Portugal alcançou no primeiro semestre uma marca histórica de incorporação de fontes renováveis no consumo de eletricidade, com as energias verdes a assumir um peso de 82%, o mais alto em 45 anos, segundo a REN – Redes Energéticas Nacionais. O facto, que coloca o país perto de uma das metas do Plano Nacional de Energia e Clima, terá o dom de provocar algum azedume entre as vozes mais críticas desta aposta, que nuns dias a qualificam como louca, e noutros como monstruosa, ao mesmo tempo que outros grupos de pressão procuram travar alguns dos projetos desta nova vaga de investimento, em defesa do interesse superior da conservação da natureza. Para alguns promotores é literalmente o caminho das pedras.
Estão ainda por instalar vários gigawatts de centrais solares já com direitos de ligação à rede. Algumas delas enfrentam o dito caminho das pedras. Esta semana a associação Zero condenou a aprovação, pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), da central de Ferreira do Alentejo (projeto de 187 megawatts da Q Energy), acusando o promotor de “destruir valores naturais” numa área com uma “formação geológica rara”, os gabros, rochas plutónicas.
A Zero veio lembrar que o LNEG – Laboratório Nacional de Energia e Geologia já mapeou áreas menos sensíveis para albergar novos projetos solares (ao que a APA respondeu que as “go to areas” ainda não foram de facto implementadas). Leia-se: os promotores que procurem outros quintais para as suas centrais. Vale a pena espreitar os documentos do licenciamento ambiental do projeto de Ferreira do Alentejo, para perceber se algumas destas preocupações foram tidas em consideração (spoiler alert: sim, foram).
O título único ambiental (TUA), com a declaração de impacte ambiental favorável condicionada, mostra que após as objeções iniciais de algumas entidades ouvidas no licenciamento o promotor reformulou o projeto, cortando em quase 17% (de 117 para 97,5 hectares) a área a ocupar pelos painéis solares, trocando o sistema de seguidores por estruturas fixas (o que irá diminuir em cerca de 11% a produção de eletricidade da central) e diminuindo ligeiramente o perímetro vedado, a movimentação de terras e a extensão dos acessos.
O licenciamento ambiental teve uma primeira consulta pública entre fevereiro e abril de 2023, e uma segunda consulta já em janeiro de 2024. A Zero pronunciou-se em ambas contra o projeto. Segundo o TUA, a associação ambientalista defendeu que “toda a área constitui um contínuo ecológico com um elenco vasto de espécies, não se excluindo a possibilidade de existirem outros valores naturais por descobrir”. Isso mesmo: “por descobrir”. Também se pronunciaram contra a central alguns cidadãos, por o projeto afetar um “património natural único” e “afloramentos rochosos de gabro com grande interesse científico devido à sua raridade”, rochas plutónicas às quais “está sempre associada uma flora muito rica”, sendo que “uma dessas espécies de plantas é a raríssima e espetacular Olho-de-lobo”, conta-nos o TUA, ao resumir as preocupações dos cidadãos, que defenderam ainda que existem “outros locais para a colocação de painéis”. Transição sim, mas mais ali ao lado.
No mesmo documento também se pode ler que “ao longo dos anos a destruição dos afloramentos rochosos, para limpeza dos terrenos para agricultura, tem sido muito intensa” e “um dos resultados visíveis é a enorme acumulação de blocos de rochas por toda a área”. “De acordo com o novo projeto, os "verdadeiros" afloramentos irão ser preservados, e somente serão removidas as acumulações de blocos na área, pelo que, do ponto de vista geológico, a informação geológica in situ será preservada”, garante ainda a APA, que mais à frente refere que “os maiores afloramentos estão totalmente protegidos de qualquer interferência pelo projeto”.
Ao mesmo tempo que reconhece que a central solar se justifica por se enquadrar no cumprimento das linhas de orientação nacionais no combate às alterações climáticas, a APA assume que o projeto comporta “impactes negativos muito significativos” ao nível da conservação de várias espécies de plantas. E por isso uma das dezenas de condições fixadas na declaração favorável foi a de “preservar as áreas potenciais” de três espécies consideradas críticas. “Esta preservação corresponderá a uma redução da área do projeto em cerca de 143 hectares”, podemos ler no TUA. O corte é de mais de metade da área de implantação total do projeto inicial, que era de 276 hectares.
