Nos últimos dias o apagão ibérico pôs meio mundo a falar de energia. As variações de tensão dispararam em Espanha, fizeram cair também a rede elétrica portuguesa e de repente falamos de black start, desvios de frequência, inércia sintética e compensadores síncronos como quem comenta o desempenho dos craques da bola. Nada de errado nisso. Não nos podemos queixar à sexta-feira de que não se discute suficientemente a energia no país para à segunda lamentarmos que se fala em demasia do assunto. Depois desta crise, voltaremos com certeza a dedicar mais tempo aos desafios energéticos. E enquanto não chegam os relatórios detalhados do que sucedeu será bom trocar umas ideias sobre o assunto.
A rede elétrica entrou em coma, regressou ao mundo dos vivos, e com ela voltaram também algumas ideias anacrónicas. É indesmentível que a rede elétrica falhou na segunda-feira. E é outro facto inegável que no momento do apagão 55% da produção em Espanha era fotovoltaica. Mas só as análises técnicas das próximas semanas permitirão perceber se, como vem sendo sugerido em vários fóruns, as variações de tensão resultaram da geração solar, conhecida por tradicionalmente reduzir a inércia na rede (pode ler um pouco mais sobre o assunto aqui).
A gestão da rede é tecnicamente exigente. E cada vez será mais desafiante. Passámos de um paradigma de produção centralizada, concentrada em algumas grandes termoelétricas e centrais hídricas, para um quadro de produção crescentemente descentralizada: são os parques eólicos dispersos pelo território, os painéis solares para autoconsumo polvilhados de norte a sul (e ilhas), um país mais eletrificado e com novas fontes de consumo, como os carros elétricos.
Conseguir um casamento perfeito entre produção e consumo de eletricidade é cada vez mais difícil, mas disso depende a manutenção da frequência da rede, e quando há desvios significativos face ao valor padrão de 50 hertz o sistema elétrico pode entrar em colapso. Além disso, o controlo da tensão da rede é também difícil. Em janeiro deste ano a CNMC, em Espanha, alertava que “a produção renovável, que está a desenvolver-se em grande velocidade, tem menos capacidade de gerir a tensão da rede do que a geração convencional”.
Na terça-feira, Ana Barillas, diretora da Aurora Energy Research no mercado ibérico, observava no Linkedin que “são necessárias mais capacidades de grid-forming, controlo de voltagem e fornecimento de inércia”. Soluções de grid-forming (como explica aqui o jornal El Economista) servem para que centrais solares criem de forma autónoma e local referências de frequência e tensão, o que poderá dar maior estabilidade à rede do que quando os inversores se limitam a seguir os parâmetros da rede centralizada (que quando fica desregulada pode levar a um apagão). Num contexto de maior produção renovável, a diminuição de riscos para a rede poderá passar também pelo fornecimento de inércia através de soluções como compensadores síncronos (motores que não servem para gerar eletricidade, mas para fornecer ou absorver potência).
Esta semana, quando questionado sobre se estamos condenados a viver com um maior risco de apagões devido ao peso crescente das renováveis, o professor João Peças Lopes dizia-nos que, embora seja impossível diminuir o risco para zero, há soluções técnicas para criar inércia sintética na rede, mitigando o impacto negativo que a explosão das renováveis teve ou pode ter na estabilidade da rede. “A engenharia tem sempre soluções”, defendeu João Peças Lopes.
Embora quem conhece o sector assegure que há ferramentas para garantir estabilidade à rede mesmo com cada vez mais energia solar e eólica, Espanha decidiu esta semana jogar à defesa. Segundo o “Expansión”, a Red Eléctrica ordenou a reativação de centrais nucleares, centrais de ciclo combinado a gás e hidroelétricas (cujas turbinas asseguram maior inércia na rede), ao mesmo tempo que limitou parte da produção renovável: o objetivo é no imediato garantir maior estabilidade nos níveis de tensão.
