Expresso Energia

No meu quintal

No meu quintal ainda não há laranjas. Ou melhor: há, mas estão verdes. Mas no meu quintal posso regar as velhas laranjeiras quando quiser, acender a luz à noite quando me aprouver, ligar o cortador de relva sempre que me apetecer. Só que o meu quintal não é só meu, é parte de um todo: vivemos em rede, interligados, a cada instante. De quando em vez, os nativos das terras do Meu Quintal de Baixo protestam contra uma nova linha de alta tensão e as gentes do Meu Quintal de Cima indignam-se com uma nova central fotovoltaica. Não se sobressaltam com reatores nucleares, porque não os há por estas bandas. No meu quintal o umbigo é rei e o futuro não importa enquanto o último não apagar a luz.

No meu quintal, no mundo ideal, haveria laranjas o ano inteiro. Não há. Porém, no meu quintal há eletricidade dia e noite. No meu quintal poderia ter painéis solares e baterias e imaginar uma vida autónoma, mas no dia em que esse sonho off-grid fosse por água abaixo constataria como afinal não é bom viver sem rede.


Não há milagres. Para que o meu quintal (e o seu, já agora) funcione precisamos do pacote inteiro: os painéis solares, talvez algumas baterias, as torres eólicas, as hidroelétricas, as centrais a gás, e longos quilómetros de linhas para que não fiquemos às escuras, estejamos nós na agitação urbana ou num bucólico cenário rural. É um sistema que funciona em rede e que, tanto quanto sabemos, não podemos desmaterializar: são ativos físicos, existem, temos de viver com eles, no nosso quintal ou no do vizinho. E cumprem múltiplos propósitos, desde o fornecimento de um serviço essencial como é o abastecimento de energia, até à concretização de políticas de descarbonização, passando, não menos importante, pela coesão territorial.


Há dias um autarca prometia atravessar-se à frente das máquinas para impedir a construção de uma nova linha de transporte de eletricidade da REN que ligará Ponte de Lima a Fontefría, em Espanha. A REN veio defender, em tribunal, a “especial urgência” dessa infraestrutura para o reforço das interligações com Espanha. A mesma REN teve, entretanto, “luz verde” da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para avançar com uma linha de 120 quilómetros entre o Fundão e Vilarouco, que permitirá ligar à rede nova capacidade de origem renovável, sobretudo solar.


Poder-se-á defender que a oposição dos municípios do Alto Minho é legítima, em defesa das populações locais, contra o impacto visual de uma nova linha de muito alta tensão. Mas recordemo-nos disto: há no desenvolvimento da rede elétrica uma função de coesão territorial. Seria inimaginável, nos dias de hoje, viver onde quer que seja sem eletricidade. E para que fique assegurado o seu fornecimento ininterrupto (a hospitais, escolas, fábricas, habitações e até gabinetes das autarquias) precisamos dela: a rede. Já em 2022 João Conceição, administrador da REN, o afirmava sem papas na língua: “Todos queremos custos baixos de energia, mas ninguém quer uma infraestrutura no seu quintal”.


É essa infraestrutura que garante que todo e qualquer concelho do país tem acesso à eletricidade, sabendo que grande parte do que os seus habitantes consomem é gerada noutros concelhos, porque nenhum, isoladamente, tem condições para ser auto-suficiente, num sistema que se alimenta da complementaridade de vários recursos, como atestam os dados da REN.

