Expresso Energia

O que mudou na energia num ano?

Eis que, mergulhados num clima de absoluta incerteza sobre o futuro político do país, constatamos que o mundo da energia prossegue a sua dinâmica. A ventania das últimas horas inundou a rede elétrica de abundante energia eólica e até ao início da manhã as renováveis cobriam o consumo de eletricidade do país. Nesta newsletter não trataremos deste episódio, que se tornará cada vez mais frequente nos próximos anos, mas faremos um outro exercício. O que mudou na energia no último ano? A newsletter que agora começa a ler completou um ano, e para assinalar este primeiro aniversário desafiámos os presidentes executivos da EDP, Galp, Greenvolt e REN e a secretária de Estado da Energia e Clima a refletir sobre o ano que passou. É uma mão cheia de contributos para ajudar a fazer uma retrospetiva dos últimos 12 meses.

Mas comecemos por números. Na eletricidade, o mercado descomprimiu. O preço grossista da eletricidade na Península Ibérica atingiu em janeiro os 74 euros por megawatt hora (MWh), distante dos 134 euros de fevereiro de 2023. E se em boa parte do ano que passou o mercado grossista “namorou” a marca dos 100 euros, hoje os contratos futuros sugerem que teremos um 2024 mais suave, com preços a rondar os 70 euros por MWh.


Este alívio é em parte explicado pela queda acentuada do custo do gás natural. Na sua referência europeia, os contratos TTF (Title Transfer Facility), que há um ano eram transacionados por mais de 60 euros por MWh, são hoje negociados a menos de 30 euros, e a perspetiva para o resto do ano é que assim continuem. Como uma parte da produção de eletricidade pela Europa fora vem de centrais alimentadas a gás, o corte do preço do combustível está a beneficiar também os consumidores de eletricidade do Velho Continente.


Nos combustíveis rodoviários, o que hoje pagamos pela gasolina simples (cerca de 1,7 euros por litro) não é muito diferente do preço de há um ano (1,67 euros), embora no gasóleo o custo seja maior (1,63 euros por litro hoje, contra 1,56 euros há um ano). Mas depois de um pico em setembro de 2023, nos últimos cinco meses os preços dos produtos petrolíferos aliviaram. O setor petrolífero vive hoje, ainda, com boas margens, mas os resultados das empresas do setor no quarto trimestre já sinalizaram o abrandamento depois de uma vertiginosa sucessão de ganhos históricos na refinação.


No que toca a preços, estamos hoje longe do sobressalto que vivemos no ano da invasão da Ucrânia pela Rússia, evento que espoletou um disparo dos preços da energia na Europa, em cima da recuperação que esses preços já vinham apresentando desde 2021, com a retoma da procura depois do choque da pandemia. Mas esses anos de turbulência funcionaram como alerta para os decisores do setor: a Europa precisava de reagir e encontrar um caminho para reafirmar a sua soberania energética, ser dona do seu destino e conseguir garantir a empresas e famílias acesso a energia limpa, com custos comportáveis.


O contexto desafiante que se impôs ao mundo nos últimos anos tornou ainda mais claro que a transição energética já não é opcional, mas antes obrigatória. Esta constatação tem elevado as ambições climáticas, com as energias verdes a assumirem um papel central. O acordo que saiu da COP28 no final do ano passado para triplicar a capacidade renovável e duplicar a eficiência energética até 2030, afastando definitivamente os combustíveis fósseis, é mais um exemplo”, observa o presidente executivo da EDP, Miguel Stilwell de Andrade.


O gestor da EDP sublinha, por exemplo, que no ano que passou, o preço da eletricidade na pool caiu quase 60% na Alemanha e mais de 45% em Portugal. É, diz-nos Miguel Stilwell de Andrade, “um reflexo claro da aposta na competitividade das renováveis – área em que, aliás, no último ano Portugal reforçou o seu papel de caso de sucesso a nível europeu, reduzindo a dependência externa e mitigando os impactos da volatilidade dos combustíveis fósseis”.

O CEO da EDP lembra que em janeiro 81% da eletricidade consumida no país foi abastecida por energias limpas, depois de ter fechado 2023 com um novo recorde de produção de energia renovável. Contudo, Miguel Stilwell de Andrade não deixa de apontar que “2023 também foi marcado por uma inversão na trajetória de redução da dívida tarifária em Portugal”. Embora reconhecendo a “necessidade de proteger no curto prazo os consumidores da instabilidade nos preços”, o gestor enfatiza que “é crítico assegurar a eliminação da dívida do sistema elétrico nacional o mais rapidamente possível para não continuar a onerar esses mesmos consumidores a longo prazo e para transmitir os sinais reais de mercado, com vista à promoção de soluções de eficiência energética”.


