Expresso Energia

A política energética está embrulhada em incerteza: pode piorar?

“Não conheço um secretário de Estado da Energia em Espanha ou Portugal que não tenha mudado a legislação. Se não o fez foi porque não esteve tempo suficiente no cargo”. A afirmação, de José Donoso, diretor da UNEF, a associação espanhola do setor fotovoltaico, provocou alguns sorrisos na plateia da conferência “Portugal Renewable Energy Summit”, esta quarta-feira, em Lisboa. Era apenas um reparo sobre como a constante mudança das regras do jogo preocupa as empresas de energia, sempre defensoras de previsibilidade na hora de investir. Se Espanha conhece bem o que é instabilidade, depois de algumas medidas que cortaram as remunerações dos produtores de eletricidade com efeitos retroativos, em Portugal o “buraco negro” introduzido pela crise política das últimas semanas é uma nova realidade, num país cuja agenda energética tem sido pautada por uma linha de continuidade e pelo diálogo com os agentes do setor, um processo saudável, mas tantas vezes confundido com uma pecaminosa e malévola promiscuidade com as empresas de energia.

É ainda uma incógnita o que acontecerá nos próximos meses. O Governo português está a avaliar que decisões pode tomar e que planos têm de ficar na gaveta. Se é de admitir que o leilão de hidrogénio e gases renováveis ficará em standby, e que também o leilão eólico offshore não passará da fase de diálogo com os interessados, é incerto o que sucederá com as intenções de lançar uma estratégia para o armazenamento de energia, por exemplo. A publicação das regras para futuros concursos para concessões da rede de distribuição de eletricidade em baixa tensão é um passo relevante num dossiê que se arrasta há uma eternidade, mas não é garantia de que a curto prazo haja licitações. O contrato de aquisição de energia da central a gás da Tapada do Outeiro termina em março e se nada for feito até lá esta importante unidade de produção poderá ficar “fora de jogo”. Entre um Governo que entrará em gestão agora em dezembro, a realização de eleições legislativas a 10 de março, a tomada de posse do próximo Executivo e a retoma da política energética como a conhecemos passarão não menos de quatro meses, provavelmente cinco ou seis, talvez mais do que isso.


Portugal estava a seguir uma trajetória de aceleração da eletrificação de base renovável. Nos últimos anos o país assistiu a uma forte dinâmica de promotores que foram tentando entrar num mercado onde toda e qualquer ação política para abrir portas ao investimento em energias limpas passou a ser vista, entre alguns formadores de opinião, como a criação de negócios para amigos ou a perpetuação de rendas antigas. No setor elétrico é justamente o inverso: o leque de atores é cada vez mais amplo e diversificado e as novas remunerações são competitivas. Soluções de descarbonização menos maduras, como o hidrogénio verde e os combustíveis sustentáveis para a aviação, precisarão ainda de subvenções (as fases iniciais da transição energética sairão mais caras, como aqui advertia o líder da Eurogas), mas a massificação e as economias de escala poderão torná-las uma inevitabilidade na nossa matriz energética. Mas voltemos à eletricidade.


Na energia solar o leilão de 2019 deu espaço (num procedimento competitivo, note-se) a empresas como a Akuo, Aura Power, Prosolia e Iberdrola. O leilão de 2020, novamente esmagando preços, atribuiu lotes a vários promotores, com destaque para os sul-coreanos da Hanwha (Q Energy). Já este ano, o lançamento do primeiro leilão eólico offshore atraiu meia centena de interessados, incluindo companhias estrangeiras como a Iberdrola, Invenergy, BayWa, Corio, RWE, Equinor, Smartenergy, Capital Energy, Repsol, TotalEnergies, Marubeni, entre outras. Uma invejável, de tão extensa e diversa, carteira de amizades, portanto. Para um país que durante décadas viveu num sistema elétrico monopolista, a entrada de novos agentes com dimensão relevante e capacidade competitiva devia ser recebida de braços abertos. Mas tende a ser ignorada pelos mais críticos das energias verdes, agarrados a uma visão anacrónica do país, à memória cristalizada de um sistema mais dependente de centrais termoelétricas e ao sonho de um futuro nuclear que há décadas se anuncia como glorioso.