A história de Ferreira do Alentejo não é muito diferente da de outros projetos fotovoltaicos, que suscitam a oposição de cidadãos e organizações não governamentais, com uma legítima preocupação pelo impacto paisagístico e pela conservação da biodiversidade. Mas é na avaliação da APA e na publicitação desse procedimento que são ponderados os diversos interesses envolvidos. As listas de condicionantes impostas aos promotores fotovoltaicos têm sido cada vez mais exigentes, mesmo quando a legislação comunitária aprovada no final de 2022, no quadro do REpowerEU, estipula o superior interesse público da instalação de projetos de energia renovável, para efeito de licenciamento ambiental (ainda que com uma disposição que garante que são necessárias medidas para garantir a preservação das espécies).
Nos últimos anos os grandes projetos de energias renováveis têm sido até um importante aliado na conservação da natureza, já que os respetivos estudos de impacte ambiental analisam detalhadamente territórios, espécies e fenómenos que antes tinham pouca ou nenhuma exposição mediática. Como nos conta a APA, alguns dos afloramentos rochosos de Ferreira do Alentejo são afinal blocos deslocados resultantes de prévias limpezas de terrenos para a agricultura. As únicas referências que surgem numa pesquisa no site da Zero por “gabros”, “rochas plutónicas” ou “afloramentos rochosos” estão mesmo nas notas de abril de 2023 e julho de 2024 sobre a central solar de Ferreira do Alentejo. Se outros méritos não tivessem, as fotovoltaicas têm pelo menos o dom de pôr a sociedade civil a refletir sobre o território e a biodiversidade.
Conciliar a conservação da natureza com a promoção de eletricidade verde nunca será um equilíbrio fácil, e disso já demos nota na anterior edição desta newsletter. Nem a proteção de rochas plutónicas ou a preservação da paisagem devem ser valores absolutos, nem a instalação de novas centrais deve ser feita a qualquer custo. Mas é do interesse público a redução das emissões de gases com efeito de estufa: o projeto de Ferreira do Alentejo produzirá 400 GWh por ano de eletricidade verde; se a mesma eletricidade viesse a ser produzida numa central de ciclo combinado a gás natural (temos quatro no país), implicaria a emissão anual de cerca de 140 mil toneladas de CO2. É aproximadamente 0,25% das emissões totais de CO2 do país.
A defesa da produção descentralizada e do autoconsumo é uma causa justa, mas é preciso reconhecer que o colossal desafio de descarbonização que temos pela frente irá requerer também a ocupação do território por projetos maiores. A ideia “transição energética sim, mas não aqui” será o melhor aliado da indústria dos combustíveis fósseis e essa dependência será perpetuada se não tomarmos decisões firmes de transformação da nossa matriz de consumo, o que implica também alterações profundas na forma como esse consumo é abastecido. E alguns sacrifícios.
Além das associações ambientalistas, a expansão das renováveis vem sendo vista com desconfiança por outras organizações, formais ou informais, que não escondem o seu desconforto com o espaço mediático hoje ocupado pela eletricidade verde, procurando, aqui e ali, desqualificar essa aposta. O abundante noticiário sobre essa vaga tem uma razão de ser: é que são estes projetos, e não outros, que estão ano após ano a atrair investimentos de centenas de milhões de euros para Portugal. E esse investimento está a refletir-se nos números da incorporação de renováveis no nosso consumo de eletricidade. Vejamos os dados relativos ao primeiro semestre de cada um dos últimos 15 anos.
Só nos primeiros cinco meses do ano foram instalados 692 megawatts (MW) fotovoltaicos, de acordo com a Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), a uma média de 138 MW por mês, um ritmo 35% superior ao do ano passado, que já havia tido um recorde de instalações. É como se apenas em cinco meses Portugal tivesse construído uma central com a potência da antiga central a carvão do Pego. Assumindo que esta dinâmica prossegue, o país estará a instalar a cada ano o equivalente a mais do que uma central termoelétrica de Sines… mas alimentada com o sol em vez do carvão.
Claro que este investimento solar não se repetirá todos os anos para sempre. E é evidente que centrais fotovoltaicas têm características distintas das termoelétricas, começando pelo facto de as primeiras não poderem produzir a qualquer hora. Mas estamos perante uma vaga de expansão renovável em Portugal que é crucial para a descarbonização, mesmo se a maior parte desse investimento ainda ocorre no setor elétrico, que representa somente um quarto do consumo de energia final do país, daí a necessidade urgente de políticas públicas viradas para a descarbonização dos transportes.
