“Até hoje os grandes sucessos que tivemos na transição energética e o aumento das renováveis ainda não se traduziram em benefícios completos para o consumidor. [...] Do ponto de vista do que o consumidor tem que pagar ao fim do mês ainda não há benefícios visíveis”. A afirmação da ministra do Ambiente e da Energia, Maria da Graça Carvalho, feita há dias numa conferência promovida pelo regulador da energia, gerou alguma celeuma. A descarbonização é um dos temas mais consensuais entre as duas maiores forças políticas do país, mas por vezes a forma como se analisa a transição energética é propensa a equívocos. Sim, as renováveis vão ao bolso do consumidor. Mas talvez não da forma que uma boa parte dos cidadãos presumirá. A eletricidade verde não é um almoço grátis. Nem um jantar de estrela Michelin. Mas, algures no meio, tem os ingredientes para funcionar e não ser um desastre. Vejamos.
A 12 de fevereiro a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) promoveu em Lisboa um seminário sobre o período regulatório para 2026-2029, ocasião na qual a ministra do Ambiente e Energia traçou os desafios e oportunidades que Portugal tem pela frente no que à eletricidade diz respeito. Maria da Graça Carvalho reconheceu que em matéria de renováveis “estamos bom bom caminho”, lembrando que “o novo período de regulação terá que incorporar toda uma nova legislação europeia”, visando deixar o consumidor “no centro do desenho do mercado de eletricidade”. A governante também salientou a importância dos projetos de autoconsumo, que vão crescendo no país, apesar de vários obstáculos.
Mas o ponto crítico do seu discurso foi a afirmação de que na carteira dos portugueses não há ainda benefícios visíveis da aposta nas renováveis. Será? A posição colhe aplausos de quem vê as energias limpas como um negócio que vive de rendas e generosos apoios à custa das famílias portuguesas. E reparos dos que reconhecem que as renováveis têm um contributo efetivo para a redução do custo da eletricidade em Portugal.
Vale a pena revisitar alguns números. Como mexem afinal as renováveis com o bolso do consumidor?
Em 2019 um estudo da Deloitte para a Apren – Associação Portuguesa de Energias Renováveis estimava que o sistema elétrico nacional teria um custo por megawatt hora (MWh) 24 euros mais alto caso não existisse a então chamada “produção do regime especial” (PRE) de base renovável. Isto porque num cenário de inexistência dessa oferta de energia limpa (sobretudo eólica) o preenchimento da procura de eletricidade em Portugal recorreria muito mais às fontes fósseis (ou às hídricas com capacidade para marcar o preço no mercado).
O estudo da Deloitte indicava que entre 2010 e 2018 as poupanças acumuladas para o sistema elétrico da existência da tal PRE renovável rondavam os 10 mil milhões de euros. Contudo, a esse valor seria preciso descontar o sobrecusto da mesma PRE renovável face ao preço médio do mercado grossista: como essa produção de eletricidade verde era, na sua maior parte, remunerada com tarifas bonificadas, implicava um custo adicional para o consumidor em relação ao preço do MWh transacionado no mercado ibérico de eletricidade.
A Deloitte estimou que em termos líquidos (entre o efeito de reduzir o preço grossista por via da oferta de produção renovável e a diferença entre o preço de mercado e o preço garantido), de 2010 a 2018 o sistema elétrico nacional terá economizado 2,4 mil milhões de euros. Mais de 266 milhões de euros anuais. Ou, trocando por miúdos, mais de 44 euros por ano por habitação (se considerarmos seis milhões de pontos de consumo).
No que toca à eletricidade renovável, se o produtor não tiver forma de armazenar a energia eólica ou fotovoltaica, tende a ir ao mercado oferecer toda a sua produção a preço zero: se cobrar um preço demasiado alto fica fora do casamento entre oferta e procura, e desperdiça a oportunidade de receber o que quer que seja no seu parque eólico ou na sua central solar, apesar de continuar a ter de pagar, mensalmente, o financiamento a que recorreu. Como o mercado está desenhado para remunerar todos os produtores, a uma dada hora, pelo preço cobrado pela última central que entrou no casamento entre oferta e procura, quem ofereça a sua produção a preço zero sabe que receberá sempre alguma coisa pela energia (desde que a soma das ofertas de preço nulo não cubra toda a procura da rede elétrica num dado momento).
