Ao longo dos anos Portugal vem apresentando indicadores positivos de qualidade de serviço na rede elétrica. A infraestrutura responde razoavelmente bem às flutuações diárias do consumo, às variações sazonais da procura e à crescente incorporação de eletricidade renovável. Mesmo no verão, quando parte do país ruma ao Algarve de férias e puxa pelo consumo a Sul, o sistema aguenta: dados da E-Redes mostram que em agosto do ano passado o consumo elétrico no distrito de Faro superou os 261 gigawatts hora (GWh), mais 42% do que em abril. As redes têm de estar preparadas e dimensionadas para distintos perfis de procura ao longo do ano. E a perspetiva de uma ainda maior quota de eletricidade renovável obrigará o país a estar dotado de flexibilidade adicional. Esta quinta-feira, à boleia da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a cotação de referência do gás natural na Europa subiu para o valor mais alto desde dezembro do ano passado, o que reforça a importância de tornar o sistema elétrico menos vulnerável ao preço de um recurso que não controlamos. Um dos grandes desafios dos próximos anos será alcançar níveis relevantes de armazenamento com baterias. O tiro de partida acaba de ser dado.
Já tínhamos analisado o tema das baterias numa das primeiras edições desta newsletter, em abril do ano passado, mas hoje o tema volta a ganhar importância, à luz do aviso que o Fundo Ambiental tem em marcha, e justifica que o revisitemos.
O Governo anunciou no final de julho a abertura de um prometido aviso do Fundo Ambiental para distribuir 99,75 milhões de euros de verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para sistemas de baterias acoplados a unidades de produção de eletricidade renovável, como centrais solares e parques eólicos. O aviso visa apoiar as empresas de energia para que até final de 2025 ponham em operação até 500 megawatts (MW) de potência de armazenamento em Portugal Continental. Cada projeto poderá obter no máximo 30 milhões de euros, mas o valor do apoio não pode ir além de 20% do custo total. Na avaliação das candidaturas, os projetos de baterias a instalar em centrais já com licença de exploração levarão mais pontos do que projetos para centrais em fases mais atrasadas.
O aviso do Fundo Ambiental apenas apoia investimento em baterias acopladas a centrais de fontes renováveis, excluindo sistemas autónomos de baterias. Ao Expresso o Ministério do Ambiente e Energia esclareceu que “tomou as diligências necessárias junto da Comissão Europeia no sentido de averiguar a possibilidade de abrir o procedimento a sistemas de armazenamento autónomo, o que se veio a verificar inviável”. É que, segundo o Governo, incluir esse tipo de armazenamento implicaria abrir um processo de consulta a Bruxelas e “um período nunca inferior a seis meses”, o que “colocaria em risco” os prazos de conclusão dos projetos no âmbito do PRR. E a resposta do Ministério vem com uma alfinetada (já não é a primeira) ao anterior Executivo: “Para que estes timings fossem compatíveis, deveria o anterior governo ter tomado essas diligências, algo que nunca se verificou”. Questionado sobre se tenciona vir a alocar algum montante do PRR a um novo aviso para projetos autónomos de baterias, e quando, o Ministério do Ambiente diz apenas que está “a analisar essa possibilidade”.
O aviso do Fundo Ambiental traz quase €100 milhões de apoios, mas também suscita críticas. Ao Expresso o presidente da Apren – Associação de Energias Renováveis, Pedro Amaral Jorge, começa por reconhecer que os projetos a apoiar pelo Fundo Ambiental e pelo PRR “são de extrema importância para o sistema, para o mercado e para os promotores, uma vez que asseguram fiabilidade e estabilidade no aprovisionamento, e contribuem para maior regulação dos preços”. No entanto, a Apren está preocupada com “a evidente insuficiência do prazo estipulado para a apresentação de candidaturas”, que termina a 2 de setembro. Pedro Amaral Jorge lembra que estes projetos recorrem a consultoria externa, avaliações económicas e consultas ao mercado, o que se torna especialmente difícil durante o mês de agosto. “A manutenção deste prazo muito provavelmente trará como efeito a redução significativa do número de candidaturas, assim como a diminuição da qualidade e certeza das candidaturas que sejam apresentadas e aprovadas”, alerta o dirigente da Apren. E com isso aumenta o risco de que os projetos possam não ser executados. Desta forma, Pedro Amaral Jorge defende que o prazo das candidaturas seja estendido até 31 de outubro e que o prazo para a instalação das baterias seja prolongado um ano, até 31 de dezembro de 2026.