A secretária de Estado da Energia e Clima considera que 2023 “foi o ano de consolidação do caminho das renováveis como fonte de crescimento e estabilidade”. “Tornou-se claro que a volatilidade e a instabilidade nos mercados de energia a nível global devem ser encaradas como fatores estruturais (ainda que com causas conjunturais e diversas) que carecem de uma resposta firme e de longo prazo por parte dos diferentes países”, aponta Ana Fontoura Gouveia.



A governante, que tutela a energia desde janeiro de 2023, lembra que o ano que passou foi marcado por um máximo histórico de produção de eletricidade verde e pelo momento de seis dias consecutivos com as renováveis a cobrir o consumo de eletricidade. “Recordes que não se traduziram em menos ambição para o futuro. Em junho, Portugal assumiu metas mais ambiciosas em termos de incorporação de renováveis até 2030 e o ano encerrou com um recorde de nova capacidade instalada de energia solar, incluindo uma grande fatia de produção descentralizada, por parte de famílias e empresas”, destaca Ana Fontoura Gouveia.


Rodrigo Costa, que há vários anos lidera a REN – Redes Energéticas Nacionais, considera que “2023 foi um ano difícil em geral e para o sector energético em particular”, afetado por “múltiplas crises” e “pelo impacto das alterações climáticas”. Mas valoriza o “crescimento sólido da geração renovável” em Portugal. “Os novos projetos permitiram-nos continuar a adaptar ao fim da geração com carvão e ajudaram a ultrapassar as dificuldades criadas por uma das mais graves secas de que temos registo e que muito limitou a produção de energia das nossas barragens. Foram também lançadas as bases para muito projetos que a médio e longo prazo vão ser muito importantes para o futuro do País”, aponta.


Mas nem tudo são rosas. São conhecidas as dificuldades que ao longo dos últimos anos vêm sendo sentidas no país no domínio da expansão das energias renováveis. Embora sejam uma bandeira consensual das maiores forças políticas do país, as fontes limpas poderiam ter conhecido no passado recente um crescimento ainda mais acentuado, não fossem as dificuldades de licenciamento, penalizando múltiplos interessados, desde os promotores de grandes centrais solares e eólicas aos entusiastas das comunidades de energia.


“Enfrentamos com frequência grandes atrasos causados por excesso de complexidade processual, burocracia, desconhecimento técnico e desconfiança”, lamenta Rodrigo Costa. “O escrutínio e defesa do interesse da comunidade são imprescindíveis, mas o sistema tem de ser mais célere, pois os persistentes atrasos nas avaliações e decisões têm um impacto muito negativo na nossa economia”, comenta o gestor. “A vontade e responsabilidade política de fazer também é clara”, admite Rodrigo Costa. “Mas falta melhorar a coordenação de esforços entres os vários atores e melhorar a gestão dos processos”, acrescenta.



João Manso Neto, o CEO da Greenvolt (que nos últimos quatro meses valorizou em bolsa quase 60%), sublinha que “no último ano houve como que uma afirmação das renováveis a nível global, um reconhecimento da necessidade destas para travar as alterações climáticas mas, ao mesmo tempo, para garantir o acesso a um bem essencial, a energia, a preços bastante mais acessíveis”.


Energia solar e eólica reforçaram o seu lugar na matriz de produção de eletricidade. “Penso que este último ano também ficou marcado por uma maior consciência da facilidade que há, hoje em dia, em obter esta energia limpa”, aponta Manso Neto, salientando ainda a adoção de sistemas de armazenamento de energia. “A geração distribuída de energia, sem os constrangimentos ambientais e sociais dos grandes parques, utilizando apenas espaços já humanizados, permitiu-nos acelerar de forma expressiva a adoção da energia solar”, refere ainda o CEO da Greenvolt.

De facto, como contámos no Expresso, 2023 fechou com um recorde de instalações de painéis solares em Portugal, e mais de metade dessa nova capacidade foi na modalidade de autoconsumo, a prova de que empresas e cidadãos estão hoje mais sensibilizados para os benefícios da produção de eletricidade renovável junto dos pontos de consumo, em áreas já artificializadas.


O presidente executivo da Galp, Filipe Silva, nota que em Portugal “o consumo de energia primária em 2023 manteve-se estável comparado com 2022”, com os combustíveis fósseis ainda a ter um peso dominante. “Da eletricidade produzida em Portugal, cerca de 70% foi de origem renovável, um reflexo direto do significativo aumento da produção hídrica. No entanto, é de destacar que mais de 20% da eletricidade consumida em Portugal foi importada”, observa Filipe Silva. O gestor chama ainda a atenção para o lançamento de dois projetos “de escala mundial” em Sines, ambos liderados pela Galp, que considera “cruciais para a descarbonização do setor energético”, nomeadamente o de hidrogénio verde (que terá 100 megawatts de capacidade de eletrólise) e o de combustíveis sustentáveis para a aviação.


