumidor contará sempre com um encargo fixo de 9,5 euros por mês na potência contratada (independentemente de consumir mais ou menos energia nesse período e de esgotar ou não o limite dessa potência). As TAR da baixa tensão normal também incluem valores para a energia, que em tarifa simples foram fixados em 6 cêntimos por kilowatt hora (kWh), o que equivale a 60 euros por MWh.

Assim, se num dado mês o preço grossista da energia elétrica for particularmente baixo, por exemplo, 20 euros por MWh, uma família com tarifa indexada beneficiará dessa redução, mas sempre pagará por cada kWh consumido um valor superior (mais de 8 cêntimos por kWh, ou 80 euros por MWh, dependendo o valor final da fórmula de indexação fixada por cada comercializador).

Em tarifários fixos os preços finais por kWh poderão ser superiores, considerando que em teoria os comercializadores assumem riscos maiores e encargos acrescidos com desvios (de volumes e preços) que acabarão por incorporar no preço que oferecem (num tarifário indexado o risco do comercializador é menor). No entanto, é sempre possível que em alguns períodos haja tarifários fixos mais baratos do que determinados indexados. O ideal é o consumidor seguir com alguma atenção as ofertas disponíveis e recorrer regularmente aos simuladores para avaliar se consegue economizar alguns euros na sua fatura mensal.

No fim de contas, a única certeza, porque sempre teremos tarifas de rede para pagar, é que não há eletricidade de borla. Nem mesmo quando o preço grossista cai abaixo de zero. A incorporação de mais fontes renováveis no sistema elétrico, como a energia eólica e a solar, tenderá a fazer baixar o valor de cada MWh no mercado spot, face a recursos mais caros como a produção das centrais alimentadas a gás natural. Mas as turbinas eólicas e os módulos fotovoltaicos têm um custo. Desenhar redes elétricas robustas, inteligentes e eficientes, capazes de lidar com a crescente variabilidade da oferta de vento e sol, tem igualmente o seu preço.

o plano de investimento da REN para a próxima década prevê investimentos de quase 1,7 mil milhões de euros, dos quais 130 milhões de euros especificamente para reforçar a inércia da rede. Nas infraestruturas da distribuição, a cargo da E-Redes, o plano proposto para os próximos cinco anos é de investir 1,6 mil milhões de euros. As empresas estão naturalmente interessadas em investir para manter ou ampliar a base de ativos regulados pela qual são remuneradas. Mas o país precisa de estar disponível para ter infraestruturas capazes de suportar os consumos energéticos presentes e futuros. O desafio não é apenas manter a matriz atual, mas ter redes flexíveis e capazes de acomodar níveis crescentes de eletricidade verde, até porque cada vez mais a atração de investimento empresarial passa por proporcionar energia limpa e a preços competitivos (algo a que o mix em que Portugal está a apostar dá boa resposta).

Não estaremos a salvo de novos apagões, mas podemos trabalhar para os evitar. Não temos de inventar a roda no sistema elétrico, porque os últimos anos comprovaram o bem sucedido processo de transição para uma matriz mais verde. Mas, sem inventar a roda, a questão poderá ser a de garantir que, com menos massas girantes no sistema de produção, e mais eletrónica na rede, continuaremos a ter inércia suficiente para evitar colapsos. Poderemos reforçar a aposta em baterias e no armazenamento hídrico. Trabalhar a eficiência energética. Incentivar a contratação a prazo. Criar mecanismos de remuneração por garantia de potência, para salvaguardar a segurança da rede. Não será necessário sacrificar o compromisso com a descarbonização da nossa eletricidade. Mas esse processo, essencial para tornar mais sustentável a forma como consumimos energia, não é um almoço grátis. E não há nada de errado nisso.

DESCODIFICADOR

TAR. É a sigla de “tarifas de acesso à rede”, os preços a pagar pelos consumidores para cobrir um conjunto de custos do sistema elétrico. Aí se incluem as tarifas de uso da rede de distribuição (que em Portugal Continental pagam as infraestruturas operadas pela E-Redes), as da rede de transporte (relativas às infraestruturas da REN) e as de uso global do sistema, ou UGS (que pagam a gestão do sistema elétrico e abrangem um conjunto extenso de encargos, como os custos de interesse económico geral, também conhecidos pela sigla CIEG). Dentro dos CIEG estão, por exemplo, as rendas recebidas pelos municípios e o sobrecusto que possa existir em cada ano entre os preços garantidos a alguns produtores, como os parques eólicos (mas não só), e os preços grossistas verificados no mercado spot. Cabe à ERSE fazer todos os anos o apuramento de todos estes custos e, com base em projeções sobre o volume de energia consumida nos vários segmentos, distribuir esses encargos pelo sistema elétrico, fixando as tarifas de acesso à rede.


E VALE A PENA LER

A Adene – Agência para a Energia, a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e o Observatório da Energia publicaram recentemente a edição de 2025 do anuário “Energia em números”, que faz o retrato da evolução dos principais indicadores energéticos em Portugal, com um levantamento exaustivo de dados deste sector. Pode ser lido aqui.

Fica por aqui esta edição da newsletter. A próxima virá a 26 de junho. Se tiver alguma dúvida ou quiser fazer algum reparo, pode escrever para o e-mail mprado@expresso.impresa.pt. Tenha um bom resto de semana, com mais energia!