Talvez esta não seja a melhor altura para lhe falar de sol. Como nos conta a previsão meteorológica, perspetiva-se céu nublado, com períodos de chuva ou aguaceiros. Mas, ainda assim, falemos de sol. Está a ser ele, o sol, o rei da transição energética em Portugal, e é também um anunciado game changer. A energia solar vai pôr à prova o sistema elétrico nacional, em várias vertentes. Estaremos prontos para esse desafio?
O país vai a votos no domingo e os temas das alterações climáticas e da transição energética tornaram-se secundários na agenda dos maiores partidos. Pesquise “solar” e encontrará uma única referência no extenso programa eleitoral da Aliança Democrática, e apenas para nos falar do que a coligação diz ser “os fracassos da execução dos leilões alegadamente ‘históricos’ do solar fotovoltaico”. A AD, de resto, enfatiza a importância das interligações com o centro da Europa… mas será que agora, que poderemos ter acesso a eletricidade solar mais barata na Península Ibérica, é estrategicamente mais interessante batermo-nos por mais interligações com França ou por preservar, dentro de portas, os ganhos inerentes a fontes de energia baratas? No programa do Partido Socialista encontrará quatro referências breves à energia solar, com a promessa de mobilizar até 2030 investimentos de 5 mil milhões de euros nesta área, bem como a intenção de incentivar o aproveitamento fotovoltaico em coberturas de estacionamentos ou edifícios.
Não se vislumbra, nos programas das duas maiores forças partidárias, um pensamento estruturado sobre a importância que a energia solar terá, nos próximos anos, na transformação da nossa matriz energética. Mas, tanto quanto nos é dado a observar, a tecnologia fotovoltaica será, muito provavelmente, um dos instrumentos que a economia portuguesa terá a médio prazo para incrementar a sua competitividade num quadro de maior exigência e escrutínio sobre quão verde é a pegada do nosso crescimento. Sim, os equipamentos são importados. E, sim, o emprego associado à energia solar concentra-se sobretudo nas fases de desenvolvimento e construção. Mas a eletricidade que lhe está associada é especialmente competitiva face a outras fontes de produção. E o recurso é endógeno.
Os mais recentes números da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) dão conta de um bom arranque de 2024 no que toca à energia solar. Os 208 megawatts (MW) instalados de capacidade fotovoltaica fizeram de janeiro um dos melhores meses de sempre, parecendo contrariar as grandes nuvens que vêm preocupando os promotores de projetos nesta área: licenciamento e mão-de-obra.
Na semana passada escrevemos no Expresso sobre as dificuldades que as empresas de energia vêm sentindo no acesso a mão-de-obra para fazer os seus projetos avançar no terreno. Nos últimos meses tem sido também bastante audível o receio do setor das renováveis quanto ao quebra-cabeças do licenciamento dos projetos. Poucos são os promotores que aceitam falar abertamente sobre as autarquias mais problemáticas, mas são vários os que vão desabafando sobre como é difícil fazer sair do papel este ou aquele projeto, porque cada município faz tramitar os processos e pedidos com tempos e regras distintos.
Essas dificuldades são as dores de crescimento de uma indústria que nos últimos anos encontrou em Portugal um mercado apetecível para dar resposta à oportunidade de investir largas somas em painéis fotovoltaicos, à medida que o seu custo foi diminuindo. O preço dos módulos afundou-se na última década. A queda foi global. Mas no território português foi-se multiplicando a disponibilidade dos proprietários de terrenos para acolher vastas áreas de painéis solares, garantindo durante duas ou três décadas uma renda estável e previsível.
A energia solar tornou-se um game changer por diversas razões. Por um lado, alterou, de facto, a ideia de valorização da terra por parte de quem a detém. Isso é ainda mais evidente se pensarmos no elevado volume de projetos que vão sendo sujeitos a avaliação de impacto ambiental e que, na maior parte da sua área de implantação, propõem converter extensas áreas de plantação de eucaliptos em não menos extensas manchas fotovoltaicas. As indústrias da biomassa e da celulose não terão, por isso, grande simpatia pela expansão acelerada das grandes centrais solares.
Mas tornou-se igualmente um game changer porque obrigou os autarcas a olhar de outra forma para a gestão do território, atendendo aos interesses dos cidadãos mais preocupados com o impacto visual ou paisagístico de grandes centrais, ou à potencial perda de biodiversidade, mas atendendo igualmente aos potenciais benefícios das centrais fotovoltaicas para a população local.
No quadro da resposta de emergência à necessidade de redução da dependência da Rússia, o Governo português criou várias iniciativas, entre elas um pagamento de 13.500 euros por MW aos municípios que acolham centrais solares. Esse pagamento duraria até abril, mas o Governo recentemente tratou de prolongar a vigência do incentivo até ao final de 2024. Para este ano o Fundo Ambiental tem uma dotação de 13 milhões de euros para estes pagamentos. Não resolverão as finanças de todas as autarquias, mas ajudarão algumas delas a custear intervenções que entendam prioritárias para a população local.
