Chegou abril e o mercado ibérico de eletricidade continua na senda dos preços baixos. Em Espanha já houve preços negativos na segunda-feira. E também Portugal terá esta sexta-feira algumas horas de preços negativos, algo absolutamente inédito na contratação de energia para o dia seguinte. Quem vive e conhece as dinâmicas dos mercados de energia sabe que não será possível segurar um sistema elétrico durante muito tempo com preços grossistas encostados ao zero. Quem paga? Quando paga? E como paga? Não há almoços grátis nem eletricidade de borla, por muito que a ideia nos possa seduzir.
O novo Governo está em funções. Maria da Graça Carvalho tomará as rédeas do ambiente e da energia, jogando a seu favor o capital de experiência que acumulou em Bruxelas, na condução de diversos dossiês do setor. Em breve conheceremos quem convidou para tutelar diretamente a energia, pasta que em 15 anos terá somado sete titulares. Carlos Zorrinho, Henrique Gomes, Artur Trindade, Jorge Seguro Sanches, João Galamba e Ana Fontoura Gouveia entraram nesta galeria, marcando, de diferentes formas, a condução da política energética de um país que desde o início do século se tem mostrado comprometido com a aposta nas energias verdes.
A transição energética afirmou-se como consenso, aspiração comum de um campo político alargado. Num país que sempre desprezou a opção nuclear, as fontes renováveis foram assumidas como o caminho (algo acidentado) para a diminuição de emissões de dióxido de carbono e para a redução da dependência energética do exterior.
Mas, assim como a pressa é inimiga da perfeição, a natureza da política pode revelar-se adversária da transformação. Podem ou não as guerras partidárias minar a capacidade de promoção de consensos em torno de estratégias que, no final de contas, têm objetivos similares? Podem os ciclos políticos converter-se numa ameaça ao processo de transição energética?
Quem trabalha no setor, das centrais solares às eólicas, passando pelas hídricas ou pelas redes de eletricidade ou gás, sabe bem que o tempo de desenvolvimento de um projeto energético vai muito para lá da vida de uma legislatura. Os secretários de Estado sucedem-se em ciclos variáveis. Já tivemos governantes por nove meses e por mais de um ano, outros por três ou pouco mais que isso. Regra geral, quem vem tutelando a energia dura menos do que o licenciamento de um projeto de energia, o que tem tanto de cómico como de trágico. A falta de linhas de continuidade e coerência na gestão da política energética do país introduz doses absurdas de imprevisibilidade sobre o quadro com que os atores da transição podem contar. Há planos de investimento revistos a cada dois anos, regulamentos em atualização quase permanente, diretivas para transpor, leis de bases revisitadas, estratégias para apresentar a Bruxelas que ficam num limbo, incentivos que não saem da gaveta. Leilões em suspenso, providências cautelares, reversões várias. Nem tudo é mau (e Portugal tem alguns números de que se pode orgulhar no que toca à descarbonização), mas o lado negro da força vai teimando em travar o ritmo de uma transição que se pretende socialmente justa mas também ambientalmente eficaz.
O país tem quase tudo para dar certo, mas há períodos em que parece não desperdiçar uma boa oportunidade para falhar. Temos sol, vento e água, recursos humanos, território e custos de financiamento relativamente acessíveis. Temos um consenso político alargado sobre a necessidade de descarbonização. O que falta?
Esta quarta-feira João Galamba, antigo secretário de Estado da Energia, veio sublinhar um dos desafios mais prementes que o país vive, o de articular a urgência da transição energética com a ambição da conservação de habitats e da natureza. No Expresso noticiámos que a Iberdrola reformulou o seu projeto eólico do Tâmega, encolhendo-o em mais de 40% para tentar cumprir as condições impostas pela Agência Portuguesa do Ambiente para viabilizar o que seria o maior investimento eólico dos últimos anos.
No LinkedIn João Galamba deixou clara a sua visão do assunto. “Amputar este projeto de hibridização”, frisou, “encarece o cumprimento dos objetivos eólicos do PNEC e aumenta o seu impacto ambiental, porque inviabiliza o pleno aproveitamento de linhas e pontos de injeção já existentes, forçando, na prática, a construção de mais linhas e mais infraestruturas”.
Não é a primeira (e provavelmente não será a última) intervenção pública de um ex-deputado, ex-secretário de Estado e ex-ministro que se tem mostrado inconformado com as resistências levantadas aos projetos que vão surgindo no país para explorar fontes energéticas limpas e endógenas. A expressão “endógenas” é chave: Portugal tinha ainda, em 2022, uma dependência energética do exterior de 71%, refletindo o elevado peso dos combustíveis fósseis na nossa matriz energética.
