Na noite passada boa parte do país terá ligado os aquecedores para vencer o frio. Uma rápida pesquisa na base de dados da REN mostra-nos que entre as 20h e as 21h Portugal consumiu mais de 7800 megawatts hora (MWh) de eletricidade, um pico de procura como não se via desde abril. Nos últimos anos a digitalização fez maravilhas em prol do acesso à informação sobre energia. Conseguimos saber, em tempo real, se o país está a consumir mais ou menos eletricidade, de onde vem, e a que preço. Contudo, por mais planos que façamos, é hoje difícil dizer, com grande certeza, que energia teremos no futuro.
Se se questiona, afinal, sobre a eletricidade que consumimos a cada hora, pode espreitar aqui no sistema da REN. Se pretende mais detalhes sobre como ela é produzida, também pode ver no Datahub. Quer alguma granularidade sobre a rede de distribuição de eletricidade? Veja o portal de dados da E-Redes. Na noite passada, com a queda da temperatura, Portugal consumiu mais eletricidade, mas a ponta de consumo esteve ainda longe do máximo histórico de 9,88 gigawatts (GW) de janeiro de 2021.
Ora, para cobrir essas pontas, e garantir que em noites geladas não ficamos a bater os dentes com o frio, precisamos (além de boas mantas e cobertores) de um sistema elétrico robusto, com redes capazes de assegurar o trânsito desde as fontes de produção aos milhões de pontos de consumo. Das centrais hidroelétricas aos parques eólicos, passando pelas centrais de ciclo combinado a gás e pelos parques fotovoltaicos, todas essas infraestruturas exigem milhares de quilómetros de linhas de transporte e distribuição que rasgam colinas e montes verdejantes com torres e cabos, uma infraestrutura desenhada por excesso, com redundâncias. Mero incómodo visual? Ou um ativo imprescindível dos tempos que correm? Os fenómenos NIMBY farão parte do desafio de transição que enfrentamos, mas importa pensar na complexidade de tudo o que está por trás do interruptor quando decidimos, numa fria noite de outono, reforçar o aquecimento em casa.
Não haverá transição energética bem sucedida sem o investimento de somas colossais em novos equipamentos que permitam a cada país tirar o máximo partido dos seus recursos endógenos. Um dos mais recentes relatórios da Agência Internacional de Energia (AIE), denominado “Energy Technology Perspectives”, ajuda-nos a refletir sobre os desafios que temos pela frente. Os dados da AIE indicam que o mercado das tecnologias de energia limpa em 2023 rondava os 700 mil milhões de dólares (660 mil milhões de euros), devendo triplicar até 2035, para 2,1 biliões de dólares (1,98 biliões de euros). A fatia de leão virá dos veículos elétricos e baterias, com parcelas mais pequenas associadas à energia solar e outras tecnologias “verdes”.
O documento da AIE começa por notar que três áreas de políticas públicas estão cada vez mais interligadas: energia, indústria e comércio. O valor de mercado de seis tecnologias-chave (fotovoltaica, eólica, carros elétricos, baterias, eletrolisadores e bombas de calor) quase quadruplicou desde 2015 até 2023, esperando-se agora que triplique até 2035, para mais de 2 biliões de dólares. “Isto é próximo do valor médio do mercado petrolífero global nos anos recentes”, refere o relatório da AIE.
O relatório da AIE lembra-nos que o comércio global de tecnologias de energia limpa assenta sobretudo nos veículos elétricos (um mercado que mais do que duplicou desde 2020) e nos equipamentos fotovoltaicos. E sublinha que “uma grande onda de investimento industrial em tecnologias limpas está em curso, com muitas novas fábricas construídas pelo mundo fora”. A China continua a ser a região mais barata para o fabrico dos equipamentos necessários para a transição energética, ainda que esse não seja o único fator a ter em conta. “Comparando com a China, em média custa mais 40% produzir módulos fotovoltaicos, turbinas eólicas e baterias nos Estados Unidos, mais 45% na União Europeia e até mais 25% na Índia”, pode-se ler no documento.
Embora Pequim assegure fortes economias de escala no fabrico dos equipamentos críticos para a transição energética, a pesquisa da AIE junto de mais de meia centena de fabricantes indica que há outros fatores, além dos custos, que influenciam as decisões de investimento, desde as políticas de apoios ao acesso aos mercados e às competências e qualificações, bem como o acesso à infraestrutura. O mundo tem hoje na transição energética um desafio industrial de monta, com os mais diversos países a aprovisionar-se dos equipamentos necessários para reduzir a sua dependência fóssil. Como nota o relatório da AIE, “uma única viagem de um grande navio cheio de painéis fotovoltaicos pode providenciar os meios para a geração de eletricidade equivalente à gerada a partir do gás natural carregado em mais de 50 navios de gás natural liquefeito, ou a partir do carvão de 100 grandes navios”.
