A energia é hoje um negócio em profunda transformação. Portugal soma recordes de investimento em energia solar, mas lá fora a Orsted, um dos maiores grupos na área das eólicas offshore, decidiu cortar em 25% o seu plano de investimento até 2030, e a Equinor anunciou uma travagem a fundo na energia verde, para canalizar mais recursos para o negócio petrolífero. Por cá, lemos que o investimento dos condomínios em painéis solares poderá vir a ficar sujeito a IMI. A transição energética está em marcha. Mas a locomotiva pode ter de parar em sucessivos apeadeiros. Pague, escute e olhe.
Esta quarta-feira o jornal Eco noticiava que a instalação de painéis solares no topo de edifícios arrisca vir a estar sujeita ao pagamento de IMI, a menos que, como sugerem vários fiscalistas, sejam criadas isenções. Mas suponhamos que elas não existem. E que um condomínio investe num sistema fotovoltaico ao qual ficará associado um valor patrimonial tributário de €30 mil. Sujeito à taxa mínima de IMI, pagará de imposto €90 por ano.
O montante de receita fiscal em causa será ridiculamente baixo para o custo em burocracia, consultoria e advocacia que a sua cobrança implicará. Mas o impacto da sua existência pode ir bem para lá do custo material do imposto, alimentando a sensação de que nem mesmo os investimentos das famílias e empresas em sustentabilidade escapam à voragem da máquina tributária.
Em 2024, como o Expresso escreveu esta semana, Portugal alcançou um novo recorde de instalações fotovoltaicas. E dos mais de 1,7 gigawatts (GW) adicionados quase um terço vieram de unidades de produção para autoconsumo (UPAC), ou seja, instalações associadas a pontos de consumo específicos, cuja finalidade é em primeiro lugar suprir a procura de uma família ou empresa, e não fazer negócio com a energia solar.
Os números da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) evidenciam a popularidade crescente do autoconsumo em Portugal, uma solução win-win-win: baixa a fatura de eletricidade, contribui para a redução de emissões e aproveita espaços artificializados ou próximos deles.
Num curioso comentário publicado esta semana na rede social Bluesky, um utilizador questionava a cobrança de IMI à “luz solar” no topo dos edifícios, considerando que o recurso não está disponível a todo o tempo. Será razoável admitir que uma casa com painéis solares, que reduzem a sua fatura com eletricidade, possa valer mais que um imóvel sem esses equipamentos, o que criaria um valor patrimonial mais alto e daria lugar a um encargo anual de IMI mais elevado. Mas apostar em painéis fotovoltaicos não é exatamente o mesmo que construir uma piscina.
A cobrança de IMI às energias renováveis foi, recorde-se, o tema de um projeto de lei apresentado pelo Partido Socialista no início de janeiro. O grupo de trabalho criado há um mês pelo Governo para rever a forma como se deve aplicar IMI a parques eólicos, centrais solares e barragens tem até maio para apresentar recomendações ao Executivo. Até lá correrá alguma tinta sobre a tributação dos centros eletroprodutores, que poderá alimentar múltiplas dúvidas sobre o enquadramento legal e fiscal do negócio da energia no futuro.
Se ao investimento em unidades de autoconsumo concretizado em 2024 em Portugal estiver associado um valor patrimonial tributário da ordem dos 400 milhões de euros, estaremos a falar de uma cobrança de IMI de pouco mais de 1 milhão de euros por ano. Provavelmente, não é isso que fará uma grande diferença nas contas dos municípios nem nos orçamentos de famílias e empresas. Mas os encargos dos projetos acabarão por subir, considerando a cobrança contínua do imposto ao longo da vida útil dos painéis solares (25 a 30 anos).
Este é um debate relevante, pois se hoje discutimos o IMI dos painéis solares amanhã estaremos a olhar para a fiscalidade dos veículos elétricos, num quadro em que quase tudo o que mexe (e também o que não mexe, à excepção, talvez, dos cemitérios) é taxável.
A fiscalidade pode ser uma ferramenta interessante para mudar os comportamentos dos consumidores e influenciar os investimentos privados. As energias renováveis são há décadas uma aposta consensual dos dois maiores partidos do país. A pesada taxação dos combustíveis e os benefícios fiscais da mobilidade elétrica são instrumentos importantes para promover a descarbonização do consumo de energia. Mas essa política deve andar de mão dada com a garantia de acesso às famílias, a custos comportáveis, combatendo a pobreza energética.
Porém, com a expansão das renováveis, em particular das centrais fotovoltaicas, tem sido evidente o desconforto de uma parte da sociedade portuguesa com o impacto visual dos novos projetos, ocupando parcelas do território antes dominadas por áreas verdes. Esse incómodo é evidente ao passarmos pelas caixas de comentários de publicações nas redes sociais sobre grandes centrais solares.
Ao longo dos últimos anos, vários autarcas têm posto em causa a necessidade e o interesse da construção de mais centrais solares ou parques eólicos, assumindo o princípio de que o seu quintal é mais precioso do que o do vizinho, procurando criar uma redoma que preserve o espaço e o património das comunidades locais.
Em alguns municípios o IMI que virá dos parques eólicos, das centrais solares e das barragens será uma pequeníssima fração dos orçamentos anuais. Mas será sempre um novo encargo que um produtor de eletricidade irá somar à lista de taxas e taxinhas, e que tenderá a refletir no preço a que vende a energia aos comercializadores, que, por seu turno, se repercutirá… Adivinhe. Isso mesmo: na sua conta de eletricidade.
