Expresso Energia

Os preços da eletricidade: um quebra-cabeças

Por estes dias os noticiários são dominados por um tema: o futuro político de Portugal. Luís Montenegro foi já indigitado como primeiro-ministro, mas isso não chega para dissipar a névoa em torno dos múltiplos temas críticos no quadro da transição energética do país. No Ministério do Ambiente, as equipas de Duarte Cordeiro e Ana Fontoura Gouveia têm dedicado as últimas semanas a arrumar a casa, para deixar aos senhores que se seguem a pasta pronta, com um balanço do trabalho feito e do que está por fazer. Gases renováveis, estratégia para as baterias e armazenamento, eólicas offshore, revisão do Plano Nacional de Energia e Clima: entre os temas em suspenso não será fácil escolher por onde começar. Acrescentemos um grau adicional de complexidade: o que queremos afinal dos preços da eletricidade em Portugal?

O tema é um quebra-cabeças. Vivemos um dos momentos mais desafiantes do mercado ibérico de eletricidade (Mibel), e ao mesmo tempo um hiato enfadonho na política energética provocado pela crise política dos últimos meses. Os preços grossistas da eletricidade em Portugal e Espanha afundaram-se e isso é uma boa notícia, certo? Espere, não comemore já.


De acordo com uma análise recente da consultora AleaSoft, em fevereiro o Mibel teve o preço grossista mais baixo da Europa, com 40 euros por megawatt hora (MWh), batendo o preço médio dos mercados nórdicos (Nordpool), do mercado francês, do britânico e do italiano, entre outros. Já entre março e maio do ano passado Portugal e Espanha tinham comparado bem com o resto da Europa. E desde novembro que a Península Ibérica tem estado bem posicionada em termos de preços grossistas no contexto europeu.


Olhando para o Omip, o mercado de contratos futuros do Mibel, Portugal e Espanha deverão esperar no segundo trimestre preços de eletricidade da ordem dos 40 euros por MWh, abaixo dos 44 euros projetados para França e dos 57 euros dos futuros negociados na Alemanha, por exemplo. No terceiro trimestre é possível que o Mibel registe preços superiores aos de França (mas inferiores aos alemães) mas no quarto trimestre Portugal e Espanha deverão voltar a levar a melhor, com preços da ordem dos 70 euros por MWh, enquanto França e Alemanha deverão pagar mais de 80 euros.


No que já levamos de 2024 a Península Ibérica tem vivido um arranque de ano favorável em matéria de preços grossistas, à boleia de bons recursos eólico e hídrico, apoiados por uma produção fotovoltaica em franca expansão. A abundante eletricidade de base renovável tem puxado para baixo o preço spot no Mibel (que baixou tanto que várias centrais nucleares em Espanha pararam, para não perderem dinheiro, como contava há dias o “El Periódico de la Energia”).


Segundo a plataforma Omie (que gere a contratação do Mibel para o dia seguinte, hora a hora), nestes primeiros 21 dias de março o mês segue com um preço médio de 25 euros por MWh, perspetivando-se (pelo Omip) preços próximos deste nível nas próximas semanas. É preciso recuar a fevereiro de 2021 para encontrar um mês com preços médios abaixo dos 30 euros (naquela altura o mês fechou nos 28 euros por MWh).

Esta conjuntura de baixos preços grossistas favorece, desde logo, as indústrias expostas ao mercado, emagrecendo, durante uns meses, as suas faturas de eletricidade (e para algumas indústrias eletrointensivas este tema é crítico), e contribuindo para a competitividade do tecido empresarial ibérico face aos concorrentes do resto da Europa. Também beneficia as dezenas de milhares de famílias com tarifários indexados ao Mibel, reduzindo o preço de cada kilowatt hora (kWh) consumido face ao que pagavam ainda há uns meses. Mas há um reverso da medalha.


Uma parte (que ainda é uma boa parte, sublinhe-se) da eletricidade que consumimos em Portugal tem preços garantidos. Essa produção de remuneração garantida (PRG, antes conhecida pela sigla PRE, de Produção em Regime Especial) terá este ano, pelas contas da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), um preço médio de 102 euros por MWh. Estamos a falar de um volume total esperado pelo regulador de 21,1 terawatt hora (TWh), que são sensivelmente 42% do consumo anual de eletricidade no país.