Vamos a um exemplo. Se numa determinada hora a procura de eletricidade é de 7000 MWh e as fontes eólica e solar conseguem cobrir 6500 MWh, restarão apenas 500 MWh para serem fornecidos por outras fontes, como as centrais a gás ou as hídricas. Mesmo que os produtores eólicos e solares tenham submetido ofertas a zero euros por MWh, se as centrais hídricas que forem produzir os 500 MWh adicionais tiverem oferecido um preço de 80 euros por MWh, então todos os produtores de eletricidade (incluindo os eólicos e solares) receberão 80 euros por MWh.
Se no dia seguinte, perante a mesma procura, estivermos numa jornada de fraco vento e pouco sol, e estes produtores tiverem somente 2000 MWh para oferecer numa hora, os restantes 5000 MWh terão de vir de outras fontes de eletricidade. Admitamos que há centrais hídricas que continuam a cobrar 80 euros por MWh, oferecendo 500 MWh. Mas os restantes 4500 MWh de procura terão de ser supridos por outros produtores, com ofertas mais altas. Incluindo, por exemplo, centrais a gás, que poderão cobrar algo em torno dos 120 euros por MWh. Nesta situação, todos os produtores serão remunerados ao preço da última central que foi necessária para cobrir a procura (os tais 120 euros por MWh, por hipótese).
É o mercado marginalista a funcionar. Em dias com mais vento, sol e água o preço grossista da eletricidade tende a cair, enquanto em dias com menos recursos renováveis o preço tende a subir, acompanhando sobretudo o custo de referência do gás natural (ao qual as centrais hídricas com armazenamento tendem a encostar-se, pois as centrais de ciclo combinado são as concorrentes mais diretas na oferta de potência segura, mas flexível, para responder às flutuações da produção eólica e solar).
É mais fácil acompanhar essa dinâmica com dados reais do mercado ibérico de eletricidade. É possível constatar que este mês houve alguns dias em que a Península Ibérica recorreu mais às centrais hídricas e a gás natural (nos dias 4, 6, 10, 14, 17 e 19), que coincidiram com períodos de menor produção eólica.
E o que os preços médios diários do Mibel revelam é que foi também nesses dias de menos vento e maior produção hídrica e a gás que o preço grossista da eletricidade subiu. Inversamente, nos períodos de maior abundância de vento o sistema elétrico recorreu menos às barragens e às centrais a gás para produzir eletricidade e registou preços médios mais baixos.
Em sistemas com uma elevada capacidade renovável instalada a abundância de vento, sol e água deprime os preços. Se isso é especialmente visível de dia para dia em função da produção eólica, é também uma evidência no mercado intradiário, à luz da geração fotovoltaica.
Esta quinta-feira, 20 de fevereiro, temos um perfil de preços com um primeiro pico ao início da manhã, um “vale” a meio do dia e um novo pico à noite. Os picos da manhã e da noite acompanham a evolução da procura de eletricidade, mas há a meio do dia um consumo substancial de energia, que, ao invés de puxar pelo preço, é suprido com custos mais baixos. Porquê?
Olhe para o céu, porque a explicação vem de cima. A forte produção fotovoltaica no período diurno cobre uma grande parte do consumo ibérico de eletricidade, atirando o preço grossista para valores mais baixos: o mínimo diário, entre as 14h e as 15h, é de 20 euros por MWh, bem abaixo dos picos de 131 euros de manhã e de 150 euros à noite.
A amplitude de preços no mercado grossista vai variando de dia para dia. Na passada terça-feira foi mais expressiva, oscilando entre um mínimo de 7 euros por MWh às 14h e de quase 160 euros por MWh às 20h. Esta sexta-feira variará entre um mínimo de 3,5 euros por MWh (é eletricidade quase de borla) e um máximo de 93,8 euros.