A “conta da luz” tornou-se, ao longo dos anos, um muro das lamentações, alvo de protestos frequentes por volumosas faturas, onde, além da eletricidade propriamente dita, somos chamados a pagar a contribuição audiovisual (mais IVA), a taxa de exploração da DGEG (mais IVA) e ainda o “imposto especial sobre o consumo de eletricidade” (mais IVA, claro). E a isso se somam os custos de acesso à rede e, com eles, os chamados CIEG (Custos de Interesse Económico Geral), um caldeirão onde são despejados diversos encargos de política energética, decisões governamentais e outras medidas frequentemente confundidas com impostos (nuns casos são custos inerentes ao sistema elétrico, noutros nem por isso).
As escolhas que a cada momento fazemos sobre como tributar a energia podem influenciar as decisões de investimento de famílias e empresas. Num país que tornou ordinária uma contribuição extraordinária sobre as empresas de energia, e que procura reforçar a eletrificação de base renovável, que sinal transmitimos ao cobrar IMI aos antigos e novos produtores de eletricidade verde, que contribuirão para descarbonizar o consumo de energia, evitando largos milhões de euros em importações de combustíveis?
O debate sobre a cobrança de IMI a centros eletroprodutores ocorre numa etapa crucial da transição energética que Portugal está a trilhar. O país nunca instalou tanta nova capacidade fotovoltaica como em 2024, mas precisará de um ritmo ainda maior se quiser cumprir os objetivos do Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 (assumidos primeiro pelo PS e depois pelo PSD) e assegurar uma rápida descarbonização da nossa matriz energética.
Chegar a 2030 com uma quota de 93% de eletricidade renovável não será fácil. Será tecnicamente desafiante, obrigando a criar um cabaz de opções de backup e segurança para o sistema elétrico (continua por definir o futuro da Tapada do Outeiro, como aqui contamos), e uma robusta carteira de ativos de armazenamento de energia (desde baterias a centrais hídricas). Mas será mais difícil ainda se, pelo caminho, a fiscalidade transmitir sinais errados.
Com o volume crescente de centrais solares pelo país fora tem sido comum a percepção de que esta transição, além de ocupar extensas áreas de floresta, em nada contribui para aliviar a fatura energética dos portugueses. No entanto, os dados do Eurostat mostram que Portugal, mesmo com os polémicos CIEG na estrutura de custos do sistema elétrico, tem apresentado nos últimos anos preços finais para famílias e empresas abaixo da média europeia. O desenho do sistema elétrico nacional, mesmo com tarifas garantidas a diversos produtores de eletricidade, tem jogado a favor das famílias, com uma relativa estabilidade de preços. Tendencialmente, mais renováveis deixarão o sistema menos dependente da produção termoelétrica, com menos horas por ano para que as centrais a gás natural mandem no preço grossista.
Durante alguns anos Portugal foi visto como um destino relativamente seguro para investimento em energias limpas, perante uma vizinha Espanha olhada com alguma desconfiança pelos investidores internacionais, devido às medidas com cariz retroativo que no passado foram impostas aos produtores de eletricidade com tarifas garantidas. Todavia, os relatos que hoje vão sendo feitos por quem, no terreno, desenvolve projetos de energia renovável em Portugal, sugerem que o ambiente está mais adverso. Seja pela lentidão ou ausência de resposta das autoridades de licenciamento, pela dificuldade de obter aprovações, pelos canais de atendimento que não funcionam, pelas ameaças de novos impostos ou pelo risco de que um projeto já aprovado acabe contestado pelo Ministério Público num qualquer tribunal do país.
É um facto que o sector energético tem beneficiado de uma panóplia de apoios, acentuados mais recentemente pelos bolsos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). É vasto o quadro de subsídios para projetos de hidrogénio verde ou de geração de eletricidade renovável ou de outros investimentos associados à descarbonização. São €10 milhões por ano para a mobilidade elétrica. Para as baterias foram quase €100 milhões. O último aviso do PRR para gases renováveis somou €83 milhões. A lista continua.
São, na sua maior parte, apoios a fundo perdido, o que não significa que se trate de dinheiro desperdiçado. São verbas que ajudam a viabilizar as primeiras vagas de aposta do país em soluções que contribuirão para uma redução das nossas emissões de dióxido de carbono, com maior autonomia energética. Um benefício para o país que é difícil de quantificar. E seguramente mais difícil de monetizar do que o insaciável apetite de taxar. Pague, escute e olhe. O resto é paisagem. Mas, se quer poupar, em energia e impostos, não se esqueça de desligar o interruptor.
DESCODIFICADOR
IEC. O Imposto Especial sobre o Consumo de Eletricidade é uma subcategoria dos impostos sobre os produtos petrolíferos e energéticos. Foi criado em 2012 e apenas estão dispensados de pagar os clientes com tarifa social. Custa atualmente 0,1 cêntimos de euro por cada kilowatt hora (kWh) consumido, o que significa que com um consumo mensal de 300 kWh uma família pagará 0,3 euros neste imposto.
E VALE A PENA LER
A consultora Bain & Company publicou esta semana o seu mais recente relatório anual sobre fusões e aquisições, indicando que o valor global dos negócios está longe dos máximos históricos. No entanto, no sector da energia as transações ascenderam a 400 mil milhões de dólares, o valor mais alto dos últimos três anos. Mais detalhes podem ser encontrados aqui.
Fica por aqui esta edição da newsletter, que estará de regresso a 20 de fevereiro. Se tiver dúvidas, sugestões ou comentários, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. No Expresso encontrará mais energia para ler. Até breve!