Os últimos dias têm sido uma aventura. Na senda da transição energética “faça você mesmo”, o velho carro sul-coreano com motor de combustão foi substituído por um novo made in China alimentado por eletrões, com uma autonomia de fazer inveja a alguns populares modelos das grandes marcas europeias. A mobilidade elétrica é uma aprendizagem. Desde os pontos de carregamento com uma potência inferior à anunciada, passando pelo desafio de gerir a bateria, moderando a velocidade e conferindo, a cada travagem, se é mesmo verdade que podemos ganhar uns quilómetros extra na viagem. O arranque é suave e silencioso. Aprendemos a viver mais devagar. Mas o caminho é mais atribulado do que se possa pensar.
Para começo de ano, não nos podemos queixar de falta de animação no encantador mundo da energia. O regulador lançou a consulta pública do próximo plano da REN para a rede elétrica, com um investimento proposto de quase 1,7 mil milhões de euros. Enquanto o preço do gás natural na Europa andou a namorar a fasquia dos 50 euros por megawatt hora (MWh), o presidente executivo da Galp divorciou-se da empresa (e aqui contámos a crónica de uma relação não anunciada).
Entre ódios e paixões, Donald Trump não morre de amores pelas energias renováveis e prometeu enterrar quaisquer perspetivas de expansão das eólicas nos Estados Unidos. Teve o condão de derrubar as cotações das empresas de energias limpas com negócios por lá, como a EDP Renováveis, que se afundou perto de 5%, para mínimos de quase cinco anos.
Como se a tempestade da eleição de Trump não bastasse para agitar o mundo e as perspetivas da transição energética, por cá temos também com que nos entreter. O Partido Socialista (PS), um dos grandes obreiros da aposta de Portugal nas energias renováveis nas últimas duas décadas, decidiu arrancar 2025 com um projeto de lei que “clarifica as regras e os conceitos atinentes à tributação do Imposto Municipal sobre Imóveis dos centros eletroprodutores de energias renováveis”. Um título pomposo para um diploma que, na prática, servirá para carregar de IMI a produção de eletricidade renovável, ao considerar que os equipamentos de produção devem ser contabilizados no valor patrimonial tributável dos parques eólicos, centrais solares e hidroelétricas.
O ex-secretário de Estado da Energia João Galamba, que não nutre especial simpatia pela atual liderança do PS, não foi meigo na reação. “PS quer penalizar as renováveis. É mesmo disso que o país precisa neste momento: penalizar o nosso principal fator de competitividade. Mais absurdo que isto não há”, escreveu Galamba no X.
Argumenta o PS que “a construção e exploração de centros eletroprodutores, nomeadamente barragens, eólicos e fotovoltaicos, tem impactos territoriais e socioeconómicos junto das populações locais que devem ser devidamente compensados no quadro do desenvolvimento e coesão territoriais”. Um ponto válido, mas que parece ignorar o quadro em que esses empreendimentos vêm sendo desenvolvidos ao longo de largos anos de governação… socialista.
Boa parte da expansão eólica que o país conheceu na última década e meia veio acompanhada de um regime de entrega aos municípios de 2,5% da faturação dos parques. Mais recentemente, a instalação de grandes centrais solares motivou legislação que atribui às autarquias compensações (suportadas pelo Fundo Ambiental e não pelos promotores) por cada megawatt (MW) verde instalado no seu território.
Em ano de eleições autárquicas, há uma probabilidade elevada de vermos crescer fenómenos de contestação ao impacto visual de centrais solares, parques eólicos e respetivas linhas de eletricidade, e uma corrida à angariação de receita para compor as finanças locais, como se a transição energética não fosse um desígnio nacional, com benefícios apropriados coletivamente pela generalidade dos consumidores de energia, num sistema elétrico que tem conseguido uma notável contenção de preços finais quando comparamos com o que se observa em várias geografias na Europa.
A iniciativa do PS em torno do IMI aplicável à produção de eletricidade renovável, dando a mão às pretensões da Associação Nacional de Municípios Portugueses, é um caso de estudo sobre os riscos das políticas públicas, e no caso concreto, sobre as ameaças que pendem sobre o processo de descarbonização que Portugal tem pela frente.
A transição energética tem beneficiado de um razoável consenso entre as duas maiores forças políticas no país, também alinhadas na recusa da opção da energia nuclear (tema sobre o qual poderá ler mais na edição desta sexta-feira do Expresso). A meta é alcançar 93% de eletricidade renovável até 2030 (atualmente nos 71%), garantindo que essa energia verde chegará ao consumidor a custos competitivos. Mas como consegui-lo se hoje prometemos ambição e amanhã anunciamos taxação?
