A mobilidade elétrica é hoje um dos temas mais desafiantes do sector energético. Irá mexer com as nossas vidas. Estará mais ou menos presente na forma como nos deslocamos. Será crucial na descarbonização dos nossos consumos de energia, mesmo admitindo que nesse processo não há uma solução vencedora única. Do outro lado do Atlântico, Donald Trump declarou guerra aos carros elétricos, apesar de o seu mais afortunado apoiante ser acionista de referência da Tesla. Do lado de cá, a Comissão Europeia está a desenhar um programa europeu de apoio aos carros elétricos, que acabe com uma abordagem fragmentada de diferentes medidas de país para país. É um mercado em ebulição. Olhemos então para as suas promessas, desafios e oportunidades. Aperte o cinto.
Há dias a ACEA, a associação europeia de fabricantes de automóveis, publicou os números finais de 2024, dando conta de uma queda superior a 10% nas vendas de carros elétricos na União Europeia em dezembro. Com efeito, a procura deste tipo de veículos no espaço europeu está a enfrentar alguma resistência por parte dos consumidores: a quota dos carros elétricos nas vendas totais de automóveis na UE recuou de 14,6% em 2023 para 13,6% em 2024. Mas tanto os veículos a gasóleo como os movidos a gasolina (e que ainda têm a maior fatia do mercado) perderam quota.
O que os dados da ACEA mostram é que o principal ganho no ano passado foi para os carros híbridos (cuja quota subiu de 25,8% para 30,9%), o que poderá indiciar que os consumidores europeus estão interessados em reduzir a sua dependência dos combustíveis fósseis mas não suficientemente confiantes nas opções puramente elétricas.
Portugal, no entanto, apresenta um nível de adesão à mobilidade elétrica superior. Segundo a ACAP – Associação Automóvel de Portugal, a quota dos elétricos nas vendas de ligeiros de passageiros subiu de 18,3% em 2023 para 19,9% em 2024. E em dezembro chegou a 25,5%, apenas atrás dos 28,3% dos carros a gasolina.
Ou seja, no ano passado um em cada cinco carros vendidos no país foi elétrico. Se, por um lado, isso evidencia que nos próximos anos uma grande parte dos novos proprietários de carros continuará a consumir combustíveis, por outro sinaliza um crescente interesse do público em avançar para as motorizações alternativas.
Com mais de 41 mil carros 100% elétricos vendidos em Portugal em 2024, os dados da ACAP espelham um mercado pujante na mobilidade elétrica, mesmo com o estreito limite dos apoios do Fundo Ambiental para a compra deste tipo de veículos.
1. As promessas
A mobilidade elétrica promete contribuir para a descarbonização da matriz energética, substituindo uma boa parte dos consumos hoje feitos a partir de combustíveis fósseis nos transportes. Sendo a nossa produção de eletricidade crescentemente renovável, isso terá um benefício ambiental. Mas também ajudará diversas economias a diminuir as suas importações de produtos petrolíferos, passando a alimentar a mobilidade com a eletricidade produzida a partir de fontes endógenas. O veículo elétrico promete também aliviar a fatura dos utilizadores, assumindo que carregam os automóveis em ambiente doméstico, conseguindo em meia dúzia de anos recuperar o sobrecusto que os carros com baterias ainda apresentam face aos modelos de combustão.
Além do seu contributo para a redução das emissões e para a melhoria da qualidade do ar que respiramos, a mobilidade elétrica pode também mudar a forma como conduzimos, com automobilistas mais preocupados com a eficiência da sua condução, empenhados em maximizar a regeneração da bateria, deslocando-se a velocidades médias mais baixas, o que poderá ajudar a reduzir a sinistralidade rodoviária.
Há outras promessas que a mobilidade elétrica nos vem deixando, como a que postula que o carro elétrico poderá ser uma importante ferramenta de flexibilidade do sistema elétrico: os veículos poderão usar as suas baterias para durante curtos períodos de tempo injetar energia na rede, em vez de a consumir, ajudando a resolver desequilíbrios pontuais em algumas zonas da infraestrutura de distribuição elétrica (é o conceito V2G).
