Expresso Energia

Eletricidade quase de borla? Não há almoços grátis

Quem, por estes dias, consultar os mais recentes preços dos contratos futuros de eletricidade no mercado ibérico poderá constatar que vivemos tempos extraordinariamente desafiantes no setor energético: os próximos dias apontam para preços grossistas abaixo dos 10 euros por megawatt hora (MWh). Se só agora chegou a este complexo mundo da energia, permita que encurte o caminho: é um preço baixíssimo. Não é inédito, mas obriga-nos a refletir sobre o funcionamento dos mercados de eletricidade. E, é claro, sobre o que esta dinâmica de preços implica para o consumidor final.

Comecemos pelo essencial. O que pagamos pela eletricidade é uma fatura que agrega, por um lado, o custo de produção (que só é parcialmente refletido pelo preço spot, que varia de hora para hora, no mercado ibérico, e que esta quinta-feira está na casa dos 10 euros por MWh), e, por outro, o custo do transporte e distribuição da energia (as redes, com encargos regulados), a que se somam outras rubricas de custos de política energética e impostos. Será elementar para muitos, mas não custa lembrar que o que pagamos na “conta da luz” não são só os eletrões que garantem o nosso conforto a cada instante. São também as infraestruturas que suportam o trânsito da energia, as compensações aos municípios, e uma série de outros encargos (os chamados CIEG, que descodificamos no final desta newsletter). Em cima de tudo isso, há uma contribuição audiovisual (que sucessivos governos nunca tiveram vontade de deslocar da fatura da eletricidade para a das telecomunicações), um Imposto Especial sobre o Consumo, uma pequena taxa para a Direção Geral de Energia e Geologia, e, claro, o IVA.


Mas voltemos ao que aqui nos trouxe. O preço spot da eletricidade em Portugal e Espanha tem rondado, na última semana, a marca dos 50 euros por MWh (é o equivalente a 5 cêntimos por kWh). Esta quinta-feira afundou-se para pouco mais de 10 euros por MWh (1 cêntimo por kWh). E esta sexta-feira será ainda mais baixo: de 6,72 euros por MWh (0,672 cêntimos por kWh). Quem nos lê questionar-se-á sobre o que isso significa. É verdade que o preço no mercado ibérico que remunera os produtores é apenas uma parte da fatura, mas é essencial que ela seja considerada pela política energética: afinal, podemos ter uma ótima rede de transporte e distribuição, mas ela será inútil (e nós ficaremos às escuras) se não houver, a montante, um sistema de produção funcional (e justamente remunerado).


É importante pôr os preços atuais em perspetiva: o mercado ibérico de eletricidade (Mibel) entrou em pleno funcionamento em 2007, e desde então até 2019 (antes da pandemia) a Península Ibérica teve preços grossistas relativamente estáveis, com valores médios anuais em torno dos 50 euros por MWh. Em 2020, com a queda da procura associada à pandemia, o preço médio caiu para um mínimo histórico de 34 euros por MWh, mas em 2021, com a retoma do consumo, disparou para os 112 euros por MWh. Em 2022, com o aumento do custo do gás, o preço grossista da eletricidade voltou a aumentar (para isso contribuiu a decisão da Rússia de invadir a Ucrânia, como aqui contamos), para um máximo histórico superior a 167 euros por MWh, acabando por aliviar em 2023 para cerca de 88 euros por MWh.

O histórico recente mostra, portanto, uma volatilidade muito acentuada. E essa volatilidade comporta não só picos de preços mas também momentos de custos especialmente reduzidos. Vale a pena assinalar que a existência de preços grossistas de eletricidade muito baixos não é de agora. Os dados do Omie (operador do mercado diário, à vista, do Mibel) mostram que entre 2009 e 2014 houve vários momentos de preços zero, bem como em 2016, 2019, 2021, 2022 e 2023. Mas, para lá dos preços mínimos (ou dos máximos), importa observar qual a tendência dos preços médios, porque nos ajudam a balizar melhor a variação dos custos da eletricidade antes dos encargos com as redes.