Esta semana a ministra do Ambiente assegurou que a revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) para 2030 subirá a meta de renováveis no consumo de energia final para 51% (a proposta do anterior Governo era de 49%), o que é exigente. Maria da Graça Carvalho também prometeu para setembro o aviso para a atribuição de apoios a projetos de armazenamento de eletricidade, e um plano nacional sobre este tema, o que é igualmente positivo.
A boa notícia é esta: estamos a avançar na transição energética e estamos a fazê-lo sem disrupções nas faturas pagas pelos consumidores de eletricidade. Como mostram os dados do Eurostat, os preços médios finais da eletricidade para famílias e empresas em Portugal desde 2015 foram pautados por relativa estabilidade (e competitividade no caso da indústria), mesmo num quadro de crescente incorporação de renováveis. Isso explica-se, como veremos mais à frente, pelo facto de a maior parte dos novos projetos não beneficiarem de tarifas subsidiadas (ao mesmo tempo que a capacidade já em operação com tarifas garantidas funciona como amortecedor da volatilidade do mercado, levando a que uma parte ainda relevante da eletricidade que consumimos tenha um preço estável e previsível).
Para os mais firmes defensores das termoelétricas há uma má notícia: não há investimento em novas centrais a gás ou a carvão em Portugal. E isso não é resultado de um jogo viciado por tarifas garantidas e “negócios para amigos”, como por vezes se tenta fazer crer. É o mercado a funcionar: não há hoje tecnologia mais barata para gerar eletricidade do que a fotovoltaica (é sintomático, aliás, que no país vizinho a Iberdrola tenha apresentado um projeto para hibridizar uma central a gás em Toledo… com uma central fotovoltaica de 400 MW). E há, em Portugal, um potencial ainda inexplorado para essa fonte, que vai fazendo o caminho de crescimento que já há década e meia foi trilhado pelas eólicas.
Lá fora, a Alemanha, que tem sido o motor europeu do investimento solar, prepara-se para alterar a política de subsídios para novos projetos renováveis, atribuindo apoios ao investimento em nova capacidade em vez de tarifas garantidas de venda de eletricidade, uma mudança mal vista pelo lóbi alemão das renováveis, por criar incerteza sobre os cashflows dos projetos e, por isso, encarecer o respetivo financiamento. É um tema de debate essencial: qual o melhor desenho de mercado para garantir a descarbonização do consumo energético?
Por cá, há largos anos que os novos projetos de eletricidade limpa são desenvolvidos sem subsidiação (com algumas excepções, com peso residual nos custos do sistema elétrico, como é o caso do parque eólico offshore Windfloat). Ainda assim, vários argumentos são frequentemente invocados para pôr em causa a aposta portuguesa na eletricidade renovável. Vale a pena revisitá-los.
As renováveis são fortemente subsidiadas? Sim e não. Vamos a números. A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) estima que a produção com remuneração garantida (PRG) produza este ano 19,7 terawatt hora (TWh), o que equivale a perto de 40% do consumo anual de eletricidade em Portugal (cerca de 50 TWh). Esta produção terá um preço médio de venda da sua eletricidade de 102,5 euros por megawatt hora (MWh), mais do dobro do preço médio do mercado grossista no primeiro semestre, que foi de 40 euros por MWh. Contudo, não só a PRG também inclui uma pequena parcela de cogerações alimentadas a gás natural, como nem toda a produção renovável tem essas tarifas garantidas: a energia das grandes centrais hídricas é vendida em mercado, tal como a maior parte da eletricidade fotovoltaica.
Nos últimos dias ilustres formadores de opinião do país têm citado, em diferentes espaços, um relatório da SU Eletricidade que associa à energia solar um custo médio de 315 euros por MWh em 2023. No meio dessa curiosa coincidência mediática (porque só pode tratar-se disso), há quem chame a atenção para o encargo dos ditos “produtores intermitentes”, confundindo custos com sobrecustos (não são a mesma coisa) e diagnosticando um “desastre”, que, segundo a mesma narrativa, está a destruir a nossa economia (a mesma economia que no primeiro trimestre crescia 1,5%, enquanto a zona euro não ia além de 0,4%).