2. Os desafios
O que em inglês se designa como range anxiety (o receio de que a autonomia da bateria não permita chegar ao destino ou limite a nossa mobilidade, face aos motores de combustão) é um dos mais antigos desafios do carro elétrico, que vai sendo vencido à medida que a inovação permite desenvolver baterias com maior capacidade e veículos preparados para percorrer distâncias cada vez mais longas sem precisar de parar para ir buscar mais eletrões à rede.
Na perspetiva do consumidor, o facto de na aquisição ainda ter de pagar um “prémio” por um carro elétrico face ao custo de um veículo com motor de combustão é um desincentivo relevante. Algo que poderá mudar com a massificação da oferta de modelos elétricos (incluindo em gamas mais baixas do mercado automóvel) e com os limites mais apertados que a Europa está a impor para as emissões médias por carro vendido no Velho Continente. Isso poderá levar alguns fabricantes europeus a comprar créditos de carbono a marcas de carros elétricos… da China. E esta quarta-feira a Volkswagen admitiu que poderá reconhecer custos não recorrentes de €1,5 mil milhões por não cumprir os limites de emissões com a sua própria produção.
Esta quinta-feira o “Financial Times” debruça-se sobre os desafios da mobilidade elétrica no Reino Unido, notando que no país um em cada cinco carros novos são elétricos, mesmo com os cortes de apoios a este tipo de automóveis. Mas a limitação dos cheques para a compra de veículos livres de emissões está longe de ser o maior desafio da descarbonização da mobilidade.
O nosso país conta hoje com mais de 190 mil veículos puramente elétricos (dos quais 167 mil são ligeiros de passageiros), de acordo com a associação UVE, que cita dados da ACAP. A rede de carregamentos públicos Mobi.E, por seu turno, contabilizou no ano que passou mais de 282 mil utilizadores, que realizaram ao longo de 2024 um total de 6,1 milhões de carregamentos (o que significa que em média cada utilizador registado efetuou cerca de duas dezenas de carregamentos na rede pública no último ano).
É certo que o mercado da mobilidade elétrica é ainda uma pequena fração do parque automóvel em Portugal, mas o crescimento de quota que tem tido sugere que nos anos vindouros serão cada vez mais os automóveis movidos a eletrões, o que coloca desafios na gestão da rede elétrica. As projeções da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), no último Relatório de Monitorização de Segurança de Abastecimento (RMSA), apontam para um parque de 403 mil ligeiros de passageiros 100% elétricos em 2030 no cenário conservador e 450 mil no cenário mais ambicioso. Mesmo em 2040 ainda estaremos longe de um parque automóvel totalmente eletrificado, com a DGEG a estimar nesse horizonte uma frota de 1,7 milhões de carros 100% elétricos.
Trabalhar com projeções a 10 ou 15 anos num segmento de mercado em profunda transformação é arriscado. Em 2015, quando Portugal tinha 454 megawatts (MW) de potência fotovoltaica em operação, quem adivinharia que uma década mais tarde o país já teria mais de 5200 MW de capacidade solar? Nesse período a indústria fotovoltaica conheceu desenvolvimentos relevantes que, quer pela inovação tecnológica, quer pela massificação da produção, democratizaram a energia solar como um recurso barato nas políticas de descarbonização (e de aposta nas fontes endógenas, com redução das importações de combustíveis).
Nos painéis solares, como na mobilidade elétrica, a China afirmou na última década um poder de mercado colossal, desafiando as indústrias ocidentais. Em dezembro as vendas de carros elétricos na China cresceram 10% em cadeia, para 1,38 milhões de unidades, o que é exemplificativo da dimensão deste mercado asiático. Mais de um quinto dos quase 5,9 milhões de carros que a China exportou no ano passado foram elétricos. Os dados da associação europeia ACEA indicam que em 2023 a quota da China nos veículos elétricos vendidos na UE ascendia a 21,7%.
