A energia nuclear faz parte, há décadas, da matriz energética global. Mas é um recurso tão presente no dia-a-dia de milhões de consumidores quanto intermitente no debate público: surge e desaparece, tão depressa brilha como se apaga, entre uma comunidade de fervorosos entusiastas e uma outra de não menos intensos detratores. Entretanto, entrou em alguns programas partidários em Portugal, enquanto soma peripécias lá fora. Esta semana ficámos a saber que o projeto Hinkley Point C, no Reino Unido, afinal ainda vai precisar de mais tempo (e dinheiro). A inauguração da prometida central nuclear terá de aguardar pelo menos até 2029, talvez 2030 ou ainda 2031.
O projeto de Hinkley Point C começou a ser pensado há mais de 15 anos. Em 2008 a francesa EDF revelou planos para investir naquela central nuclear, a terceira do género em Somerset, no sudoeste do Reino Unido, e que contaria com dois reatores do tipo EPR, fabricados pela Areva, com uma potência total de 3200 megawatts (MW). Em 2012 o Governo britânico atribuiria a licença à EDF. No ano seguinte seriam firmados os termos do contrato, para viabilizar um projeto que deveria começar a produzir eletricidade a partir de 2023, cobrindo o consumo de seis milhões de famílias.
O primeiro-ministro britânico era então David Cameron, que sublinhava que “este acordo significa a atração de um investimento de 16 mil milhões de libras para o país e a criação de 25 mil empregos”, numa aposta que visava igualmente garantir a segurança energética britânica no longo prazo. Mas mais de uma década depois, Hinkley Point C tornou-se uma enorme dor de cabeça para a EDF (companhia controlada pelo Estado francês).
Na passada terça-feira, a EDF comunicou um novo adiamento do projeto, admitindo que a central nuclear poderá só arrancar em 2029 ou 2030, com um custo total de 31 a 34 mil milhões de libras (a preços de 2015). Convertido para preços atuais, como notava esta quarta-feira o “Financial Times”, o projeto Hinkley Point C custará 46 mil milhões de libras, mais de 53 mil milhões de euros. A EDF admite ainda que o projeto poderá ter um atraso adicional de 12 meses, e apenas ficar disponível em 2031. Se tal acontecer a fatura engordará em mais mil milhões de libras. Esta quinta-feira o tema voltou a ser manchete no prestigiado jornal britânico, que reporta que o Governo francês estará a pedir ajuda ao Governo britânico para ajudar a tapar parte do buraco de Hinkley Point C, numa tensão diplomática que envolve também injeções estatais a um outro investimento nuclear, o projeto Sizewell, em Sufolk.
A energia nuclear pesará na matriz (e nos bolsos de contribuintes e consumidores) do Reino Unido e de França, que não são os únicos países a apostar nesta solução. Os números da produção mundial de eletricidade nuclear mostram uma estabilização nas últimas duas décadas (depois de um forte crescimento entre a década de 1970 e a de 2000), e em 2022 a produção nuclear foi mesmo a mais baixa em seis anos. Mas a Agência Internacional de Energia (AIE) antecipa que a produção nuclear alcance um novo máximo histórico em 2025, sobretudo à boleia de nova capacidade que está a ser construída na China e na Índia.
Mas, voltando à Europa, Hinkley Point C é a aventura de uma ambição redonda, com muitos zeros (à esquerda ou à direita, conforme o ponto de vista), desenhada num projeto que se anunciava vencedor e seguro, para religar o Reino Unido à energia nuclear. Uma fonte que já era, e continua a ser hoje, a peça-chave do sistema elétrico francês, enquanto modelo de baixas emissões. Mas a incursão da EDF em solo britânico acabou por se traduzir numa aposta cara. O investimento final será mais do dobro do inicialmente estimado. O tempo de desenvolvimento e construção aproximar-se-á das duas décadas. E o custo da energia para o consumidor britânico está longe de ser competitivo: o preço garantido à EDF em 2012, de 92,5 libras por megawatt hora (MWh), é ajustado pela inflação e depois vigora por 35 anos. Esse preço de venda da eletricidade já está em 128 libras por MWh, o equivalente a quase 150 euros por MWh. God save the queen (e os consumidores britânicos e os contribuintes franceses).
Ora, 150 euros por MWh é aproximadamente a remuneração atual do primeiro parque eólico offshore em Portugal, o Windfloat Atlantic, cuja tarifa foi concedida pelo Estado português considerando o interesse de testar, no mercado nacional, uma tecnologia inovadora, a da produção eólica em plataformas flutuantes. Pagar pela produção de eletricidade 150 euros por MWh continua a ser um preço elevado: basta lembrar que antes da pandemia o preço grossista médio na Península Ibérica rondava os 50 a 60 euros por MWh; e no corrente mês de janeiro o preço médio está nos 75 euros.