Tipicamente, o sistema elétrico oferece-nos almoços económicos, para nos cobrar jantares mais caros. Mas o preço grossista da eletricidade é apenas uma parte da conta a pagar: não se esqueça de que pagamos também o transporte e distribuição da energia, as rendas aos municípios, o diferencial de custo das remunerações garantidas face aos preços do mercado, a convergência com as regiões autónomas, a tarifa social, o IVA e a contribuição audiovisual (e a lista do que pagamos numa fatura de eletricidade continua). A dita “conta da luz” é mais rica que um bom cabaz de Natal.
Ao longo da última década Portugal teve uma expansão muito significativa da sua capacidade de produção renovável (e 2024 foi mais um ano recorde para a energia solar, como já escrevemos). Como mostram os dados da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), a soma da potência hídrica, eólica e fotovoltaica saltou de 11,5 gigawatts (GW) em 2015 para 19,9 GW hoje. Isso não se traduziu numa queda simétrica do preço final da eletricidade pago pelos consumidores, o que poderá criar, numa primeira leitura, a ideia de que as famílias portuguesas nada ganharam com esta transição energética.
Contudo, importa considerar, por um lado, que a capacidade renovável não produz eletricidade à máxima potência a todas as horas, e, por outro, que, embora a fonte renovável seja gratuita, os equipamentos que a aproveitam não o são. Toda a produção elétrica tem custos fixos. Mas a renovável tem, ainda assim, custos relativamente baixos quando comparada com outros meios de geração, como as centrais a gás (ou as termoelétricas a carvão).
A última análise da Lazard sobre o custo nivelado das diversas tecnologias de produção de eletricidade nos Estados Unidos (com dados de 2024) situava o custo das centrais solares de grande escala entre 29 e 92 dólares por MWh (já os painéis solares residenciais têm um custo nivelado mínimo de 122 dólares), ao passo que a eólica em terra tem uma banda de preços de 27 a 73 dólares. O custo nivelado, recorde-se, é um valor indicativo do preço mínimo a que um produtor precisará de vender a sua eletricidade para recuperar o investimento, considerando as especificidades de cada tecnologia e a sua vida útil. As centrais de ciclo combinado a gás, por seu turno, apresentam custos nivelados de 45 a 108 dólares por MWh, as centrais a carvão de 69 a 168 dólares e a energia nuclear de 141 a 222 dólares.
A análise de custos nivelados deve ser feita, porém, com cautela, porque uma central solar ou um parque eólico não garantem, por si só, potência firme e disponível a qualquer hora para o sistema elétrico, ao contrário das centrais a gás ou das nucleares (ainda que com condições diferenciadas de resposta à procura). O custo nivelado da eletricidade (LCOE na sigla em inglês) é um bom indicador para quem investe, não tanto para quem consome: afinal, precisamos de eletricidade 24 horas por dia, o que irá requerer mais do que a energia vinda dos parques eólicos e centrais solares, seja pelo contributo das centrais a gás ou das hídricas ou das baterias (estas últimas ainda numa fase muito incipiente).
Ao longo da última década Portugal teve um quadro relativamente estável de preços finais de eletricidade para as famílias, como mostram os dados do Eurostat (que já publicámos na anterior edição da newsletter e aqui recuperamos). As famílias portuguesas têm pago menos do que a média da zona euro (e do que os consumidores franceses, com uma escalada de preços relevante), tendo tido um impacto bastante mais contido da crise vivida pela Europa entre 2021 e 2023.
No espaço de uma década o incremento de preço da eletricidade em Portugal (já incluindo taxas e impostos) foi bem mais suave do que na média da zona euro. E o contexto dos últimos anos foi largamente pressionado pelo aumento do custo do gás natural: em 2015 o contrato europeu de referência (TTF) rondava os 20 euros por MWh, mas em 2021 iniciou uma escalada que o levou a mais de 300 euros; nas últimas semanas o gás tem sido transacionado em torno dos 50 euros por MWh. Num mercado marginalista, em que a renovável não despachável (ou não armazenável) não cubra 100% da procura, haverá sempre uma parcela do consumo a cobrir pelas centrais a gás ou pelas hídricas. Com o preço do gás a custar mais do dobro do que custava há uma década, como esperar que o bolso do consumidor não seja de algum modo tocado?