Vejamos. A referida remuneração de 315 euros por MWh atribuída às fotovoltaicas cobre apenas uma pequena parte da produção solar em Portugal. A SU Eletricidade adquiriu àquele preço 446 gigawatt hora (GWh) fotovoltaicos. Ora, de acordo com a DGEG, a produção fotovoltaica no nosso país no ano passado ascendeu a 5474 GWh. Ou seja, os preços de mais de 300 euros por MWh que tantas vezes são associados às fotovoltaicas não chegam a representar sequer 10% da energia solar do nosso sistema elétrico, justamente porque o grosso desse negócio é feito sem tarifas subsidiadas.
Situação distinta é a da energia eólica: em 2023 foi comprada pela SU a um preço médio de 97 euros por MWh, e com um volume já bastante relevante de 12.618 GWh, cerca de 25% de toda a eletricidade que Portugal consumiu no ano passado. A eólica (que foi impulsionada há década e meia com contrapartidas industriais para o país que ainda hoje se mantêm) tem, de facto, uma remuneração garantida que pesa nos custos globais da eletricidade em Portugal. E esse encargo irá durar até expirarem os períodos de extensão de tarifas que foram concedidos no âmbito do Decreto-Lei 35/2013 (segundo a ERSE, a maior parte dos parques eólicos deverá passar a vender a sua energia no mercado a partir de 2028). O diploma de 2013 terá sido o calcanhar de Aquiles da política energética em Portugal na última década e meia, ao prolongar por até sete anos as remunerações de ativos cujo retorno já estava garantido pelos 15 anos das tarifas originais, adiando a entrada no mercado de um elevado volume de produção eólica. O diploma concedeu aos parques eólicos uma extensão tarifária num intervalo de 74 a 98 euros por MWh.
Note-se que nos primeiros três anos de vigência da extensão, os preços grossistas de eletricidade no mercado ibérico de eletricidade (Mibel) foram historicamente elevados (112 euros por MWh em 2021, quase 168 euros em 2022 e 88 euros em 2023), pelo que é de admitir que os parques eólicos que então entraram no período de extensão não tenham beneficiado, neste período, com o Decreto-Lei 35/2013. Mas no corrente ano o preço grossista médio está nos 40 euros por MWh, gerando ganhos aos produtores eólicos com extensão tarifária (já que garantem uma remuneração mínima de 74 euros por MWh), e, simetricamente, perdas aos consumidores de eletricidade (o sobrecusto continuará a afetar as tarifas de acesso à rede calculadas pela ERSE).
Mas vale a pena deixar uma ressalva: sim, a produção eólica hoje em Portugal gera um sobrecusto face aos preços grossistas, mas essa mesma produção e a restante eletricidade renovável não despachável (não mobilizável a qualquer instante) têm ao mesmo tempo um efeito benéfico para o consumidor, ao baixar o preço grossista (quanto mais eletricidade renovável entrar na rede a cada hora, menor será o volume de consumo a suprir por centrais a gás e centrais hidroelétricas, que, portanto, têm menos margem para marcar preços mais elevados no mercado grossista). Esse efeito é sistematicamente ignorado em muita opinião publicada e difundida no país, mas deve ser considerado para uma análise séria sobre os custos e benefícios de cada tecnologia energética. Os anos 2021, 2022 e 2023 foram marcados por preços grossistas altos, condicionados pela escalada do custo do gás natural. A primeira metade de 2024, contudo, teve uma elevada incorporação de eletricidade renovável, que contribuiu para afundar o preço grossista. Apesar desta volatilidade, os preços finais (como mostrámos no gráfico mais acima com dados do Eurostat) não subiram em Portugal como subiram no resto da Europa. E também isso vem sendo menosprezado por distintos observadores da nossa praça.
Além dos subsídios das tarifas garantidas, levanta-se a questão sobre se a concessão de remuneração garantida às renováveis impede outras tecnologias de competir no mercado. A produção de remuneração garantida (que inclui sobretudo eólicas, mas também mini-hídricas, cogerações, centrais a biomassa, centrais solares mais antigas, entre outras fontes) é colocada no Mibel, preenchendo uma parte significativa da procura de energia. Mas nem todas as renováveis têm remuneração garantida: são os casos das grandes centrais hídricas, das mais recentes centrais solares ou das componentes dos reforços de potência dos parques eólicos, por exemplo. E estes operadores competem no mercado com outras fontes, como as centrais de ciclo combinado e, no caso espanhol, as centrais nucleares.