Mas uma coisa é um sistema elétrico comprometer-se em remunerar durante 15 anos um produtor com 25 megawatts (MW) de capacidade a 150 euros por cada MWh injetado na rede. E coisa bem diferente é o sistema garantir durante 35 anos esse preço a um produtor com 3200 MW de capacidade, e um fator de utilização maior (as centrais nucleares tipicamente produzem em contínuo, ao contrário dos parques eólicos, com um perfil muito mais variável).
A produção em contínuo da energia nuclear (quando não há falhas ou manutenções, claro) é frequentemente apontada pelos seus entusiastas como uma vantagem face à intermitência de algumas fontes renováveis, que apenas geram eletricidade numa parte das horas do ano. É comum encontrar nos argumentos dos defensores da opção nuclear a ideia de que, a prazo, as centrais nucleares saem mais baratas do que as renováveis, pois as duas fontes devem ser comparadas pelos custos totais da sua operação (a metodologia LFSCOE) e não apenas pelos custos nivelados da eletricidade (LCOE, na sigla em inglês).
Assim, há que considerar que, embora do ponto de vista de um investidor um parque eólico seja viável com um determinado preço médio de venda de eletricidade (X), do ponto de vista do consumidor final, o custo da energia será mais elevado (Y), pois aquele parque eólico não garante, isoladamente, todas as necessidades do consumo, e precisará de ser complementado com fontes despacháveis (como o gás natural, as hídricas com armazenamento ou as baterias), cujo custo deve igualmente ser considerado na equação. Essa preocupação é legítima, mas é difícil considerar vantajoso um projeto como Hinkley Point C, remunerado a 150 euros por MWh e no qual estão a ser comprometidos 53 mil milhões de euros por uma capacidade de 3200 megawatts. São mais de 16 milhões de euros por MW, quando o investimento fotovoltaico está a ser feito a meio milhão de euros por MW e o eólico em terra a cerca de 1 milhão de euros por MW.
Claro que Hinkley Point C é um caso extremo. Mas debater opções de política energética e de segurança do sistema elétrico implica considerar cenários extremos, para perceber se, caso algo corra mal, ficará tudo bem. E claro que a caminhada nas energias renováveis não está livre de percalços. Ao longo dos anos não faltaram, em Portugal, derrapagens em projetos de energia renovável. Em 2017 uma auditoria da EY, encomendada pela EDP, detetou situações de deficiente controlo das obras e dos custos nas barragens de Baixo Sabor, Ribeiradio Ermida e Foz Tua, Em Baixo Sabor, o que devia ser um investimento de 257 milhões de euros acabou por custar 464 milhões. Em Foz Tua os encargos deslizaram de 162 para 237 milhões de euros. E em Ribeiradio Ermida o custo ficou em 135 milhões de euros, em vez dos inicialmente estimados 88 milhões.
Mais recentemente, também assistimos à morosidade dos projetos fotovoltaicos dos leilões de 2019 e 2020, cujos promotores solicitaram ao atual Governo mais tempo para a concretização, invocando, por exemplo, os desafios e imprevistos associados à pandemia (que não só criou obstáculos nos serviços administrativos como também provocou, a nível global, uma disrupção da cadeia de fornecimento, incluindo de equipamentos de energia solar). Uma boa parte da capacidade adjudicada em 2019 já está operacional, mas a aposta do país nas centrais solares de grande escala vem mostrando que, mesmo em projetos com uma tecnologia madura, como a fotovoltaica, o tempo de desenvolvimento, até aos primeiros eletrões serem injetados na rede, pode ser longo.
Apesar do sorvedouro de dinheiro que se tornou Hinkley Point C, não faltam entusiastas da opção nuclear, mais recentemente animados pela hipótese dos reatores modulares de menor dimensão (SMR na sigla em inglês). Há dias, em entrevista ao jornal “Sol”, o empresário Patrick Monteiro de Barros, saiu em defesa da energia nuclear, dizendo ver “com a maior preocupação” que Portugal continue de costas voltadas para essa fonte. “A política energética portuguesa é um desastre”, acusou Monteiro de Barros, que há duas décadas defendera, juntamente com Pedro Sampaio Nunes, que o país avançasse com uma central nuclear de 1600 MW, e um investimento de 3,5 mil milhões de euros, em Alqueva. A ideia nunca vingou.
Mas pelo mundo fora continua a haver projetos. Segundo a World Nuclear Association, a China tem 27,75 gigawatts (GW) de potência nuclear em construção, que somará aos 53,29 GW que já tem em operação, o que a tornará o segundo maior produtor do mundo, logo a seguir aos Estados Unidos da América e ultrapassando a França. Outros países, como Índia, Turquia, Egito, Reino Unido, Japão, Rússia, Coreia do Sul, também têm projetos em construção.