É claro que o que move as empresas do “lóbi mau” das renováveis em Portugal é o dinheiro que cada uma delas espera ganhar com os potenciais investimentos em centrais solares ou em parques eólicos, sejam em terra ou no mar. As empresas não o escondem. Faz parte do jogo e da sua razão de existir: investir em projetos rentáveis. Surpreendente? No final, tudo isto é visto por alguns como o abominável negócio da energia, que gera lucros milionários à custa dos consumidores. Pelo meio, atrai investimento, paga rendas a proprietários de terrenos no meio de nenhures, suporta salários a quem desenha, constrói e mantém as centrais, emprega fornadas de jovens engenheiros saídos das universidades, aproveita conhecimento académico, paga impostos. Em cima disso, gera eletricidade limpa e, na maior parte do tempo, contribui para baixar o preço grossista da energia.


Como José Donoso, da UNEF, sublinhava esta quarta-feira na conferência da Apren – Associação de Energias Renováveis, “as renováveis são um negócio, mas não podemos perder de vista a dimensão social”, ou seja, o facto de elas contribuírem para a geração de eletricidade sem emissões de dióxido de carbono, em benefício da sociedade como um todo. Mas o mesmo responsável admitia que hoje em dia “o principal desafio é a aceitação social”.


Não há como escapar a essa questão nos dias que correm. A hipermediatização de protestos pelo clima de um pequeno movimento de ativistas poderá criar na sociedade civil um legítimo questionamento sobre o real contributo das empresas de energia para a descarbonização. Protestam ruidosamente. Mas, paradoxalmente, fazem-no (não só mas também) em congressos sobre gases renováveis, interrompem conferências sobre energia limpa e confundem a defesa do planeta com a guerrilha anti-capitalista. Param para gritar, sem cuidar de escutar.


Na mesma conferência em que alguns destes ativistas repetiram a narrativa que diaboliza as maiores empresas de energia, Ignacio Cobo, da consultora Afry, deixava notas interessantes. Reconhecendo que os planos nacionais de energia e clima de Portugal e Espanha são “muito ambiciosos”, o especialista notava que “a boa notícia é que existe um apetite dos investidores muito grande” e que “agora é preciso pôr mãos à obra, acelerar o licenciamento, facilitar o acesso à rede”. Na verdade, temos quase tudo o que é preciso: há sol, há vento, há água, há território, há capital. “O músculo está aí, é questão de o exercitar”, resumia Ignacio Cobo.


É um facto que nas últimas décadas os decisores políticos em Portugal nunca arriscaram reabrir o debate sobre a opção nuclear. As renováveis têm sido (e provavelmente continuarão a ser) a força motriz do processo de descarbonização na Península Ibérica. Será um caminho repleto de obstáculos e desafios, sobretudo porque mais eólica e solar na rede elétrica traz mais variabilidade na produção e obriga a ter ferramentas para reagir rapidamente quando, por exemplo, o vento desaparece. Ou quando ele é demasiado abundante.


Ignacio Cobo afirmava, na conferência da Apren, que Espanha tem registado “episódios significativos” de curtailment (corte forçado da produção, nomeadamente nos parques eólicos e solares), porque “a rede não consegue acomodar toda a produção renovável”. “À medida que o tempo irá passando haverá mais curtailment. Não é uma falha do mercado, é uma regra do jogo”, avisou.


E nesta caminhada há um outro desafio: canibalização de preços. Segundo o responsável da Afry, a aposta no armazenamento permitirá mitigar o fenómeno de queda do preço grossista da eletricidade associado à crescente oferta de energia verde (bem patente no passado mês de novembro, o mais barato em quase três anos). Mas Ignacio Cobo considera que “falta na Península Ibérica uma estratégia harmonizada para o armazenamento”. Na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (outro dossiê sobre o qual se levanta um enorme ponto de interrogação), o atual Governo traçou um objetivo de até 2030 Portugal ter 1 gigawatt (GW) de baterias e 3,9 GW de centrais hidroelétricas com bombagem (atualmente são 3,6 GW). Em Espanha o plano para 2030 eleva para 22 GW a capacidade total de armazenamento.