Não serão, note-se, as primeiras baterias em Portugal. Em 2016 a EDP (então através da EDP Distribuição, atual E-Redes) começou a explorar em Évora uma bateria de 0,47 MW de apoio à rede de média tensão. Também no Alqueva a EDP instalou uma bateria de 1 MW acoplada à central solar flutuante de 5 MW instalada na albufeira alentejana. Em 2023 a Eletricidade dos Açores (EDA), em parceria com a Siemens, EDP, Fluence e outras entidades, instalou um sistema de armazenamento de 15 MW na Terceira, num investimento de 14 milhões de euros, financiado a 85% por fundos comunitários. E nos últimos anos também a Empresa de Eletricidade da Madeira tem apostado nas baterias.
O concurso agora lançado, se for bem sucedido, dotará a rede elétrica continental de 500 MW de capacidade flexível, já no final do próximo ano. Não resolve todas as necessidades do sistema (longe disso), mas é um passo relevante para dar ao país a escala e a aprendizagem necessárias para nos próximos anos incrementar o recurso às baterias e, eventualmente, ir além da tímida meta de 1 gigawatt (GW) de baterias que foi inscrita na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima para 2030 (PNEC). O PNEC prevê mais de 20 GW de potência fotovoltaica para o final desta década e mais de 12 GW de potência eólica, o que poderá requerer uma maior capacidade de armazenamento para gerir os períodos de produção renovável excedentária (mesmo considerando que boa parte dessa nova potência servirá para fornecer nova procura, como o hidrogénio verde e a mobilidade elétrica).
A total descarbonização da eletricidade em Portugal é um caminho difícil e as últimas semanas têm evidenciado isso mesmo. No primeiro semestre as renováveis cobriram 82% do consumo elétrico nacional, mas em julho a quota renovável não chegou a 53%, segundo os dados da REN. No último domingo, 1 de agosto, o pico da produção somada de eletricidade solar e eólica injetada na rede da REN foi de 3 gigawatts (GW), alcançados pelas 15h30, quando a procura a nível nacional estava nos 4,7 GW. Ou seja, naquele instante, a soma do vento e do sol estava longe de suprir a totalidade da procura. Mas se nesse momento as baterias seriam inúteis, noutros não. E o cenário de mais potência renovável em Portugal deverá colocar o armazenamento como peça-chave do sistema elétrico. Essa expansão está em curso, sendo especialmente notória no setor solar (conheça aqui alguns dos maiores projetos fotovoltaicos em desenvolvimento em Portugal).
Ainda recentemente algumas empresas de energias renováveis se viram confrontadas com a necessidade de cortarem parte da sua produção para garantir o equilíbrio da rede elétrica. A 2 de junho o episódio de curtailment então registado pela REN reduziu a produção “verde” em 1,3 GW (entre as 10h e as 17h), um corte que abrangeu sobretudo parques eólicos, desperdiçando energia limpa que poderia, em alternativa, ter sido armazenada em baterias para ser injetada na rede mais tarde.
A aposta nas baterias de larga escala como solução de flexibilidade para o sistema elétrico nacional poderá nos próximos anos mobilizar investimentos significativos, e não faltam interessados em agarrar este novo mercado. Em abril a empresa Goldbreak anunciava a introdução em Portugal, numa fábrica na Trofa, de baterias de fluxo de ferro de longa duração, uma alternativa às baterias de iões de lítio. Em maio o jornal Eco revelava que as empresas Infraventus e Voltalia estavam a desenvolver projetos de armazenamento autónomos, com o diretor-geral de Energia e Geologia, Jerónimo Cunha, a admitir que ainda este ano Portugal poderia ter os dois projetos operacionais. E diversos investimentos fotovoltaicos pelo país fora estão a ser desenhados de raiz já com parques de baterias.
Globalmente o mercado de armazenamento de energia quase triplicou em 2023, segundo reportou em abril a Bloomberg NEF. O contexto é de redução de preços das baterias, em especial na China, onde no espaço de um ano o custo dos equipamentos com duas horas de armazenamento havia caído 43%. No que respeita especificamente às baterias de grande escala, o ritmo de instalações tem acelerado, como evidenciam os números da Agência Internacional de Energia (AIE).
Em 2022 foram adicionados 11,2 GW de baterias ligadas à rede elétrica, dos quais 4,8 GW na China e 4 GW nos Estados Unidos da América (EUA), com a União Europeia bem mais atrás, com pouco mais de 1 GW de novas instalações.