Esta quinta-feira o “Financial Times” revela que a Alemanha ordenou a proibição de descarga de gás natural russo nos seus portos, depois de na quarta-feira a austríaca OMV ter alertado para uma potencial suspensão do fornecimento de gás da Rússia, o que já fez subir a cotação do contrato de referência na Europa, o TTF, para um máximo de quase um ano. Com isso vem um natural encarecimento do preço grossista da eletricidade. E nada como o ano 2022 para nos lembrarmos do dramático impacto económico da nossa dependência fóssil: o disparo do preço do gás pressionou a fatura elétrica e os custos das indústrias, alimentando uma espiral inflacionista que se repercutiu em quase todos os aspetos das nossas vidas (incluindo as rendas da habitação).
O investimento em tecnologias verdes, como as identificadas no estudo da AIE, permite aproveitar recursos endógenos, diminuindo consideravelmente as importações de combustíveis fósseis, ainda que seja preciso assegurar a manutenção das centrais necessárias para o backup do sistema elétrico, para garantir que nos dias sem vento, sem sol ou sem chuva os consumidores continuarão a ter capacidade para manter as luzes ligadas.
Os mais recentes relatórios mensais da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) são ilustrativos da trajetória que o sistema elétrico nacional tem vindo a seguir. No período de 12 meses até setembro o consumo nacional de gás natural caiu 23% em termos homólogos, devido principalmente à queda da produção de eletricidade nas centrais de ciclo combinado, fruto de um bom ano hídrico (que foi, aliás, parte da explicação do aumento do lucro da EDP nos primeiros nove meses do ano).
Além da hídrica, contamos já com os benefícios da explosão do investimento fotovoltaico pelo país fora (em setembro a potência solar passou os 5 gigawatts), e vamos tendo alguns sinais de expansão da capacidade eólica em terra (enquanto persistem incógnitas sobre o que faremos no mar). Conforme o Expresso revelou há dias, a Endesa recebeu da Agência Portuguesa do Ambiente “luz verde” para desenvolver um dos maiores parques eólicos do país, aproveitando a ligação à rede que pertencia à central a carvão do Pego. Se esse projeto e um outro, de larga escala, que a Iberdrola quer desenvolver no Alto Tâmega saírem do papel, teremos um incremento de quase 10% na capacidade eólica do país.
Como bem alertava um leitor há uns dias, potência não é energia, e fontes como os parques eólicos e as centrais solares apenas produzem numa parte das horas do ano. Mas o projeto que a Endesa está a desenvolver é ilustrativo da necessidade de termos um modelo otimizado de gestão da rede elétrica, combinando os diferentes perfis de geração do vento e do sol com uma forte capacidade de armazenamento por baterias. No sistema do futuro contaremos também com uma gestão flexível da procura e com as centrais hidroelétricas e os seus sistemas de bombagem.
A urgência climática obrigará os governos a assumir o caráter prioritário da transformação da matriz energética, criando o enquadramento regulatório adequado para uma maior incorporação de fontes limpas no consumo. Ideias não faltam. E são múltiplos os focos de interesse dos jovens investigadores no país, como atesta a mais recente edição de prémios da REN.
A transição verde do país leva já largos anos. Há pouco mais de década e meia o Governo de José Sócrates lançou um plano de barragens e concursos eólicos que permitiram dotar o país de cerca de 2 gigawatts (GW) para tirar partido do vento. Essa capacidade era substancial para o sistema elétrico que então tínhamos. Hoje precisamos de pouco mais de ano e meio para instalar essa potência em centrais solares. A aposta eólica de Sócrates foi um marco no desenvolvimento do sector elétrico no país. Conferiu às empresas de energia um quadro seguro de investimento, com tarifas de venda de eletricidade à rede garantidas por 15 anos (e que ainda vão pesando nas tarifas de acesso à rede). Por outro lado, trouxe contrapartidas industriais relevantes, criando clusters de fabrico de componentes eólicos nas regiões de Aveiro e Viana do Castelo, que ainda hoje empregam largas centenas de pessoas e alimentam as exportações.