Do lado de cá, sabemos que a REN decidiu estender até domingo, 4 de maio, a suspensão das importações de eletricidade, para garantir a estabilização do nosso sistema elétrico, enquanto Espanha estabiliza o seu. Pedro Almeida Fernandes, líder da Enel Green Power em Portugal, sublinhou já que “o sistema elétrico português está a operar com um elevado grau de autonomia”, funcionando aparentemente bem em ilha (sem recurso a importações do país vizinho). E entretanto a ENTSO-E, organização que agrega os operadores europeus das redes de transporte de eletricidade, elogiou a “rápida recuperação dos sistemas elétricos de Portugal e Espanha”.
Perante um apagão histórico, a normalização da rede elétrica está a demonstrar bons resultados, sem prejuízo de uma análise mais fina às condições em que foi feito, na segunda-feira, o arranque das centrais da Tapada do Outeiro e Castelo do Bode (que o primeiro-ministro considerou não terem sido tão rápidas como seria desejável).
Mas a operação momentânea do sistema elétrico nacional sem recurso a importações de Espanha não significa que esse seja o modo ideal de operação da rede no longo prazo. Nos últimos dias voltou a ser questionado o recurso de Portugal às importações de eletricidade de Espanha (sobretudo porque no momento do apagão Espanha estava a fornecer um terço do nosso consumo). Uma interrogação legítima perante o sucedido é: se temos do lado de cá tanta capacidade hídrica, eólica e solar, porque estamos a importar eletricidade de Espanha, sujeitando a nossa rede a ser contagiada pelos riscos que vêm do país vizinho?
E a resposta é relativamente simples. Tecnicamente temos condições, em boa parte do tempo, para suprir o nosso consumo convencional com a produção endógena, mas em muitos momentos revela-se economicamente mais racional recorrer a eletricidade gerada em Espanha, cujo mix de produção proporciona de forma frequente preços competitivos (seja pela dimensão do mercado ou pela abundante oferta fotovoltaica). Portugal continua a aproveitar a quase totalidade do vento e do sol quando estão disponíveis, mas no que toca à gestão da água pode fazer mais sentido em muitas horas mantê-la nas albufeiras (e não turbinar), enquanto importamos de Espanha a preço de amigo. Isso leva a que seja recorrente o recurso à importação de Espanha para abastecer as bombagens hidroelétricas em Portugal, tirando partido da eletricidade espanhola quando ela é barata para reabastecer as nossas albufeiras. Não parece ser um mau negócio. Afinal, de Espanha também vêm bons casamentos.
Aliás, os últimos dados da plataforma Omie mostram bem como, regra geral, estamos melhor juntos do que separados. Com a decisão de bloqueio das importações por parte da REN, o preço grossista médio desta quinta-feira cifrou-se em €18,9 por megawatt hora (MWh) para Portugal e €13,3 por MWh para Espanha. E a separação (o fenómeno conhecido como market splitting) em prejuízo de Portugal prossegue esta sexta-feira, com o nosso país a pagar um preço grossista de quase €14 por MWh e Espanha menos de €11 por MWh. Não são diferenças estrondosas, mas fica evidente esta quinta e sexta-feira que Portugal não beneficiará dos preços negativos que se registarão em Espanha durante as horas de sol.
Operar num mercado integrado, como o Mibel, tem vantagens mútuas: permite a Portugal tirar partido da abundante oferta espanhola a preços marginais reduzidos e também permite a Espanha alargar o mercado para escoar essa abundância renovável. Ou vice-versa: também há períodos em que Portugal é exportador para Espanha. Mais do que isso, a existência de um mercado ligado é a oportunidade para os dois países gerirem de forma eficiente e solidária as suas redes.
No meio da turbulência destes dias foi reavivada a narrativa de que o país errou ao encerrar as centrais a carvão de Sines e do Pego. A ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho, declarou ao “Negócios” que o abandono do carvão “podia ter sido feito de forma faseada e programada”, que “podia não ter sido feito tão depressa”. Por seu turno, o ex-ministro do Ambiente João Matos Fernandes notou na SIC que “dizer que houve apagão por causa do encerramento de centrais a carvão é uma mentira pegada”.