Dentro dessa PRG há distintas tecnologias, com diferentes preços, mas a fatia de leão (com uma produção esperada de 13 TWh) é a eólica, com uma remuneração média de 93 euros por MWh este ano, segundo a ERSE. Nas tarifas de acesso à rede fixadas para o corrente ano o regulador da energia já contemplou estes custos de aquisição. A ERSE calculou que esta produção com receitas garantidas implique sobrecustos de 393 milhões de euros (é o que resulta do facto de estes produtores terem em média um preço garantido de 102 euros por MWh, que fica acima do que o regulador estima que seja o preço médio de 2024 no mercado grossista, de 83 euros por MWh).


É aqui que começa o problema: estes primeiros meses de 2024 têm trazido preços grossistas no Mibel significativamente abaixo da referência usada pela ERSE, e mesmo os contratos futuros para o segundo semestre estão aquém dos 83 euros por MWh que foram usados pelo regulador no cálculo das tarifas para este ano.


Esta situação criará um desvio substancial. Vale a pena recordar que a eletricidade de remuneração garantida é adquirida pela SU Eletricidade (comercializador de último recurso do grupo EDP, que vende ao cliente final as chamadas “tarifas reguladas”). A SU paga os preços que contratualmente estão garantidos a esses produtores; se os preços do mercado grossista forem superiores, há um excedente tarifário que no ano seguinte é devolvido à generalidade dos consumidores nas tarifas de acesso; se, pelo contrário, os preços grossistas forem inferiores, há um défice, que no ano seguinte será recuperado, onerando os consumidores.


Na apresentação dos seus resultados anuais aos analistas, a 1 de março, a EDP abordou este tema. O administrador financeiro da elétrica, Rui Teixeira, admitiu que “em 2024 poderemos ter alguns desvios entre os preços previstos pelo regulador e os preços reais”. “Baseados nos preços atuais, estimamos que o desvio tarifário poderá aproximar-se dos mil milhões de euros ao longo do ano”, afirmou o gestor.


O montante é significativo, mas a conta não é especialmente difícil de explicar. As tarifas da ERSE para 2024, que os consumidores portugueses já estão a pagar, já consideram o efeito do sobrecusto da produção de remuneração garantida (a diferença entre o seu preço médio de 102 euros por MWh e o preço esperado no Mibel de 83 euros). Mas por cada hora, dia, mês, que o mercado ibérico registe preços abaixo dos 83 euros estará a ser gerado um desvio tarifário. Se 2024 fechasse com um preço médio de 40 euros por MWh, os 21 TWh da PRG teriam um sobrecusto de 1,3 mil milhões de euros, em vez dos 393 milhões considerados pela ERSE nas tarifas para este ano.


Felizmente, a intrincada arquitetura regulatória da eletricidade já prevê que estes sobrecustos sejam pagos a prestações, distribuídos ao longo de cinco anos. O puzzle tarifário inclui um conjunto de outros fatores que tornam difícil (e arriscado) estimar, à data de hoje, qual o impacto real que poderá ser imputado às famílias e empresas nos preços de eletricidade para 2025. Até porque ainda falta mais de metade do ano, e o balanço deverá ser feito considerando eventuais agravamentos nas tarifas de acesso e potenciais alívios na componente de energia da fatura: afinal, o custo a que as elétricas estão a adquirir este ano a energia para entrega aos seus clientes está substancialmente abaixo dos níveis do ano passado.


O registo de desvios tarifários é prática corrente no sistema elétrico nacional. Também tivemos um desvio ainda maior em 2023, justamente porque o regulador previu para aquele ano preços grossistas muito acima dos efetivamente registados: depois de ter oferecido aos consumidores, para 2023, tarifas de acesso negativas (incorporando o efeito de o preço do regime especial ficar muito abaixo do preço grossista esperado), a ERSE teve de corrigir a rota, e agravar essas tarifas, quer a meio de 2023, quer em janeiro de 2024. Mesmo assim, o montante da dívida tarifária da eletricidade aumentou. Há dias, em entrevista ao “Público”, o presidente da associação de comercializadores Acemel, João Nuno Serra, classificava como um “erro crasso” a opção da ERSE, advogando que o acréscimo de custos deveria ser imediatamente repercutido nos consumidores.