Dirão os mais otimistas que o país fez um progresso ao reduzir essa dependência de 77,7% em 2017 para 65,8% em 2020. Mas depois o indicador da dependência energética voltou a agravar-se. Continuamos nas mãos de fornecedores externos para cobrir mais de dois terços do nosso consumo de energia.
Sempre se poderá argumentar que as estratégias de eletrificação e aposta na energia verde implicarão também encargos com a importação de grande parte dos equipamentos necessários nessa transição, desde os módulos fotovoltaicos aos aerogeradores, passando pelas linhas de transporte de eletricidade e pelos eletrolisadores para produzir o hidrogénio verde que alguns acreditam que possa ser parte da solução. Mas seria ingénuo acreditar que a alternativa a esse caminho, qualquer que fosse, não implicaria, também, a importação das soluções para lá chegar.
Embora limitado pela sua escala, Portugal pode, ainda assim, captar partes da cadeia de valor das indústrias da descarbonização. Fê-lo, depois de 2009, com os clusters eólicos de Aveiro e Viana do Castelo, assegurados à boleia dos leilões eólicos, que garantiram cerca de 2 gigawatts (GW) de nova capacidade. Uma década depois, em 2019 e 2020, os leilões solares licitaram outros 2 GW de capacidade fotovoltaica, mas sem contrapartidas industriais.
A aposta de Portugal nas eólicas offshore foi anunciada com a promessa de dinamizar indústrias de vários tipos nos portos nacionais, mas a queda do Governo de António Costa congelou essa ambição.
Na sua tomada de posse, o discurso do novo primeiro-ministro não dedicou mais do que um par de frases ao desafio energético. “É possível e necessário fazer mais e melhor pelo combate às alterações climáticas, pela transição energética e pela valorização dos ecossistemas. Contudo, é preciso fazê-lo com racionalidade económica, protegendo os nossos consumidores e a competitividade das nossas empresas”, declarou Luís Montenegro.
O líder do PSD conhece bem os desafios das “nossas empresas” e de indústrias que visitou, e que procuram há vários anos reduzir a sua fatura energética, cientes de que a aposta em instalações fotovoltaicas é uma das vias mais rápidas para o conseguir. Nos últimos anos disparou em Portugal o número de projetos de autoconsumo. Converter as coberturas das fábricas em pequenas centrais solares tornou-se um imperativo, mais do que uma moda.
Mas cuidar dos desafios da transição de forma diligente implica saber que o autoconsumo sozinho é insuficiente. Precisaremos também de grandes centrais solares em vastas áreas de terreno, gerando economias de escala e diminuindo os quilómetros de linhas a cruzar o território. Precisaremos de instrumentos que garantam que durante vários anos teremos um sistema fiável de backup à rede elétrica assente nas centrais de ciclo combinado a gás que já estão em operação (é o caso da Tapada do Outeiro). Precisaremos de reforçar a potência dos parques eólicos em terra, e de encontrar soluções engenhosas para os remunerar. E pensar como desenvolver eólicas no mar e a que custo. E calibrar os incentivos apropriados para dinamizar novas fileiras, como as do hidrogénio e das baterias.
Tudo isso faz parte de um ciclo de transformação da matriz energética global, que Portugal pode aproveitar, sustentado nos alicerces já criados nas últimas décadas. O reforço da autonomia energética, se bem planeado, proporcionará a famílias e empresas preços previsíveis e acessíveis a médio e longo prazo. Mas implica um esforço que nem sempre se coaduna com a sequência de ciclos descombinados em que se transformou a política nacional, em sucessivas legislaturas interrompidas, projetos suspensos e ambições adiadas. Graça ou desgraça, que energia nos espera?
Descodificador:
Ciclo combinado. Já em junho do ano passado abordámos o conceito, que agora recuperamos. As centrais de ciclo combinado são assim designadas por combinarem turbinas a gás e a vapor para a produção de eletricidade, conseguindo maiores níveis de eficiência do que se só gerassem eletricidade a partir das turbinas a gás, por exemplo. Em Portugal há quatro centrais deste tipo em operação. Desde o fecho das centrais a carvão, são sobretudo estas quatro unidades que funcionam como backup do sistema elétrico nacional, garantindo potência firme para os períodos de menor disponibilidade de vento, sol e água.
E vale a pena ler:
O LNEG publicou há dias o relatório técnico do grupo de trabalho criado para definir as áreas de aceleração de energias renováveis. O documento, que pode ser consultado aqui, aprofunda a análise já feita no último ano e meio sobre como pode Portugal aproveitar o seu território para incrementar a oferta de eletricidade renovável afetando o menos possível áreas ambientalmente sensíveis.
A newsletter termina aqui, mas pode continuar a acompanhar o mundo da energia no Expresso, aqui. A próxima edição virá a 18 de abril. Se tiver comentários, críticas, sugestões ou outras notas que queira partilhar, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Até breve!