Há um par de semanas, um denominado “Movimento pelo Gás Renovável”, aproveitando as perturbações e impactos do apagão ibérico de 28 de abril, lançou no espaço público a sua cartada. “Queremos mesmo pôr as fichas todas na eletricidade?”, questionava a página desse movimento, cuja petição, intitulada “Por uma política energética equilibrada”, até ao momento foi subscrita por algumas centenas de pessoas. A mensagem era clara: além da energia elétrica, há que apostar noutras fontes energéticas que nos permitam aquecer a água ou cozinhar o jantar quando a eletricidade falha. Mas há um pequeno detalhe. É que grande parte do promissor gás renovável também passa pelos eletrões. Sim, precisamos de pôr as fichas todas na eletrificação, nem que seja para garantir que os restantes vetores da transição energética realmente funcionam.
O acesso à eletricidade é crítico até para as infraestruturas de gás. E se ambicionarmos reduzir o consumo de gás natural através da produção de hidrogénio verde precisaremos mesmo de enormes volumes de eletricidade renovável. E se, em detrimento dos veículos elétricos, a nossa opção for manter os carros com motor de combustão, alimentados a biocombustível, até aí precisaremos de alguma eletricidade no momento de ir à estação de serviço, para pagar, receber uma fatura e atestar o depósito.
Há seguramente formas melhores de promover os gases renováveis do que através do aproveitamento de um apagão que não mancha o histórico recente de bons níveis de qualidade e continuidade de serviço na nossa rede elétrica. A eletricidade entrou nas nossas vidas, não nos vai deixar, e ainda bem. Podíamos fazer uma viagem aos tempos de Alessandro Volta e Nikola Tesla para compreender a importância da eletrificação, mas basta olhar para o presente e para o quotidiano de uma sociedade que vive permanentemente ligada, não dispensa as comunicações de última geração nem uma parafernália de soluções eletrónicas que ao longo dos anos melhoraram a nossa qualidade de vida.
Muitas dessas soluções são tão incríveis que mal pensamos nelas. Temos a eletricidade no coração e na palma da mão. Mas queremos que fique longe da vista. Beneficiar do acesso à energia 24 horas por dia e sete dias por semana tornou-se um direito adquirido. Mas avistar uma nova linha de alta tensão é para alguns uma visão do inferno. Vivemos bem com o conforto de uma vida eletrificada mas não queremos nem ver as infraestruturas que a sustentam.
O “Complexo Solar Fotovoltaico do Sado”, que poderá instalar 600 megawatts (MW) à porta da Comporta e tornar-se uma das maiores centrais do país, promete gerar contestação, à semelhança de outros empreendimentos fotovoltaicos de larga escala. O facto de no meio do terreno desse projeto já estar instalada uma pequena central de 16 MW da Finerge é um pormenor interessante. O complexo solar sobrepõe-se a uma zona especial de conservação (ZEC), mas se já lá existem milhares de painéis fotovoltaicos há uns anos, qual é afinal o critério para aceitar produção de energia solar? Há um limiar, em potência ou em área ocupada, a partir do qual é ou deixa de ser razoável aceitar a instalação de uma central solar numa ZEC?
Neste caso em concreto, o licenciamento ainda está numa fase preliminar. Mas os megaprojetos fotovoltaicos levantam uma questão que é conveniente ponderar. Mediante os desafios da transição energética e da descarbonização dos nossos consumos, é preferível autorizar uma central de grande impacto, com 600 MW de potência, ocupando centenas de hectares num mesmo espaço, ou viabilizar 30 centrais menores, de 20 MW cada, distribuídas pelo território, mas requerendo dezenas ou centenas de quilómetros de linhas para as respetivas ligações à rede?