A popularidade dos elétricos está a dinamizar o mercado automóvel (e a dinamitar alguns fabricantes que tardaram em eletrificar a sua oferta), o que terá implicações relevantes no sector energético. Estará a rede elétrica portuguesa preparada para responder a um potencial disparo da procura por carros elétricos? O que será preciso para fazer face a um parque de 1 ou 2 milhões de baterias sobre rodas? E se as projeções da DGEG pecarem por defeito? No longo prazo, que infraestruturas precisamos de ter para aguentar um parque de 6 milhões de carros elétricos?
Façamos algumas contas, admitindo um consumo em torno de 15 kWh por cada 100 quilómetros percorridos, e um uso habitual de 50 quilómetros por dia, o que daria um pouco mais de 18 mil quilómetros por ano. Se Portugal tivesse um parque de um milhão de carros elétricos com este perfil, eles consumiriam 2,7 terawatts hora (TWh) de eletricidade, o correspondente a 5% do consumo médio anual de energia elétrica em Portugal. Multiplicando por seis (para a perspetiva de uma integral eletrificação do parque automóvel), o consumo dos carros elétricos passaria a equivaler a 30% da atual procura de energia elétrica no país. Seria um acréscimo substancial.
Mas um desafio muito particular é o perfil de consumo dessa futura frota de carros elétricos. Se, em busca das opções mais económicas, os consumidores optarem, em massa, pelos carregamentos domésticos (reservando as cargas rápidas, e caras, na via pública, para emergências), que resposta dará a rede? Quantos veículos serão ligados à tomada em simultâneo durante a noite? Um milhão de carros a carregar a uma potência de 3 kilowatts (kW), por exemplo, iria requerer da rede elétrica um total de 3 GW durante largas horas. Mas se esse mesmo parque optar por carregar as baterias ao dobro da potência (por metade do tempo), a rede precisaria de fornecer 6 GW. Multiplique por seis. Assumir uma total eletrificação do atual parque automóvel pode exigir da rede um redimensionamento de larga escala.
Mesmo admitindo que todo este processo será gradual, não acontecendo da noite para o dia, a expansão da mobilidade elétrica no país levanta questões relevantes do ponto de vista da gestão e regulamentação do sector. Parece inevitável que o sistema elétrico de amanhã terá de funcionar numa lógica verdadeiramente flexível ao nível da procura. Terá de ser posto em prática um mercado de eletricidade que ponha os portugueses a ajustar os seus consumos, com tarifas dinâmicas, preços variáveis hora a hora, para evitar que todos os proprietários de veículos elétricos carreguem as suas baterias exatamente ao mesmo tempo, o que poderá ser problemático, em especial em períodos de fraca geração de eletricidade renovável.
A eletrificação da mobilidade ligeira trará outros desafios. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) dos Censos de 2021, em 4,1 milhões de alojamentos familiares havia quase 2,4 milhões com estacionamento ou garagem, mas mais de 1,7 milhões de casas não dispunham desse espaço para o automóvel, o que criará um obstáculo adicional na adesão ao veículo elétrico, cuja vantagem hoje, face ao motor de combustão, reside no custo significativamente mais baixo da energia quando o carregamento é feito de modo lento, com as tarifas domésticas.
Hoje uma carga lenta de um veículo elétrico em casa poderá permitir ao proprietário gastar cerca de 3 euros a cada 100 quilómetros, mas o recurso ao carregamento rápido na rede pública atira o preço para perto dos 8 euros, em linha com o custo médio com um motor a gasóleo e ligeiramente abaixo do preço médio para um carro a gasolina, segundo os cálculos da associação UVE. Equacionar uma massificação da mobilidade elétrica, que inclua as famílias que não tenham uma garagem, implica repensar a logística e as condições dos carregamentos na via pública, desonerando essa opção e ponderando a instalação de mais postos nas áreas residenciais (e não apenas em locais de passagem, como centros comerciais, supermercados e estações de serviços).
3. As oportunidades
A mobilidade elétrica representa uma oportunidade de aprofundar a abertura do mercado energético, melhorando o ambiente concorrencial, com mais comercializadores e operadores de pontos de carregamento, e uma diversidade de ofertas e soluções para os consumidores, tirando partido da digitalização. Novos negócios nascerão, quer na gestão de energia para famílias e empresas, quer no fabrico e na instalação de equipamentos.