No debate que a Associação Portuguesa da Energia promoveu a 27 de junho na Ordem dos Engenheiros, em Lisboa, o presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear, Bruno Gonçalves, defendeu “um concurso agnóstico”, que não privilegie à partida nenhum tipo específico de tecnologia de produção de eletricidade. Essa seria uma forma de verificar se existe ou não disponibilidade dos investidores para apostar em centrais nucleares em Portugal.
Só que o planeamento energético deve ser feito de forma criteriosa. Realizar um concurso cego permitiria pôr distintas tecnologias em livre concorrência pelo acesso à rede elétrica. Mas a política energética deve garantir a execução atempada dos projetos e a custos comportáveis para os consumidores. De bom grado os promotores de centrais eólicas e fotovoltaicas concorreriam contra projetos nucleares se o critério único de um “concurso agnóstico” fosse o preço. O planeamento deve reconhecer as características específicas das distintas tecnologias e o desenho dos procedimentos concursais precisa de ser cuidadosamente preparado para garantir a melhor execução possível dos projetos que o Governo pretenda incluir na matriz energética, ao mais baixo custo para famílias e empresas.
Licitar fotovoltaicas com preços-base de 45 euros por MWh e assegurar preços médios a 15 anos da ordem dos 20 euros por MWh, como ocorreu em 2019 e 2020 em Portugal, é vantajoso para o sistema elétrico (e para os consumidores). Mas importa reconhecer as limitações de fontes como o sol e o vento, e garantir, por mais alguns anos, a potência firme das centrais de ciclo combinado a gás. À medida que estas vão tendo índices de utilização cada vez menores (já que as renováveis vão suprindo uma fatia cada vez maior da procura), a gestão da rede terá de garantir que essa potência térmica se mantém à disposição, o que implicará equacionar mecanismos de remuneração justos para o serviço prestado por esses agentes. Não será um “concurso agnóstico” que resolverá esse desafio.
Esta é uma questão crítica. O reforço das renováveis deixa a segurança de abastecimento do sistema elétrico nacional mais vulnerável? O último relatório de monitorização da segurança de abastecimento da DGEG (que pode ser consultado aqui) traçava um cenário de teste de stress com o descomissionamento da central a gás da Tapada do Outeiro em março de 2024, o que não aconteceu, tendo o Governo aprovado um regime transitório para manter aquela capacidade disponível. Tecnicamente, alertava a DGEG, a trajetória conservadora desse estudo colocava o indicador LOLE (loss of load expectation) acima do padrão de segurança (5 horas de perda de carga por ano) em 2030, 2035 e 2040. “Num ambiente de funcionamento normal do mercado (com cerca de 2700 MW de capacidade para trocas comerciais nas interligações) é razoável considerar que existe capacidade de resposta a este cenário. Caso ocorram restrições nos mecanismos de mercado ou na capacidade de importação, em particular no mercado intradiário, a disponibilidade de meios nacionais será essencial para a garantia de abastecimento dos consumos”, explicava a DGEG.
Para já, a realidade tem mostrado que o sistema elétrico está a dar resposta positiva à maior penetração de renováveis. No primeiro semestre a incorporação de renováveis alcançou os 82%, e a quota do saldo importador não foi além de 10%.
A elevada quota renovável implica uma gestão mais flexível e dinâmica da rede. Sinal disso são os episódios, cada vez mais frequentes, de curtailment (redução forçada) nas renováveis. Segundo os dados da REN, o último corte do género ocorreu a 15 de junho, quando entre as 10h e as 18h, foram cortados 120 MW fotovoltaicos e 200 MW eólicos. Duas semanas antes, a 2 de junho, o curtailment chegou a abranger 1305 MW, na sua maior parte eólicos.
O lado positivo destes episódios é que mostram que o sistema elétrico está, já hoje, a conseguir responder de forma eficaz aos picos de oferta renovável, por vezes acima das necessidades de consumo do país. O reverso da medalha é que o país está a desperdiçar eletricidade oriunda de recursos endógenos e limpos, o que poderia ser evitado se o sistema elétrico fosse dotado de maior capacidade de armazenamento (seja ele hídrico ou por meio de baterias).