Com a China bem consolidada como grande fornecedor mundial de soluções para a descarbonização, a reindustrialização da Europa é uma empreitada ambiciosa e difícil. No seu relatório, a AIE elenca os diversos pacotes que nos últimos anos a Europa anunciou, desde o Net Zero Industry Act ao Critical Raw Materials Act, passando pela Aliança Europeia para as Baterias, entre outras iniciativas. Os problemas vividos pela sueca Northvolt são mais um sinal da complexidade da missão europeia para promover a sua própria fileira industrial no domínio da descarbonização.
E onde fica Portugal? Nos últimos anos surgiu no país uma miríade de projetos industriais (ou intenções de investimento), desde o fabrico dos equipamentos de energia das ondas da sueca Corpower à produção de eletrolisadores para o negócio do hidrogénio verde. Neste último domínio as dores de crescimento são evidentes. A Fusion Fuel, que em 2020 entrou no índice norte-americano Nasdaq, enfrenta agora a exclusão dessa bolsa, por insuficiência de capital, mesmo depois de ter assegurado 55 milhões de euros em subsídios públicos (boa parte deles em Portugal).
O potencial avanço de um leilão eólico offshore no nosso país será a próxima grande oportunidade de dinamizar uma indústria associada à energia. Mas continuam a ser muitas as incógnitas sobre o que querem os decisores políticos fazer desse tema. Hoje fortemente exposta ao turismo, a economia portuguesa tem a possibilidade de criar novos vetores de atração de capital. O país mantém-se suficientemente competitivo para conservar uma fábrica de automóveis de dimensão relevante como a Autoeuropa. E tem mostrado atrativos para seduzir investidores na cada vez mais importante economia dos dados (o investimento da Start Campus, em Sines, é um exemplo, e não é caso isolado).
Mas para que a reindustrialização ligada à energia se possa materializar na atração de investimento e criação de emprego o país precisa de se libertar do pesadelo burocrático, administrativo e judicial que ainda enreda a vida dos promotores. O projeto da maior central fotovoltaica do país, que prevê instalar mais de 1 GW em Santiago do Cacém, recebeu a declaração de impacte ambiental favorável (condicionada) em janeiro de 2023. Volvidos quase dois anos, Prosolia e Iberdrola não sabem se e quando conseguirão avançar com o empreendimento, depois de no início deste ano o Ministério Público ter avançado para tribunal contestando a decisão da Agência Portuguesa do Ambiente de viabilizar o projeto. Casos como o de Santiago do Cacém poderão levantar entre quem investe fundados receios de que projetos de maior dimensão, já aprovados pela APA, acabem travados num qualquer tribunal do país em intermináveis processos movidos já não apenas por cidadãos mas também pelo Ministério Público.
Há uns anos Portugal era visto como um mercado recomendável no domínio do investimento em energia renovável, livre da tentação governativa de adotar medidas retroativas que se observou em Espanha no domínio da remuneração de alguns produtores. Mas alguns dos episódios recentes da história de transição energética do lado de cá da fronteira poderão alterar a percepção de risco por parte dos investidores. Mais risco, mais custos. Ou menos investimento. Ou ambos. O que tornará ainda mais difícil o processo de redução da nossa dependência de combustíveis fósseis, de combate às alterações climáticas. E limitará as hipóteses de fomentar novas indústrias vinculadas à descarbonização. Por trás do interruptor e da eletricidade garantida a cada segundo há mesmo um mundo crescentemente complexo.
DESCODIFICADOR
NZIA. O Net Zero Industry Act foi uma iniciativa legislativa proposta pela Comissão Europeia em março de 2023 e adotada em junho desse ano para acelerar a transição energética da Europa rumo à neutralidade carbónica. Um dos objetivos é que em 2030 o Velho Continente consiga garantir que pelo menos 40% dos equipamentos instalados nessa transição sejam de fabrico europeu. Também define objetivos de captura de dióxido de carbono. A iniciativa prevê que estas novas indústrias tenham benefícios sobre outras, como o acesso a licenciamento mais rápido e tratamento urgente em processos judiciais.
E VALE A PENA LER
A Agência Internacional de Energia (AIE) publicou em outubro o relatório anual “Energy Technology Perspectives”, que percorre os últimos desenvolvimentos a nível global de várias tecnologias que serão críticas para a transição energética. Pode ser consultado aqui.
Esta edição da newsletter termina aqui. Se tiver alguma dúvida, crítica, sugestão ou outro comentário, pode contactar-me pelo e-mail mprado@expresso.impresa.pt. A próxima edição chegará a 28 de novembro. Até lá, continuaremos a trazer-lhe mais energia no Expresso. Tenha um bom resto de semana!