Os números dos últimos anos são impressionantes, atestando uma expansão do parque solar em Portugal há uns anos impensável. Historicamente dependente da produção hidroelétrica, o país teve desde o início deste século uma expansão assinalável da capacidade hídrica e eólica. Mas esta última acabou, nos anos mais recentes, por ir registando um crescimento tímido. Nos últimos cinco anos, foram instalados em Portugal somente 0,4 gigawatts (GW) eólicos. E no mesmo período foram adicionados 3,4 GW fotovoltaicos (além de 1,1 GW hidroelétricos).
Se este ano mantiver o ritmo conseguido em janeiro, com mais de 200 MW ligados e registados pela DGEG, a energia solar poderá finalizar 2024 com mais potência instalada do que a eólica, tornando-se a segunda fonte de produção em capacidade (ainda que provavelmente o vento mantenha uma posição cimeira em termos de eletricidade produzida). Se assim fosse, no final deste ano Portugal teria 6,3 GW de capacidade solar (a potência eólica atual é de 5,8 GW).
Mas há uma outra razão para a energia solar se afirmar como um elemento transformador. A expansão fotovoltaica que Portugal tem conhecido já está a ter um impacto visível na gestão diária da rede elétrica. Basta espreitar os diagramas diários de produção e consumo da REN (o Datahub é uma plataforma que vale a pena explorar) para constatar que a energia solar já tem peso relevante no sistema.
Os dados da REN não refletirão a totalidade da produção fotovoltaica em Portugal (uma parte dela em autoconsumo, com uma adesão crescente de famílias e empresas), mas mostram o espaço que a energia solar já ocupa hoje no consumo de eletricidade. A quota registada esta quarta-feira tenderá a aumentar nos próximos meses, com mais sol no verão, e nos próximos anos, com mais capacidade instalada.
Ao mesmo tempo que a maior penetração fotovoltaica na rede elétrica cria o desafio de preencher o resto do consumo com outras fontes (sendo a hídrica mais flexível, juntamente com as centrais a gás natural), cria também a oportunidade de vir a trabalhar o tema do armazenamento, evitando que nas horas de sol a oferta fotovoltaica seja de tal forma abundante que atire para zero o preço grossista da eletricidade. Com recurso a baterias (ou aproveitando a crescente produção solar para diferentes consumos, da bombagem hidroelétrica à produção de hidrogénio verde), as empresas de energia conseguirão mitigar o efeito de queda do preço nas horas de sol, deslocando alguma energia para a noite, que poderão injetar na rede a preços mais altos.
A expansão solar deverá sempre ser pensada e planeada com cautela. Como notámos na anterior edição desta newsletter, preços grossistas de eletricidade demasiado baixos não incentivarão investimento futuro na descarbonização. E é por isso que o forte crescimento fotovoltaico em Portugal obrigará a um exercício cuidado de planeamento sobre como regular, remunerar e articular a nova oferta fotovoltaica, o potencial novo mercado das baterias e a gestão de uma rede elétrica segura, fiável e com custos comportáveis para famílias e empresas. Se, pelo meio, Portugal for capaz de criar cadeias de valor, novas indústrias e um ambiente de inovação e empreendedorismo que retenha o talento jovem, já não estaremos nada mal. Para já, é não desperdiçar o lugar ao sol que temos à disposição.
Descodificando
Ponta. Nas últimas semanas o sistema elétrico nacional tem batido vários recordes, incluindo novas “pontas” na produção hídrica e eólica, como o Expresso revelou a 29 de fevereiro. A ponta designa a potência máxima verificada num determinado período. Esta quarta-feira, 6 de março, por exemplo, a ponta de consumo de eletricidade em Portugal foi de 8318 MW e aconteceu às 19h30 (mais ao menos à mesma hora da ponta diária da produção, com 11.487 MW, com o nosso sistema elétrico a exportar o excedente para Espanha). A ponta de consumo histórica em Portugal data de 12 de janeiro de 2021, com 9883 MW, mas se incluirmos a procura das centrais hídricas com bombagem, o recorde foi de 5 de dezembro de 2023, com 12.153 MW, segundo os registos da REN.
E vale a pena ler
Os mercados de energia foram especialmente afetados, nos últimos anos, pela pandemia de Covid-19 e pela guerra na Ucrânia. O instituto Bruegel acaba de lançar um novo estudo, da autoria de Luca Moffat e Niclas Poitiers, que se debruça sobre o efeito de vários choques no funcionamento das cadeias de abastecimento globais. No capítulo sobre a guerra na Ucrânia os números citados da Comissão Europeia são significativos: em 2022 os subsídios na área da energia na União Europeia ascenderam a 390 mil milhões de euros, quase o dobro dos valores dos anos anteriores. O trabalho do Bruegel pode ser consultado aqui.
E aqui termina esta edição da newsletter. Já sabe: se tiver sugestões, críticas, reparos ou outros comentários, pode escrever para mprado@expresso.impresa.pt. A sua opinião conta! A próxima edição da newsletter virá a 21 de março. Até lá, continuação de boas leituras no Expresso, com muita energia.