Não se trata de criar privilégios ou novas rendas para o negócio específico de produção de eletricidade, mas que sinal se dá, neste capítulo, se se entender como justo taxar mais um parque eólico e uma central solar, e não, por exemplo, uma produção intensiva de eucaliptos, uma fábrica de automóveis, um olival ou quaisquer outros negócios que também povoam o território?
Nos Estados Unidos, Donald Trump nunca escondeu as suas preferências no capítulo da energia. Mas por cá o Partido Socialista sempre fez das renováveis uma bandeira, o que torna mais difícil de compreender a produção de legislação que poderá travar o interesse dos investidores pelo mercado nacional e encarecer os projetos que, ainda assim, avancem, porque nenhum agente económico deixará de tentar repercutir no preço de venda da energia os custos que tem de suportar, desde o preço dos equipamentos às rendas dos terrenos, passando pelos impostos a que está sujeito.
O que agora sucede com o IMI dos centros eletroprodutores acontecerá, inevitavelmente, com um outro importante vetor da transição energética. A mobilidade elétrica, hoje beneficiária de um cabaz de incentivos, quer para particulares quer para empresas, tem por agora um peso relativamente curto no parque automóvel. A transição das famílias e empresas dos carros de combustão para os elétricos não produziu ainda um desvio de receita fiscal relevante o suficiente para fazer soar alertas no Ministério das Finanças.
Com a progressiva adesão do país às motorizações elétricas, tenderá a encolher a receita de ISP (quase 3,2 mil milhões de euros até novembro, perto de 6% de toda a receita fiscal em Portugal). O incentivo de 4 mil euros para a compra de um carro elétrico pode ser uma ajuda relevante para muitas famílias, mas limitado a cerca de um milhar de compradores por ano. A realidade é que em 2024 foram vendidos no país mais de 41 mil carros elétricos (quase 17% de todas as vendas de carros em Portugal), o que evidencia que mesmo sem esse incentivo a mobilidade elétrica está a conquistar uma fatia considerável do mercado.
Caberá aos governantes desenhar as políticas e estratégias que canalizem os dinheiros públicos para onde eles são mais necessários. A taxa reduzida de IVA é mesmo necessária? Pode ser contraproducente para a missão de promover a eficiência energética? Ou seria preferível reservar parcelas mais generosas das verbas do Estado para apoiar as famílias vulneráveis, para as quais a fatura de eletricidade represente uma proporção maior do rendimento mensal? Na mobilidade elétrica, justifica-se ainda o cheque de 4 mil euros? Mas como resolver o desafio da vastíssima fatia da população que, vivendo em prédios sem garagem, não tem como fazer um carregamento doméstico de veículos elétricos, tendo apenas como alternativa os custos gulosos dos pontos de carregamento na rede pública?
Mais cedo ou mais tarde, Portugal terá de debater a vasta gama de incentivos e desincentivos ligados à descarbonização, e que não se podem traduzir apenas no desejo e no despejo de camiões de dinheiro de fundos comunitários, devendo também considerar os obstáculos que vão travando o ritmo da transição. Essa análise será crítica para a concretização de políticas públicas bem sucedidas rumo à neutralidade carbónica. Não a fazer deixa o país mais vulnerável a projetos que, na aparência de pequenos passos, podem redundar em grandes tropeções. Quem semeia ventos colhe tempestades.
DESCODIFICADOR
SMR. Os small modular reactors são uma nova geração de reatores nucleares de menor dimensão (até 300 megawatts, menos de um terço da potência dos reatores convencionais), que poderão na sua maior parte ser desenvolvidos em fábrica, reduzindo tempos e custos de construção, e conferindo, pelo seu caráter modular, maior flexibilidade na sua integração numa rede elétrica. Pode ler mais sobre energia nuclear nestas seis perguntas e respostas no Expresso.
E VALE A PENA LER
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) abriu a consulta pública do mais recente plano de investimento da REN para a rede de transporte de eletricidade. A proposta da REN, que prevê investimentos de quase 1,7 mil milhões de euros, explica o que deverá mudar na rede na próxima década e com que impacto tarifário. O documento pode ser consultado aqui.
Esta edição da newsletter termina aqui. A próxima virá a 23 de janeiro. Tem dúvidas, sugestões, reparos ou outros comentários? Pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. E pode continuar a acompanhar no Expresso o essencial do mundo da energia, aqui. Até breve!