Em matéria de preços médios 2024 está a ser um ano interessante. Em fevereiro, até esta quarta-feira, Portugal contava com um preço grossista de 51 euros por MWh (o preço médio desde 1 de janeiro é de 64 euros), o que nos transporta para os níveis de preços que historicamente o mercado ibérico registava até 2019, antes da pandemia. Poderá a eletricidade voltar a ser, este ano, um fator de desinflação?


Os valores dos contratos futuros (que podem ser consultados na plataforma do Omip) sugerem que os próximos dias serão ainda mais baratos. Até 25 de fevereiro com custos grossistas em torno dos 8 euros por MWh (ou 0,8 cêntimos por kWh), os meses de março e abril à volta dos 33 euros por MWh, o segundo trimestre na casa dos 42 euros, e os terceiro e quarto trimestres a pouco mais de 60 euros por MWh (ou 6 cêntimos por kWh). Resumindo: nos próximos dois meses poderemos ter preços realmente baixos de eletricidade na Península Ibérica, e até ao final do ano custos um pouco superiores, mas, mesmo assim, abaixo dos registados nos últimos três anos.


A ocorrência de preços nulos na eletricidade, não sendo inédita, é preocupante. A ideia de energia barata é aliciante: quem não gosta de pagar o menos possível seja pelo que for? Mas uma tendência consistente de redução dos preços de mercado para níveis próximos do zero tem efeitos perniciosos. Afinal, qual será o investidor que arriscará aplicar milhões de euros numa central solar, eólica ou hídrica se não tiver um quadro regulatório (e remuneratório) que assegure uma receita previsível para um determinado ativo?


Projetos de energia são investimentos de longo prazo, intensivos em capital. O custo de financiamento é, por isso, uma variável crítica. E antes de os ativos poderem começar a ser remunerados, há um longo caminho de preparação do empreendimento e do seu licenciamento. Quanto mais tempo corre desde a decisão de investimento e a contratação de crédito, até ao arranque de produção, mais custos terá o promotor do projeto.


Os agentes do setor energético argumentam há anos que a previsibilidade é crucial. Com razão. Quanto mais volátil for o ambiente económico, fiscal e regulatório, mais riscos comportam os projetos. Quanto mais arriscados forem, mais caro será o seu financiamento. Mas como garantir essa previsibilidade num mercado de crescente volatilidade?


A transição energética tem levado vários governos (incluindo os de Portugal e Espanha) a incentivar a aposta na eletricidade verde. A Península Ibérica tem ainda um amplo potencial inexplorado para a produção fotovoltaica. Esta quarta-feira, num debate sobre energia no âmbito das “Jornadas de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores”, promovidas por estudantes do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, esse foi um dos tópicos: em Portugal a lista de projetos de energia solar já aprovados e por construir soma vários gigawatts (GW)… mas quando entrarem em operação que efeito terão na formação do preço grossista de eletricidade?


É bem conhecido o efeito que uma crescente penetração de fontes renováveis no sistema elétrico tem ao nível do preço grossista: quanto maior for essa oferta, mais o preço spot desce. E é expectável que em Portugal esse efeito seja cada vez mais notório nos próximos anos, com a entrada em operação de um batalhão de novas centrais de grande escala. E como uma boa parte dessa nova oferta será solar, há um risco sério de que faça baixar ainda mais o preço grossista nas horas de sol. O efeito de canibalização preocupa a indústria fotovoltaica. E, de certo modo, deveria também preocupar quem está no final da cadeia: o consumidor. A energia solar é competitiva e garante preços mais baixos que outras tecnologias, mas sem uma bem desenhada arquitetura regulatória como se assegura que essa oferta é posta em operação e beneficia efetivamente famílias e empresas com eletricidade a preços acessíveis?