Abandonámos o carvão em 2021. E mantemos em Portugal uma capacidade excedentária de outras fontes internas (incluindo centrais a gás e hidroelétricas) que podiam ser mais usadas e se não são é justamente porque sai mais barato importar a eletricidade de Espanha. Por outro lado, estando fisicamente interligado com Espanha, Portugal sempre seria afetado por perturbações da rede espanhola mesmo que por cá ainda se estivesse a queimar carvão.
Em 2022 o então diretor-geral de Energia e Geologia, João Bernardo, avaliava como “crítica” a situação do sistema elétrico português, perante o fecho das centrais a carvão e os cenários de seca. “Nos próximos dois ou três anos, vamos estar um bocadinho em cima das cinzas”, afirmava João Bernardo. “Estamos em cima de um problema de segurança de abastecimento grave, não é hipotético, é grave. Podemos ter rupturas de abastecimento a muito curto prazo”, alertou ainda o então diretor-geral de Energia.
Os últimos três anos mostraram que Portugal geriu bem a ausência do carvão, combinando os recursos tradicionais (como as centrais hídricas e a gás) com as importações (quando se revelaram economicamente vantajosas) e com o disparo da nova potência fotovoltaica. O apagão de segunda-feira não foi definitivamente resultado de um qualquer desequilíbrio do sistema elétrico português. Foi um episódio grave, cujas causas concretas terão ainda de ser determinadas. A presidente da Redeia (que detém a Red Eléctrica), Beatriz Corredor, defendeu entretanto que as renováveis têm condições para operar “de forma estável”, sem colocar problemas de segurança à rede, não sendo correto “relacionar o incidente com a penetração das renováveis”. Agora, apontou a gestora, será preciso analisar “milhões de dados”. Pedro Sánchez promete investigar o apagão “milissegundo a milissegundo”.
Por cá, o presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), José Pimenta Machado, já veio salientar a importância da energia hidroelétrica, pela sua flexibilidade, para levantar a rede portuguesa após o trambolhão de segunda-feira. “Uma lição que devemos tirar é que o investimento em barragens e no armazenamento por bombagem são muito importantes, e não perder tempo a discutir tecnologias do passado, como o carvão”, escreveu no LinkedIn. Mas foi mais longe: “Por isso é tão importante que a bombagem do Alto Lindoso e em outros sistemas avancem”. Não deixa de ser irónico, porque ainda em outubro de 2024 a APA chumbou o projeto da EDP para criar um grupo reversível, com bombagem, naquela mesma central hidroelétrica. O país vive mesmo tempos eletrizantes (enquanto houver energia para injetar, claro).
DESCODIFICADOR
Black start. Muito se falou e escreveu sobre o assunto nos últimos dias. Trata-se do arranque autónomo de uma central elétrica, apenas possível nas que tenham equipamentos de geração de reserva (alimentados, por exemplo, a gasóleo) para iniciar a operação num contexto de apagão geral na rede elétrica. Em Portugal só as centrais da Tapada do Outeiro e Castelo do Bode estão habilitadas para este serviço à rede elétrica, mas a REN já contratou outras duas (Baixo Sabor e Alqueva) para o mesmo efeito, reforçando a capacidade de restaurar o sistema elétrico em futuros apagões.
E VALE A PENA LER:
Em fevereiro deste ano a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) publicou a mais recente edição do Relatório de Monitorização da Segurança de Abastecimento de Eletricidade, que identifica os principais riscos para o nosso sistema elétrico até 2040. Aí se enfatizava já a importância da manutenção por mais alguns anos das centrais a gás. É um documento relevante para uma discussão informada sobre o que queremos do nosso sistema elétrico, sobretudo à luz das vulnerabilidades que o apagão expôs.
A próxima edição da newsletter tem encontro marcado consigo para 15 de maio. Até lá, se tiver sugestões, críticas ou outros comentários, pode enviar para mprado@expresso.impresa.pt. Bom final de semana. E que não lhe falte a energia!