Se, com alguma curiosidade, nos debruçarmos sobre os indicadores de qualidade de serviço ao nosso dispor, constatamos que são muitos os municípios que precisam de mais e melhor rede (e não menos). O relatório de qualidade de serviço da E-Redes relativo a 2022, por exemplo, indica que o tempo de interrupção equivalente da potência instalada na rede de média tensão (TIEPI MT) a nível nacional foi de 52 minutos, ligeiramente acima dos três anos anteriores. Mas no território os registos são muito díspares. O concelho de Ribeira de Pena teve o pior registo, com quase 635 minutos, seguido de Mesão Frio, com 557 minutos, e Vimioso, com 472 minutos. Ponte de Lima, de onde partirá a interligação ibérica agora contestada por várias autarquias, está no Top 40, com um TIEPI de 126 minutos. Muito acima dos registos de cidades densamente habitadas, como Lisboa (22 minutos de tempo de interrupção na rede de média tensão) e Porto (29 minutos).


Os dados, com elevada granularidade, podem ser obtidos na plataforma E-Redes Open Data, uma ótima ferramenta para conhecer as assimetrias do país no que respeita à rede elétrica operada pela E-Redes, que vai da baixa à alta tensão (a muito alta tensão está com a REN), mas também para ver, por exemplo, como a adesão ao autoconsumo se distribui de norte a sul do país.


Não surpreende que, quando se propõe a colaboração do poder local na viabilização de projetos de interesse nacional (como são as interligações de eletricidade ou de gás natural com Espanha, ou o reforço da capacidade de produção renovável), seja comum ouvir o decisor local questionar “e o que ganho eu com isso?”. É compreensível a preocupação dos autarcas em salvaguardar que a ocupação do território não se torna prejudicial para as suas populações, pelo impacto visual, pelas consequências na biodiversidade, por eventuais efeitos adversos no turismo ou outras razões.


Mas diga-se ainda que ao longo dos anos as autarquias também têm beneficiado dos projetos de energia. Os parques eólicos entregam 2,5% da sua faturação aos municípios onde estão instalados. Os consumidores de eletricidade suportam, nas tarifas que pagam todos os anos, as rendas das concessões de baixa tensão (que este ano canalizam para as autarquias mais de 300 milhões de euros), e mais recentemente foram criadas outras contrapartidas. Uma delas passou por conceder aos municípios que sejam atravessados por novas linhas de muito alta tensão uma compensação equivalente a 1% a 5% do investimento que a REN fará nessas infraestruturas. E um outro incentivo para vencer a resistência autárquica foi a criação de um pagamento aos municípios de 13.500 euros por cada megawatt (MW) de nova potência renovável que seja ligada nos seus territórios (e neste caso o dinheiro vem do Fundo Ambiental).


Em algumas regiões a profusão de projetos de energia renovável pode ser uma fonte importante de receita municipal. Veja-se o caso de Nisa, uma autarquia que não tem visto com bons olhos a construção de novas centrais fotovoltaicas de larga escala, apesar de alguns desses projetos terem “luz verde” da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), como sucedeu com a Q Energy num investimento de 176 milhões de euros. Nisa tem um orçamento anual de 24 milhões de euros. Só o projeto da Q Energy dará a esta autarquia mais de 2,5 milhões de euros ao abrigo da compensação paga pelo Fundo Ambiental. Trata-se, contudo, de um pagamento único (e não repetido ao longo dos anos), cabendo ao município gerir a receita como entender.


Nos últimos anos uma das mensagens mais gastas no discurso político em torno da transição energética é que esta não deve deixar ninguém para trás. Os investimentos em descarbonização devem, tanto quanto possível, ser inclusivos e promotores de maior bem-estar coletivo, o que implica envolver os decisores públicos e privados na sensibilização da opinião pública. Ninguém sairá a ganhar com uma guerra de trincheiras e a radicalização de posições. Mas para que a sociedade se envolva nos esforços para tornar mais sustentável a forma como consumimos energia é necessário que o debate reconheça os custos desta caminhada.