A variação do preço da eletricidade ao longo do dia reflete a evolução da oferta e da procura e há anos que os especialistas do setor debatem o fenómeno da “curva do pato”: ao início do dia (com maior consumo, mas ainda sem produção solar relevante) há um primeiro pico de preço; durante o dia, com menor consumo e maior produção solar, o preço cai (numa curva que acompanha a barriga do pato); mas ao final do dia, com maior procura e já sem produção fotovoltaica, o preço volta a subir (desenhando o pescoço do pato); e à noite, com o consumo a declinar, o custo torna a baixar.

O desafio da “curva do pato” será tanto maior quanto mais o sistema elétrico estiver exposto a fontes renováveis que tenham de injetar toda a sua eletricidade na rede instantaneamente (no limite, a barriga do dito pato tende a aproximar-se do preço zero à medida que há mais produção solar no sistema). Contudo, a existência de capacidade hídrica com bombagem e de armazenamento com baterias permite mitigar o problema, dando aos produtores a possibilidade de “jogar” com os diferentes preços da eletricidade ao longo do dia, e de evitar ter um excesso de energia renovável, injetado na rede a preços muito baixos.


Ainda esta semana a Grécia realizou o seu segundo leilão de armazenamento, viabilizando 11 projetos de baterias, com uma potência de 300 megawatts (MW), no quadro de um programa que visa ter 1 gigawatt (GW) de baterias. Segundo a publicação especializada PV Magazine, a Grécia atribuiu contratos por diferenças (CfD) que garantem aos produtores uma remuneração média de quase 48 mil euros por MW por ano, durante 10 anos, a que acresce um subsídio ao investimento de 100 mil euros por MW.


Portugal está muito mais atrasado. Várias empresas vão demonstrando interesse pelas baterias: a Galp já contratou a norte-americana Powin para equipar a central solar de Alcoutim e ainda esta semana a mesma Powin foi contratada também para um projeto de 50 MW, com capacidade de armazenamento de 110 MWh, na Escócia. Mas Portugal não tem ainda um plano para o armazenamento. Como o Expresso escreveu no início deste mês, o Governo conta que o Fundo Ambiental lance até final de março um aviso de 100 milhões de euros para investimentos em baterias.


A incerteza política deixa uma nuvem carregada sobre o futuro da política energética nacional. E os programas das maiores forças partidárias no país pouco ou nada dizem sobre como gerir os desafios da eletrificação renovável no plano técnico (a rede aguenta?) e no plano económico (a que custo e com que incentivos?).


A Aliança Democrática quer “promover a análise e planeamento, transparentes e participados, das necessidades adicionais de geração, transporte e distribuição elétrica”, ponderando, por exemplo, “a maturidade tecnológica”, bem como “as capacidades de interligação e de armazenamento”. A AD preocupa-se com a eliminação da dívida tarifária, a redução de custos de energia, a “maior concorrência de mercado”, a redução da pobreza energética e um “reforço significativo das interligações elétricas”.


Mas mesmo o Partido Socialista (PS) parece não imprimir urgência ao desafio do armazenamento e do desenho de um sistema elétrico preparado para gerir mais potência renovável e variável. O programa do PS reconhece ser “essencial maximizar o potencial da rede existente e acelerar a expansão da capacidade renovável e do armazenamento de eletricidade através da bombagem, da hibridização, do recurso a baterias e do reequipamento das centrais existentes”. Contudo, em vez de ambicionar ter uma estratégia já no arranque da nova legislatura, os socialistas prometem “lançar uma estratégia nacional de armazenamento de energia até 2026”. Essa estratégia já é prometida há algum tempo (foi reiterada ainda em outubro, antes da queda do Governo). Conhecidas que são as necessidades de reforço de geração limpa no país, como se justifica aguardar mais um par de anos para definir o rumo numa matéria tão crítica como é o planeamento energético, que, como sabemos, leva anos a materializar-se? A proposta de revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (que previa uma estratégia para o armazenamento até 2025, e não 2026, e que foi apresentada pelo Governo em meados do ano passado) propunha para 2030 uma capacidade de baterias de 1 gigawatt, além de 3,9 GW em bombagem hidroelétrica. Mas como lá chegar? A que ritmo? Com que incentivos? E que resultados são esperados?