Os últimos dados da plataforma REN Datahub mostram que no corrente mês de maio a energia solar alimentou 16,6% do consumo de eletricidade em Portugal, a terceira fonte, apenas atrás da hídrica e da eólica. Os parques fotovoltaicos tiveram um contributo maior que o das centrais a gás e muito maior que o das centrais a biomassa ou o do saldo importador.
Com 5,95 gigawatts (GW) instalados até março (dados da Direção-Geral de Energia e Geologia), as fotovoltaicas já se afirmaram, definitivamente, na primeira liga da produção de eletricidade em Portugal. A meta de 20,8 GW até 2030 preconizada pelo Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) tem sido vista por alguns especialistas como excessiva.
Mas se o país pretender realmente eletrificar consumos e descarbonizar o seu mix de geração (remetendo o gás natural a uma função de puro backup), de forma a reduzir as emissões de dióxido de carbono, precisará de mais capacidade fotovoltaica, quer de forma centralizada, quer de forma distribuída. As comunidades de energia darão o seu contributo, mas terão de ser complementadas por parques fotovoltaicos de maior dimensão. Será necessário um compromisso equilibrado entre a proteção da natureza e o desenvolvimento dos muitos projetos que são essenciais para não destruirmos o que resta do planeta queimando combustíveis fósseis. A organização Future Energy Leaders, ligada à Associação Portuguesa de Energia (APE), promove a 2 de junho um debate precisamente sobre “O impacto da descarbonização no território e nas comunidades”, com as experiências da Akuo Renováveis (energia solar), Ocean Winds (eólicas no mar) e Savannah Resources (mineração de lítio).
Estes investimentos na descarbonização caminham de braço dado com um outro tema essencial, que a mesma APE discute já esta quinta-feira em Lisboa: segurança energética. Portugal e Espanha têm-se batido por mais interligações com o resto da Europa (e Pedro Sánchez recentemente voltou à carga). Elas serão necessárias mas não suficientes. A Península Ibérica precisa de reforçar a sua própria capacidade de geração, dotando-a de uma diversidade de soluções que garantam, do ponto de vista técnico, continuidade de serviço num mix cada vez mais verde.
Como há uns dias contámos aos nossos leitores, há bons exemplos que atestam a capacidade da engenharia portuguesa para procurar soluções: a C2C NewCap, por exemplo, desenvolve supercondensadores que poderão ser críticos para as operações de sistemas assentes em eletricidade renovável, à semelhança do que faz lá fora a Skeleton Technologies (cuja história também encontra aqui no Expresso). A inovação estende-se também a projetos de descarbonização da indústria, como o que a norte-americana Rondo Energy está a fazer com as suas baterias térmicas. Mas o leque de potenciais caminhos para dotar o país de maior autonomia energética e segurança de abastecimento é amplo.
A propósito deste Dia Mundial da Energia, assinalado a 29 de maio, Ricardo Pereira, investigador da Faculdade de Ciência e Tecnologia da Nova, veio lembrar numa publicação no Linkedin a possibilidade de Portugal apostar no armazenamento de energia com ar comprimido, utilizando os excedentes de energia eólica, solar ou hídrica para fazer a compressão do ar atmosférico, armazenando-o no subsolo, para que quando necessário seja usado ativando turbinas que geram eletricidade.
A tecnologia do ar comprimido existe há décadas, mas tem estado fora do cardápio de soluções do sistema elétrico nacional. De acordo com Ricardo Pereira, o tema do armazenamento de ar comprimido tem sido apenas objeto de trabalho académico em Portugal, onde, segundo o investigador, a região de Coimbra a Santiago do Cacém apresenta formações rochosas porosas com potencial. Num momento em que os decisores políticos reconhecem a necessidade de Portugal reforçar a aposta no armazenamento, sobretudo hídrico e com baterias, fará sentido considerar igualmente outras possibilidades que diversifiquem o cabaz de soluções de resiliência da rede.