A corrida global às baterias, à semelhança do que ocorreu na última década com os painéis solares, é reflexo de uma redução do custo desta solução e das perspetivas de que outras tecnologias de armazenamento além do lítio possam emergir como opções viáveis para ajudar as redes elétricas a gerir a variabilidade das fontes renováveis. Ou para melhor responder à variação da procura. Em maio deste ano a francesa Neoen ganhou um contrato de 20 anos com a operadora da rede elétrica de Ontario, no Canadá, para montar um parque de baterias com 400 MW e quatro horas de capacidade, que servirá para absorver excedentes da oferta e reinjetar a eletricidade na rede nos picos da procura. Há dias, no Linkedin, António Vidigal, consultor e antigo presidente da EDP Inovação, apontava este projeto como um exemplo de como as baterias não serão apenas uma necessidade de sistemas mais expostos a energia eólica e solar: na região de Ontario 53% da eletricidade em 2023 foi nuclear (a eólica teve apenas 8% e a solar menos de 1%).
Nos EUA a aposta nas baterias já está a dar frutos. Uma análise de há uns meses da consultora Aurora Energy Research concluía que os sistemas de baterias no Texas permitiram na vaga de frio do último inverno, em janeiro, uma poupança de 750 milhões de dólares: esses parques de baterias entraram no mercado de serviços de sistema, libertando perto de 3 GW de capacidade de centrais a gás para o mercado do dia seguinte; estas centrais a gás passaram a poder vender a sua eletricidade no mercado spot, a preços mais baixos do que os que cobravam em serviços de sistema, desonerando os custos totais da energia para os consumidores texanos.
De acordo com a mesma fonte, citando dados da ERCOT (operadora da rede do Texas), no final do ano passado as baterias, com quase 4 GW, representavam 4,7% da ponta de consumo daquele Estado norte-americano. É o equivalente a ter em Portugal 465 MW de baterias (algo que alcançaremos no final do próximo ano se o aviso do Fundo Ambiental for bem sucedido).
O programa do atual Governo prometeu que até 2026 será desenvolvida uma “estratégia nacional de armazenamento de energia”. Isso implicará estudar o potencial das baterias associadas a parques eólicos e centrais solares, mas também avaliar o que pode o país fazer com outras formas de armazenamento, como o hídrico, que já é hoje, e poderá ser ainda mais, uma componente central na gestão da rede.
Vale a pena lembrar que este tema tinha já sido objeto, entre 2020 e 2021, de um estudo do Observatório da Energia (da Adene – Agência para a Energia), em articulação com a Direção-Geral de Energia e Geologia e com o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, que foi recentemente atualizado, no âmbito da revisão do PNEC. Essa atualização (que pode ser consultada aqui) recorreu a uma série de simulações, considerando uma potência de armazenamento hídrico de 3,9 GW (em linha com o previsto na revisão do PNEC, já considerando um projeto de bombagem na central de Alto Lindoso, que já noticiámos no Expresso), mas também 4 GW de armazenamento estacionário (o que é muito mais do que o valor de 1 GW de baterias assumido na proposta de revisão do PNEC). Essa combinação será “suficiente” para garantir as metas de emissões do PNEC, aponta o estudo, liderado por Carlos Santos Silva e Diogo Couceiro.
A revisão do PNEC, em consulta pública até 5 de setembro, é bastante mais conservadora quanto à evolução das baterias em Portugal até 2030. Mas a redução de custos desta solução poderá favorecer a adoção da tecnologia. No final do ano passado a Bloomberg reportava uma queda de 14% do custo das baterias de iões de lítio, fruto de uma redução do custo das matérias-primas e dos componentes e de um aumento da capacidade de produção. A última versão da comparação de custos nivelados da Lazard indicava que nas baterias de larga escala (em funcionamento autónomo) com quatro horas de capacidade o preço de venda de cada megawatt hora (MWh) necessário para viabilizar os projetos podia ir dos 170 aos 296 dólares (de 156 a 271 euros). É um custo ainda avultado. Mas considerando que, por cá, o PRR subsidiará um quinto do investimento, e que já temos tido vários dias com amplitudes elevadas de preços, podemos estar no momento em que a tecnologia tem condições para sair do papel, ou perto disso.