Este mês já deram entrada no Parlamento várias iniciativas legislativas visando uma maior concorrência e a simplificação do quadro de funcionamento da mobilidade elétrica. PS, Chega, Iniciativa Liberal e PAN apresentaram várias propostas, depois de há um ano a Autoridade da Concorrência ter detetado barreiras à expansão da rede de mobilidade elétrica, fazendo um conjunto de recomendações ao Governo. A AdC defendeu uma simplificação do modo de pagamento e mecanismos competitivos para a exploração de pontos de carregamento em áreas de serviço, entre outras propostas. Hoje a rede da Mobi.E soma mais de 5700 postos, com mais de 12 mil tomadas para carros elétricos. E há dias a gestora da rede pública anunciou a adjudicação de mais 312 pontos de carregamento em 62 municípios.
Mas se os decisores políticos considerarem que a mobilidade elétrica tem de ser parte do pacote de soluções para a descarbonização (e os compromissos assumidos por PS e PSD no Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 vão nesse sentido), será necessário algo mais do que salpicar o país com modernos postos de carregamento. A preparação de um quadro abrangente que incentive a generalidade das famílias a considerar a aquisição de um carro elétrico terá de ter em conta os complexos desafios que essa transição comporta, quer na gestão do sistema elétrico, quer nos custos que lhe estarão associados.
Essa reflexão deverá ser enquadrada pelas oportunidades que a descarbonização abre, e que não se esgotam na redução das importações de combustíveis fósseis. Uma considerável fatia dos equipamentos associados à mobilidade elétrica virá do exterior, mas o país tem competências e condições para atrair investimentos associados à transição energética. Num artigo de opinião no Expresso, Artur Patuleia aponta para o potencial da fileira das baterias, notando que o país “tem em mãos uma oportunidade de transformação da sua economia”, mas para isso “será necessário que Portugal adapte o seu quadro de política industrial”. Esta semana também a Savannah Resources comunicou ao mercado alguns resultados da sua exploração na mina do Barroso, revelando um “potencial significativo” de recursos de lítio, a somar às estimativas iniciais. No passado a Savannah já declarou que o seu projeto em Portugal permitiria extrair lítio suficiente para fornecer anualmente mais de meio milhão de automóveis. O país tem aí uma oportunidade de participar ativamente na cadeia de valor das baterias. A mineração não garantirá a nossa própria descarbonização. Mas é parte essencial de um novo quadro de redefinição da matriz energética global. E, com mais ou menos autonomia, a transição é feita quilómetro a quilómetro.
DESCODIFICADOR
V2G. O “vehicle-to-grid”, ou V2G, é um conceito que permite a um carro elétrico transmitir carga à rede, em vez de ser um mero consumidor da energia disponibilizada pela rede. Essa funcionalidade pode ser útil para ter o automóvel elétrico como auxiliar na resolução de limitações ou falhas numa determinada zona de rede, garantindo por alguns minutos o fornecimento de energia a partir da sua bateria. Este auxílio será uma prestação de serviços ao sistema elétrico, e, em teoria, poderá vir a permitir ao proprietário de um carro elétrico receber uma remuneração por esse contributo (e pela disponibilidade para em vez de carregar mais a sua bateria ceder à rede alguma carga).
E VALE A PENA LER
O think tank Ember acaba de publicar o “European Electricity Review 2025”, relatório anual que mostra que pela primeira vez a produção de eletricidade a partir do sol na Europa ultrapassou a geração a carvão, com a energia solar a alcançar uma quota de 11%. A Ember estima que em termos acumulados entre 2019 e 2024 a Europa evitou 59 mil milhões de euros em importações de combustíveis devido à nova capacidade eólica e fotovoltaica.
A newsletter termina aqui, e estará de regresso a 6 de fevereiro. Voltaremos de baterias recarregadas, com mais análise sobre o admirável mundo da energia. Até lá, pode partilhar sugestões, comentários, dúvidas ou críticas através do e-mail mprado@expresso.impresa.pt. Tenha um bom final de semana!