Mas olhando para fora, o CEO da Galp lembra que a procura de combustíveis fósseis continuou a aumentar. O consumo mundial de petróleo no ano passado cresceu 2% e o de gás natural 0,5%. “Infelizmente, o consumo de carvão continua em ascensão, com a entrada em operação de mais de 70 GW (gigawatts) de capacidade em centrais elétricas a carvão. Este é um cenário pouco encorajador para atingir os objetivos de neutralidade carbónica até 2050”, assinala Filipe Silva. E o gestor deixa outro alerta: “O ano de 2023 ficou também marcado pela continuação da perda acelerada de competitividade da indústria europeia, com os seus custos energéticos (gás e eletricidade) muito superiores aos dos USA e China”.


Visão distinta da da secretária de Estado da Energia e Clima. “A aposta na diversificação das fontes de energia, sempre com base nos recursos endógenos, torna o país não apenas mais resiliente, mas também mais competitivo”, aponta Ana Fontoura Gouveia, que nota que 2023 confirmou Portugal como “destino de excelência para investimentos verdes”. “A política industrial ganhou, a nível global, uma nova preponderância em 2023 e o pipeline de novos projetos no nosso país confirma que a transição energética é uma oportunidade ímpar de industrialização, crescimento e geração de emprego”, sublinha.


No que concerne à eletricidade, entrámos em 2024 com aumentos de preços para as famílias, depois de um segundo semestre de 2023 também de ajuste em alta das tarifas de acesso à rede. Mas a acalmia nos mercados energéticos trouxe benefícios, permitindo perspetivar 2024 e 2025 como anos em que a eletricidade não deverá ser um fator penalizador da competitividade.


Todavia, a bonança nos mercados energéticos na Europa deve ser encarada com as devidas cautelas, e não permitir aos decisores afrouxar o impulso que vinham dando às políticas e investimentos em descarbonização. João Manso Neto, que realça que os painéis fotovoltaicos deixaram de ser um nice to have para ser um must have, considera que a aposta exige “capacidade de decisão”. “Não são precisos subsídios, como tenho dito, mas sim uma visão de futuro para dar este passo o mais rapidamente possível”, exorta. “2023 foi um ano com acontecimentos marcantes. Mas é fundamental que 2024 seja o ano da concretização: seja do quadro legal e regulamentar, seja da aceleração dos investimentos necessários à transição energética”, acrescenta Miguel Stilwell de Andrade.


O ano que passou acabou por provar que, depois de um período de profundas convulsões, a energia parece ter reencontrado condições de alguma estabilidade para casar, de forma sustentável, as ambições dos investidores e as necessidades dos consumidores, num planeta hoje mais ameaçado do que ontem. Mas, tal como o mundo, o setor da energia é uma caixinha de surpresas, e uma fonte quase inesgotável de desenvolvimentos para analisar e descodificar. É o que prometemos continuar a fazer deste lado.

Descodificando


Autoconsumo. É um regime de produção de eletricidade de base renovável e descentralizada, no qual existe uma instalação de geração ligada a um ponto de consumo específico. A maior parte destas instalações são fotovoltaicas, abastecendo uma parte do consumo de eletricidade durante o dia daquele consumidor, e podendo injetar na rede o excedente ou escoar para um sistema de baterias, por exemplo. Se tem interesse em conhecer o quadro legal das unidades de produção para autoconsumo, também conhecidas como UPAC, encontra mais informação aqui.



E vale a pena ler


A consultora Pexapark publicou há dias o relatório “European PPA Market Outlook”, que faz um balanço do ano 2023 no que respeita a contratos de longo prazo de venda de eletricidade, e traça perspetivas para este ano. Espanha liderou, destacada, o mercado europeu de contratação a prazo de energia, quer em número de operações, quer na capacidade contratada. E Portugal passou a constar do Top 10 deste mercado.


Esta edição da newsletter fica por aqui, com um agradecimento especial aos leitores, que ao longo do último ano nos incentivaram, com o seu interesse e os seus reparos, a tentar fazer um melhor trabalho. Se tiver algum comentário, crítica ou sugestão, pode contactar-me para o endereço mprado@expresso.impresa.pt. A próxima edição virá a 22 de fevereiro. Até lá, boas energias!