“Temos de parar de fingir que o hidrogénio verde será mais barato que o gás”, alertou, em entrevista ao Expresso, o consultor energético Michael Liebreich, que reconheceu que a Península Ibérica tem “recursos fantásticos” no domínio das renováveis, advogando o maior esforço possível na eletrificação de consumos, mas notando que em alguns setores devemos avançar com cautela. Esta semana a Lufthansa anunciou uma sobretaxa de custos ambientais, que visa cobrir parte dos custos adicionais que a companhia aérea terá para cobrir as exigências ambientais, e que agravará os preços em até 72 euros por voo a partir de janeiro de 2025. O cumprimento das metas de combustível sustentável na aviação (SAF na sigla em inglês) terá custos adicionais de milhares de milhões de euros, estimou a Lufthansa.


Sim, haverá um custo acrescido em parte do processo de descarbonização (noutra parte o processo gera poupanças: as centrais solares têm um dos custos mais baixos entre as várias tecnologias do mercado por cada megawatt hora que produzem). É um dos desafios da transição de uma economia movida a petróleo para uma outra que possa funcionar com menores emissões de dióxido de carbono. O sistema financeiro está atento a todo esse mercado e são muitos os fundos criados para apoiar a transição verde e as empresas com projetos e compromissos neste domínio. Alguns destes veículos ainda investem parte dos fundos em ações de multinacionais petrolíferas, como revelou uma investigação publicada no Expresso esta semana.


De caminho, persistem posições particularmente preocupadas com a expansão da produção de eletricidade verde no país. Luís Mira Amaral chama-lhe a “Loucura renovável”, defendendo que se aproveite a revisão final do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) para 2030 para baixar a fasquia que havia sido fixada pelo anterior Governo na proposta de revisão do documento. Temos também ouvido críticas ferozes às apostas fotovoltaica e eólica em Portugal, com os argumentos de que não garantem potência despachável (utilizável a qualquer hora) para o sistema elétrico nem uma produção contínua (sendo dados como bons exemplos de potência mais segura as centrais a gás e as centrais nucleares). É frequente, aliás, o argumento de que as centrais solares apenas são usadas num reduzido número de horas ao longo do ano. Mas é também o que sucede, há anos, com a forma como nos deslocamos: durante quantas horas por ano damos uso aos automóveis que fazem parte do nosso dia-a-dia, uma mobilidade feita, quase toda ela, de veículos importados e combustíveis vindos do exterior?


A aposta no transporte coletivo é um passo fundamental, e ainda esta semana o Governo anunciou 90 milhões de euros para comparticipar o investimento em 300 autocarros elétricos ou a hidrogénio. Mas também no transporte individual a eletrificação será uma peça importante, assumindo que a montante temos um sistema cada vez mais dominado pela geração de eletrões verdes. Para isso é necessária rede, investimento, nova capacidade e mais interligações com os nossos vizinhos espanhóis. E, portanto, uma visão para lá do nosso quintal.

Descodificador:


SAF. É a sigla para “sustainable aviation fuels”, isto é, combustíveis de aviação que cumprem critérios de sustentabilidade, podendo ser obtidos a partir de fontes renováveis ou resíduos. Segundo a Organização Internacional da Aviação Civil, já há 122 aeroportos a nível global a fornecer SAF, estando identificadas mais de 300 unidades de produção destes combustíveis, entre projetos operacionais e anunciados (aqui se incluem três em Portugal, ainda em desenvolvimento, da Galp, Navigator e Smartenergy).



E vale a pena ler:


Portugal deverá nos próximos anos acolher vários investimentos em capacidade de armazenamento no setor elétrico, quer com baterias junto a centrais solares, quer com parques de baterias autónomos. Para responder a esse desafio a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) elaborou uma proposta com as condições de acesso à rede com restrições para este tipo de sistemas, que pode ser lida no âmbito da mais recente consulta pública do regulador, que decorrerá até 6 de setembro.


Aqui termina esta edição da newsletter, que estará de volta a 11 de julho. Se tiver comentários, reparos, dúvidas ou sugestões, pode entrar em contacto através do e-mail mprado@expresso.impresa.pt. Votos de um bom resto de semana e de boas leituras no Expresso.