Este é um trabalho que não deve ficar apenas pela reflexão. Carece de um estudo aprofundado, mas capaz de levar à tomada de decisões sobre quais os caminhos económica e tecnicamente viáveis para construir o sistema elétrico mais seguro possível.
Entretanto, a ENTSOE (associação europeia de operadores das redes de transporte de eletricidade) acaba de publicar o relatório “Summer Outlook 2025”, no qual não regista nenhum risco especial para a continuidade do abastecimento na Europa Continental, nos países nórdicos e na Grã-Bretanha, embora regiões insulares como Irlanda, Malta e Chipre mereçam “uma monitorização apertada”. Na preparação para o próximo inverno, observa a ENTSOE, o cenário é de confiança. “A ENTSOE não antevê riscos extraordinários para o inverno de 2025/26”, refere o documento.
A resposta que Portugal tem dado na gestão da rede após o apagão evidenciou a capacidade do sistema elétrico de sobreviver com ligações limitadas a Espanha. Isso tem beneficiado de um quadro favorável de disponibilidade de gás natural no mercado global (de que somos totalmente importadores, e por isso vulneráveis), mas também, no cenário doméstico, de uma elevada disponibilidade hídrica: temos por esta altura mais água armazenada do que há um ano (e do que na década anterior, para este momento do ano).
Nas próximas semanas iniciaremos a curva descendente do uso da reserva hídrica que acumulámos nos últimos meses. No que toca ao armazenamento de gás natural, enquanto a União Europeia apresenta um enchimento de perto de 47%, Portugal está quase nos 92%, o nível mais elevado da Europa, segundo os registos desta semana reportados pela Gas Infrastructure Europe (com a ressalva de que a capacidade nacional de armazenamento de gás é bastante limitada face ao nosso consumo).
E ao longo dos próximos meses é expectável que o preço grossista da eletricidade volte a subir, depois de nesta primavera ter recuado (como é habitual) para níveis mais baixos. Contudo, a persistência de restrições nas interligações com Espanha está a deixar Portugal a pagar pela eletricidade (no mercado grossista) mais 60% do que Espanha, uma diferença que pode ser relevante sobretudo se pensarmos em indústrias eletrointensivas nacionais que concorram diretamente com as do país vizinho.
Pensar em segurança energética implica mesmo “pôr as fichas todas” num debate complexo, sobre um sistema energético em que três quartos do consumo não são eletricidade, mas precisam urgentemente de se tornar sustentáveis. Para que o outro quarto não fique às escuras é desejável um esforço coletivo com mais análise e capacidade de ação para pôr em marcha soluções eficazes de transição energética, sem menosprezar o respeito pela preservação da biodiversidade. O resto é paisagem.
DESCODIFICADOR
Supercondensador. É um sistema de armazenamento de energia concebido para entregar uma elevada potência a um sistema elétrico num curto espaço de tempo (segundos ou milissegundos). As baterias de lítio como as que temos nos automóveis carregam e descarregam lentamente, mas os supercondensadores conseguem entregar muita potência num curto intervalo de tempo, podendo ajudar a corrigir de forma quase instantânea desequilíbrios numa rede ou numa microrrede elétrica. O supercondensador pode ser adquirido por empresas de energia que queiram prestar serviços de sistema aos operadores das redes elétricas, sendo remunerados pelo contributo que dão para regular a frequência na rede.
E VALE A PENA LER
A Comissão Europeia publicou esta semana uma avaliação sobre os planos nacionais de energia e clima (PNEC). Bruxelas considera que os Estados-membros “demonstraram o seu compromisso contínuo através de planos finais com melhorias substanciais”. E no documento indica que irá analisar se são necessárias mais medidas para assegurar o cumprimento das metas de energias renováveis e eficiência energética.
A newsletter fica por aqui e a próxima edição virá a 12 de junho. Se tiver alguma sugestão, reparo, dúvida ou comentário, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Pode continuar a acompanhar o essencial do mundo da energia no Expresso. Até breve!