Duas décadas depois, o mundo da energia nuclear revigorou o entusiasmo, à boleia dos novos reatores de menor potência e maior versatilidade, cujo desenvolvimento poderia ser menos complexo do que o de centrais de grande escala, como Hinkley Point C. Mas mesmo esta nova indústria dos SMR vive dias difíceis. Em novembro a norte-americana Nuscale, cujo reator de 77 MW, já havia sido certificado pelo supervisor americano de energia nuclear, abandonou um projeto que tinha no Utah, após ter elevado a previsão de preço de venda da energia, o que levantou críticas por parte dos municípios que seriam servidos pela central. Quando anunciou o fim desse projeto, a Nuscale viu as suas ações afundar 37%. Já no corrente mês de janeiro a empresa dispensou 154 funcionários, 28% do seu quadro de pessoal.
Por cá, o Chega, terceira força partidária no Parlamento, defende que se inicie um estudo técnico em Portugal sobre estes pequenos reatores nucleares. Não é, aliás, o primeiro partido a abordar este tema. No seu programa eleitoral para as legislativas de 2022 o Livre já havia prometido “seguir atentamente o desenvolvimento de novas tecnologias de produção de energia nuclear (como os small modular reactors, ou a fusão nuclear), que poderão contribuir para a descarbonização, assim como dar resposta ao crescente consumo energético”.
Contudo, as experiências do exterior aconselham prudência nesta matéria. Se a aposta na energia nuclear, que nunca foi consensual na sociedade portuguesa ao longo de décadas, implica um amplo debate sobre custos e benefícios, a urgência climática requer uma rápida implementação de soluções de descarbonização. Nas últimas duas décadas o caminho seguido pelos decisores políticos em Portugal, no que à eletricidade respeita, foi o das renováveis. O país reforçou a capacidade hidroelétrica, um recurso no qual já tinha uma larga e longa experiência. Apostou nas eólicas, enquanto tecnologia amadurecida. E, mais recentemente, investiu em força nas fotovoltaicas, quando estas já assumiam preços particularmente competitivos.
Um dos grandes desafios das próximas décadas será garantir a segurança de abastecimento com um mix 100% renovável, apoiado por soluções de armazenamento, e conseguindo, de forma faseada, reduzir a dependência das centrais a gás natural enquanto backup para a variabilidade da produção eólica, solar e hídrica. Mas, se é verdade que as renováveis têm um fator de utilização inferior ao das centrais nucleares, como também em tempos aqui escrevemos, apostar na energia nuclear não é garantia, por si só, de segurança, porque também os reatores têm necessidades de manutenção e paragens prolongadas, e não estão disponíveis a todo o tempo. Ana Estanqueiro, investigadora do LNEG, considera mesmo que já não há margem para acomodar centrais nucleares no sistema elétrico nacional (pode ouvir a entrevista ao podcast Futuro do Futuro aqui). “Quando tomámos no final dos anos 80 e no princípio dos anos 90 a opção claramente renovável retirámos do nosso horizonte a hipótese de ter centrais nucleares”, afirma.
E ainda há um par de semanas António Mexia, ex-presidente executivo da EDP, afastou liminarmente a opção nuclear. “Há 500 tópicos úteis para discutir em Portugal. Esse é totalmente inútil”, afirmou numa palestra no Taguspark. E, no entanto, o tema persiste. Saber se a energia nuclear vai triunfar no quadro da descarbonização já não é uma “million-dollar question”. Derrapou e transformou-se numa “billion-dollar question”. Enquanto isso, a francesa EDF continua a debater-se com Hinkley Point C, enquanto procura um final feliz que, mais de 50 mil milhões de euros depois, tarda em chegar.
Descodificando:
LFSCOE. Na análise económica das diferentes opções para produzir eletricidade é comum a metodologia do custo nivelado da eletricidade (ou LCOE, no acrónimo em inglês), que, como já abordámos numa das primeiras edições desta newsletter, aponta o preço médio a que um produtor precisará de vender a sua eletricidade para pagar o investimento e ter retorno, considerando o custo da tecnologia e as suas especificidades (incluindo o número de horas por ano que se espera que produza). Mas no setor energético é também usada uma outra metodologia, a do LFSCOE – Levelized Full System Costs of Electricity, que incorpora nos custos de uma tecnologia específica os encargos associados ao armazenamento que será necessário para garantir a continuidade de abastecimento do consumidor final.
E vale a pena ler:
A Agência Internacional de Energia lançou este mês o relatório “Electricity 2024”, um trabalho extenso que analisa o setor elétrico e projeta os seus desenvolvimentos até ao ano 2026, debruçando-se sobre várias regiões do mundo e o estado das principais tecnologias de geração. O documento pode ser lido aqui.
Esta edição da newsletter fica por aqui e voltaremos dia 8 de fevereiro, com mais energia. Até lá, pode contactar-me para mprado@expresso.impresa.pt e expor as suas dúvidas, críticas, sugestões ou outros comentários. Tenha um resto de boa semana!