E nesta história Portugal não terá de se limitar a ser um elemento passivo. Na última edição do Expresso, o presidente executivo da Savannah Resources, Emanuel Proença, defendia que o país tem condições para ter uma cadeia de valor das baterias. “Isso tem todas as condições para acontecer agora. É agora e nos próximos anos que são tomadas as decisões de investimento e colocação no mapa das cerca de 300 gigafactories de veículos elétricos que se irão fazer pelo mundo fora. É nesta fase que se tomam as decisões de investimento para as refinarias de lítio e para as fábricas de baterias”, dizia o gestor. Precisaremos provavelmente de uns anos para avaliar se as promissoras perspetivas de crescimento da aposta nas baterias se confirmam e se Portugal consegue, de facto, uma industrialização ancorada neste vetor da transição energética.
Em março do ano passado um documento de trabalho da Comissão Europeia debruçava-se sobre o tema do armazenamento, atribuindo-lhe “um papel crucial” no sistema energético atual e futuro. Além de proporcionar “flexibilidade, estabilidade e fiabilidade”, os sistemas de armazenamento poderão baixar os preços da eletricidade nos períodos de ponta. Esse é um tema crítico: se para cobrir as pontas de consumo passarmos a ter à disposição múltiplos operadores com baterias e não apenas um cabaz de centrais hídricas e centrais a gás, teremos um ambiente mais concorrencial.
O mesmo documento da Comissão também lembrava que a procura crescente de baterias de lítio para carros elétricos poderá criar constrangimentos na disponibilidade de materiais para as baterias estacionárias, o que cria oportunidades para outras opções de armazenamento, como as baterias de sódio (ainda que estas apresentem uma menor densidade e menos ciclos de recarga) e as baterias de estado sólido (vistas para já apenas como opção para pequenos dispositivos, e não para instalações de grande escala). Em matéria de inovação, vale a pena ouvir a entrevista de junho de Maria Helena Braga no podcast Futuro do Futuro, investigadora da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, que há anos estuda este tema.
O aviso do Fundo Ambiental para distribuir quase €100 milhões a projetos de baterias em Portugal Continental parece ser um oportuno tiro de partida para impulsionar este novo mercado, mas durante algum tempo ficará no ar uma dúvida: cumprirá o país os mínimos olímpicos para dotar o seu sistema elétrico da necessária capacidade de armazenamento num quadro de crescente oferta de energias renováveis?
DESCODIFICADOR
Armazenamento. No sistema elétrico há várias formas de armazenar energia, para conseguir injetar eletricidade na rede quando ela é mais necessária e não apenas quando as fontes de energia estão instantaneamente disponíveis. O armazenamento hídrico é explorado há largos anos em Portugal, por via das albufeiras das barragens, sendo especialmente relevantes as centrais dotadas de turbinas reversíveis, isto é, sistemas de bombagem, que permitem transportar a água de um reservatório a jusante para um reservatório a montante, reaproveitando o recurso hídrico (ainda que essa bombagem consuma mais eletricidade do que a que é gerada posteriormente). Mas há também o armazenamento por baterias (usando diferentes materiais, sendo o lítio o mais comum), que tanto podem ser utilizadas na mobilidade ou em sistemas fixos, quer para uso doméstico, quer para uso industrial ou ligadas à rede elétrica, embora com capacidades de armazenamento bastante mais limitadas do que as das centrais hidroelétricas. As baterias são hoje tidas como uma solução para uso intradiário, deslocando volumes de energia do dia para a noite; e o armazenamento hídrico tem um potencial de uso mais vasto (com a bombagem a fazer arbitragem de preços intradiários, como nas baterias; ou com as albufeiras a serem usadas para uma gestão sazonal, entre estações, do recurso hídrico). Ao longo dos anos têm sido desenvolvidas pelo mundo fora outras opções, como o armazenamento por ar comprimido, embora com menos expressão do que o armazenamento hídrico e por baterias.
E VALE A PENA OUVIR
O podcast Cleaning Up já soma mais de centena e meia de episódios e um dos mais recentes é dedicado ao passado, presente e futuro da energia solar, numa conversa imperdível entre o consultor Michael Liebreich e a analista Jenny Chase, especialista da Bloomberg NEF em energia solar. Pode ser ouvido aqui.
Esta edição da newsletter termina aqui. A próxima chega a 22 de agosto. Se tiver sugestões, dicas, dúvidas, críticas ou outros comentários, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Votos de boas leituras no Expresso, de preferência com… baterias recarregadas de boa energia ;) Até breve!