A pressão sobre os preços da eletricidade das famílias europeias é evidente: com o gás próximo dos 50 euros por MWh e as licenças de emissão de dióxido de carbono (CO2) a mais de 70 euros por tonelada, o preço mínimo que uma central de ciclo combinado cobrará para gerar eletricidade rondará os 120 euros por MWh (e apenas cobrirá uma parte dos seus custos).
Agora coloque-se na pele do gestor de uma empresa de energia que sabe que, num quadro de crescente penetração das energias renováveis, as suas centrais a gás estão condenadas a uma utilização residual. No mais recente relatório de monitorização da segurança de abastecimento do sistema elétrico, a Direção-Geral de Energia e Geologia alerta não só para a necessidade de manter as centrais a gás como uma garantia de segurança, mas também para a importância de equacionar uma remuneração por capacidade, um pagamento fixo que torne economicamente viável a continuidade da operação dos ciclos combinados.
Durante anos as tarifas garantidas aos parques eólicos, mini-hídricas, algumas centrais solares mais antigas, centrais de biomassa, cogerações e demais produtores do regime especial (PRE) foram amplamente criticadas pelo sobrecusto que acarretavam para o sistema elétrico, face aos preços médios do mercado grossista. Mas vivíamos no tempo do gás barato. A produção com remuneração garantida tem hoje em Portugal um custo médio de 96 euros por MWh, embora a eólica (que representa a fatia de leão) apresente um preço médio de 83 euros por MWh (segundo dados da ERSE). Em janeiro o preço médio no Mibel rondou os 97 euros. Em dezembro ultrapassou os 111 euros.
A produção eólica, frequentemente mal vista por operar ao abrigo de uma remuneração garantida, está hoje a receber tarifas abaixo do mercado grossista, com um benefício efetivo nos custos do sistema elétrico e, por extensão, no consumidor. A produção fotovoltaica em Portugal, que na sua maior parte está em mercado (leia-se: sem tarifas garantidas), vai sendo remunerada ao sabor do vento (e do gás), sujeita às frequentes depressões do preço grossista nas horas de sol.
Agora imagine que, por estes dias, não teríamos metade da capacidade renovável que temos hoje. Imagine que tudo o que instalámos de centrais solares, parques eólicos e capacidade hídrica na última década não tinha sido instalado. E que o volume que essas unidades de produção hoje aportam ao sistema tinha de ser suprido pela oferta das centrais de ciclo combinado a gás e das barragens (lembrando que a água é um recurso precioso… e cobrado em conformidade). Imagine pagar o almoço ao preço do jantar. Sim, as renováveis mexem com o nosso bolso. Mas o gás ainda mexe mais.
DESCODIFICADOR
PRE. Produção do Regime Especial foi a nomenclatura que durante anos foi dada a um conjunto de produtores que, por lei, tinham garantida a venda da sua eletricidade à rede, com uma remuneração pré-definida. Aí se incluiu a maior parte da produção eólica que está ainda hoje em operação em Portugal, mas também outros produtores (como cogerações e centrais de biomassa, e algumas centrais solares mais antigas). A designação foi entretanto convertida para produção de remuneração garantida, mas nem toda ela tem sobrecustos para os consumidores de eletricidade: as centrais solares dos leilões de 2019 e 2020, por exemplo, têm um custo médio de 20 euros por MWh (que está bem abaixo do preço grossista médio da eletricidade, jogando, por isso, a favor dos consumidores).
E VALE A PENA LER
Portugal aproveita menos de um quarto da energia geotérmica que tem disponível no seu território, de acordo com a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que acaba de publicar a “Estratégia para o Desenvolvimento da Geotermia”, disponível aqui. Trata-se de um recurso que deverá ser mais explorado para incrementar a quota de fontes renováveis e endógenas na nossa matriz energética. O documento da DGEG elenca os passos a dar para melhor aproveitar a geotermia.
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