O nosso sistema elétrico tem beneficiado de uma abundante produção renovável, sendo o principal desafio verificar como irá a rede comportar-se na eventualidade do regresso de um ano mais seco: 2022 foi o terceiro ano mais seco desde 1931. Os níveis de armazenamento hídrico na maior parte do país estão acima da média das últimas três décadas para o mês de junho. De acordo com a REN, o armazenamento hídrico a 1 de julho, de 78%, equivalia a 2541 GWh (em linha com o verificado há um ano), um pouco mais de 5% do consumo anual de eletricidade no país. É o equivalente a um mês e meio de produção hidroelétrica (ao ritmo do ocorrido neste primeiro semestre de 2024). Um dos desafios futuros da nossa rede será aproveitar a capacidade crescente de centrais solares e eólicas para incrementar os níveis de armazenamento hídrico (através de sistemas de bombagem) e fazer face a períodos de menor precipitação.
Outra questão que vem surgindo no espaço público é a do aumento das importações de eletricidade. É um facto que, apesar do reforço da potência renovável no país, os últimos anos registaram saldos importadores elevados, que preencheram 18% do consumo em 2022 e 20% em 2023 (o mesmo não está a suceder em 2024, com uma quota de 10% do saldo importador). Embora esse período tenha coincidido com o desaparecimento das centrais a carvão da nossa matriz, essa não foi a causa do acréscimo da entrada de eletricidade vinda de Espanha, até porque Portugal esteve longe de esgotar a capacidade disponível de geração nas centrais a gás do lado de cá da fronteira. As importações estão dependentes do comportamento da oferta de eletricidade nos dois países da Península, funcionando como um mercado comum, que deixa os ciclos combinados e as centrais hidroelétricas ibéricas, entre outros produtores, em livre concorrência a cada hora do dia. Um maior peso das importações de Espanha num dado período significa que nesses momentos os consumidores portugueses beneficiaram, por via das interligações, dos mais baixos preços praticados pelos produtores do outro lado da fronteira.
É infrutífero e inconsequente debater as renováveis sem uma detalhada análise dos seus custos e benefícios. Será útil reconhecer que mais renováveis na rede introduzirão uma maior flutuação na oferta, com exigências acrescidas na gestão que é feita pela REN, podendo gerar em alguns períodos fluxos exportadores, e noutros fluxos importadores, mas também situações mais frequentes de congestionamento das interligações, suscitando mais momentos de separação de preços (market splitting) e de curtailment de alguma da produção renovável.
Esta gestão será crescentemente complexa com o reforço da potência renovável na rede. Ao mesmo tempo permanece a incógnita sobre se Portugal avançará, ou não, com parques eólicos offshore de larga escala, e que preço estaremos disponíveis para pagar por eles. O debate sobre as opções a seguir ganharia com maior e melhor reflexão sobre o que está em cima da mesa, prós e contras, e ganhos económicos, ambientais e sociais. Podemos sempre conceder a hipótese de a teoria do desastre, da loucura e dos monstros elétricos vir a confirmar-se. Afinal, até um relógio avariado acerta na hora duas vezes por dia. Contudo, diríamos que, apesar das pedras no caminho e de um ou outro pensamento mais arcaico que emerge das tertúlias energéticas que nos animam, a descarbonização do sistema elétrico em Portugal tem sido razoavelmente bem conseguida. E este é o património que importa de facto preservar.
Descodificador:
Go to areas. O pacote europeu REpowerEU, desenhado em 2022, logo após a invasão da Ucrânia pela Rússia e a crise do gás, que fez disparar os preços da eletricidade no Velho Continente, veio recomendar aos Estados-membros a criação de áreas privilegiadas para o desenvolvimento de projetos de energias renováveis. Cada país deveria identificar áreas menos críticas do ponto de vista ambiental nas quais centrais solares e eólicas pudessem ser desenvolvidas com um licenciamento mais célere. Volvidos dois anos, essas “go to areas” ainda não existem em Portugal, apesar de o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG) já ter elaborado um relatório técnico sobre o assunto.
E vale a pena ler:
A BP acaba de publicar a mais recente edição do seu “Energy Outlook”, um relatório anual que analisa os cenários de evolução da procura e oferta de energia até 2050. A procura petrolífera deverá diminuir nas próximas duas décadas e meia, mas o estudo admite que nos próximos 10 a 15 anos o petróleo ainda terá um papel “significativo” no sistema energético global. O documento pode ser consultado aqui.
Fica por aqui esta edição da newsletter. A próxima virá a 25 de julho. Até lá, se quiser partilhar comentários, críticas, reparos, dúvidas ou informações, pode entrar em contacto através do e-mail mprado@expresso.impresa.pt. Continuação de boas leituras no Expresso. Com boas energias!