A existência de sobrecustos de alguma produção de eletricidade deve ser analisada com a devida cautela. Trata-se de condições remuneratórias garantidas no passado a determinadas fontes de energia, sobretudo para estimular a aposta do país nas renováveis. Esse enquadramento funcionou: atraiu investimento em capacidade verde, que nos anos mais recentes vem crescendo sobretudo com mais potência fotovoltaica, quase toda sem remuneração garantida. Paradoxalmente, quanto mais eletricidade renovável o país produz a cada semana e a cada mês, mais se reduz o preço grossista (porque as fontes mais caras, como as centrais a gás, perdem espaço), mas quanto mais cai o preço spot, mais aumenta o sobrecusto da parcela de remuneração garantida. Mas no essencial o efeito é este: a crescente incorporação renovável baixa efetivamente o custo de toda a eletricidade que não tenha remuneração garantida.


O desafio, como já escrevemos em anteriores edições desta newsletter, é que essa redução de custo não seja tão grande que desincentive o investimento em nova capacidade renovável, sob pena de ameaçar o cumprimento das metas de descarbonização. É, de facto, um quebra-cabeças. E um estímulo à reflexão sobre a importância da contratação a longo prazo. É ou não vantajoso para o sistema elétrico e para os consumidores assegurar, antecipadamente, preços de eletricidade estáveis e previsíveis para uma década ou década e meia? Se o caminho for apostar em mais leilões para atribuir preços de longo prazo para produtores e comercializadores, como remunerar a produção de eletricidade que continuará a ser necessária para responder à procura não coberta pelos contratos de longo prazo? Como pagar os serviços de sistema? Como conciliar um mercado de eletricidade aberto e dinâmico com a vontade de garantir preços previsíveis e comportáveis para todos?


O bom funcionamento do mercado de eletricidade na próxima década e o sucesso das políticas de descarbonização dependerão, em grande medida, destas questões, às quais a crise política do país acrescenta vários pontos de interrogação. Pelo meio, consumimos recursos com debates que se arrastam há décadas sobre miraculosos eletrões cor de rosa que hão de vir, um dia, para salvar o país dos perigosos eletrões verdes. Entretanto, no mundo real, a energia, um pouco mais cinzenta do que gostaríamos, continua a ser uma peça central no desenho de um planeta mais sustentável e de economias mais competitivas. Não sabemos ainda quem, no próximo Governo, tomará a pasta da energia. Mas sabemos que pela frente terá um enorme quebra-cabeças para resolver.

Descodificando


Dívida tarifária. Na eletricidade a dívida tarifária designa o montante acumulado que o sistema elétrico ainda tem de recuperar em anos futuros, e que resulta da acumulação de défices tarifários, ou seja, de anos em que os preços pagos pelos consumidores de eletricidade não foram suficientes para cobrir todos os custos do sistema. O regulador da energia prevê que este ano a dívida tarifária ascenda a 1995 milhões de euros (é a primeira subida em nove anos; em 2023 estava nos 879 milhões de euros). Mas a estimativa apresentada em dezembro pela ERSE apontava para que a dívida seja totalmente eliminada até 2028 (é ainda incerto se o desvio registado em 2024 comprometerá essa trajetória).



E vale a pena ler


Esta semana a ACER, agência europeia para a cooperação entre reguladores da energia, publicou um relatório sobre os principais desenvolvimentos nos mercados grossistas de eletricidade da União Europeia. O documento, que pode ser consultado aqui, sublinha que a eletricidade de fontes renováveis atingiu níveis recorde no ano passado, com o recurso a centrais a gás e a carvão a recuar. O relatório também mostra as dinâmicas de exportação e importação de eletricidade na Europa e nota a tendência de crescimento dos episódios de preços negativos.



A newsletter termina aqui, mas regressa a 4 de abril. Se tiver dúvidas, críticas, sugestões ou outros comentários, pode enviar um e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. Entretanto, continuamos a trazer-lhe as novidades do mundo da energia na edição digital do Expresso. Até breve!