Para as eleições de 10 de março, vários partidos abordam alguns desafios da energia no país. O Chega pretende “promover a flexibilidade do sistema elétrico, com aposta no armazenamento e dinamização do mix energético nacional, complementando a produção renovável com a produção via nuclear”. Mas sem concretizar como. O Livre quer “promover uma estratégia nacional para a produção e armazenamento de energia sustentável” e aponta à reciclagem de baterias e à aposta nas baterias de sódio (e na captura de CO2). Mas sem pormenores. O Bloco de Esquerda condena as “megacentrais solares” e privilegia a produção solar descentralizada (instalar 8 GW até 2030). O PCP ambiciona a “soberania energética” e o controlo público da EDP, Galp e REN. A Iniciativa Liberal advoga “leilões tecnologicamente neutros” e diz-se a favor de “uma discussão pública e informada sobre a viabilidade económica da energia nuclear em Portugal”. Sem compromissos. E o PAN propõe “promover a reutilização das baterias de veículos elétricos em fim de vida para armazenamento de energia solar e eólica”. Sem detalhes.


Sobram muitas dúvidas sobre o que cada uma dessas forças políticas faria para planear o sistema elétrico de amanhã, à luz da crescente penetração das renováveis. Que modelo de remuneração da produção de eletricidade? Preços garantidos e contratos de longo prazo: sim ou não? Como garantir oferta de potência firme para que a rede não falhe? Que plano para promover o armazenamento de energia?


Um dos grandes riscos do atual desenho do mercado de eletricidade é que a abundante oferta de energia renovável, que tende a crescer ainda mais, atire os preços grossistas para muito próximo do zero durante o dia. Mas se o mercado remunerar os produtores ao preço da chuva (ou do sol), quem estará afinal disponível para investir em novos projetos? E com preços grossistas nulos hoje, quanto irão cobrar os produtores amanhã para equilibrar as suas contas? Quanto custam o risco e a volatilidade? É por isso que é fundamental um debate informado sobre que mercado queremos para a energia. Desse desenho (que é complexo) dependerá a evolução futura da nossa fatura. Eletricidade de borla? Era uma festa. Mas não há almoços grátis.

Descodificando


CIEG. Os custos de interesse económico geral são uma forma de classificação de encargos no sistema elétrico nacional que junta diversos tipos de custos que resultaram de decisões políticas ao longo dos anos, e que influenciam o desenho das tarifas que todos os anos são calculadas pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Aqui se incluem os valores da diferença entre o preço grossista da eletricidade e a remuneração garantida a determinados produtores, bem como o diferencial de custo dos contratos de aquisição de energia (CAE), as rendas das concessões de baixa tensão que são pagas aos municípios, o custo associado à convergência tarifária entre o continente e ilhas, os encargos com a tarifa social, e mais rubricas.



E vale a pena ler

A siderurgia representa 8% das emissões globais de dióxido de carbono, sendo, por isso, uma indústria-chave nos planos de descarbonização. Portugal poderá em breve entrar na rota dos investimentos do aço verde. O think tank E3G analisou recentemente as políticas públicas no que respeita à descarbonização do setor do aço, num relatório que pode ser lido aqui, e destaca Alemanha, França e Itália como economias que estão a fazer progressos nesta matéria.



Fica por aqui esta edição da newsletter. Se tiver críticas, comentários, reparos ou sugestões pode enviar por e-mail para mprado@expresso.impresa.pt. A próxima edição virá a 7 de março, com mais análise ao setor energético. Até breve!