Por cá, a secretária de Estado da Energia e Clima, Ana Fontoura Gouveia, havia prometido lançar até ao final do ano um concurso para apoiar o investimento em baterias, bem como uma estratégia para o armazenamento. Ora, este é um tema crucial para o futuro do mercado ibérico, sobretudo considerando a opção política de promover a descarbonização unicamente por via da aposta das renováveis. Na conferência “Portugal Renewable Energy Summit”, Diogo Leal Faria, administrador da EDP Produção, salientava que “a energia hídrica proporciona flexibilidade” e notava que “a bombagem é a mais eficaz solução de armazenamento de longa duração”.


Com efeito, num sistema elétrico que terá ainda mais capacidade eólica e solar, será fundamental ter no setor hídrico margem para acomodar os excedentes de produção a partir do vento e do sol, aproveitando-os num ciclo virtuoso de energia renovável, e evitando desperdiçar capacidade de geração que já está instalada (o hidrogénio verde será uma forma de criar nova procura, mas já lá vamos).


Embora admitindo que no futuro o sistema elétrico deverá recorrer a diversas soluções, como as baterias de lítio, a inércia sintética ou a gestão da procura, Diogo Leal Faria comentava que “precisamos de trabalhar com o que já temos”. Leia-se: barragens.


E o aparelho hidroelétrico existente no país tem mostrado, de facto, uma assinalável capacidade de resposta. Veja-se o diagrama do passado domingo, 26 de novembro. Entre as 15h45 e as 16h, a potência hídrica em produção passou de 2,1 GW para quase 4,5 GW, segundo os dados do REN Datahub. Um salto de 2,3 GW em apenas um quarto de hora. Mais do que a potência conjunta das já desativadas centrais a carvão de Sines e do Pego. E mais do que a capacidade da central nuclear de Almaraz.

Não é surpresa que as hídricas têm uma capacidade de resposta rápida. Mas esse será um fator especialmente importante num quadro de maior penetração de capacidade eólica, que deixará o sistema elétrico mais exposto ao risco de uma súbita queda da produção desta fonte.


Se a boa notícia é que Portugal tem lidado razoavelmente bem com a variabilidade eólica, e com a crescente incorporação fotovoltaica, o reverso da medalha é que a flexibilidade hidroelétrica se faz pagar bem (o passado dia 26, ilustrado acima, foi, aliás, o segundo dia mais caro de novembro no mercado ibérico). No atual desenho de mercado (e nada indica que ele mude substancialmente a curto prazo), as centrais hídricas continuarão a ter a capacidade de marcar o preço grossista da eletricidade a cada hora, juntamente com as centrais a gás.


Os dados do Omie, operador do mercado diário de eletricidade na Península Ibérica, evidenciam que em grande parte do tempo são as hídricas que marcam o preço. Ou seja, são as últimas centrais a fechar o casamento entre oferta e procura para um dado período. Esta quinta-feira, por exemplo, a hídrica marca o preço em 18 horas, enquanto as centrais de ciclo combinado a gás natural apenas marcam o preço em duas horas, de acordo com o Omie. E esse comportamento repete-se com grande frequência, com algumas centrais hídricas a cobrar mais pela sua energia do que as centrais a gás, apesar de não terem o custo do combustível (ou das emissões) das termoelétricas.


Num sistema elétrico futuro sem nuclear nem carvão, as centrais a gás funcionarão cada vez menos horas (cobrando tendencialmente preços mais altos pelo pouco tempo em que serão ativadas). Mas com uma oferta residual de gás, a flexibilidade oferecida pelas centrais hidroelétricas nas horas sem vento nem sol tornar-se-á ainda mais valiosa, podendo ampliar a volatilidade dos preços grossistas da eletricidade. É ainda uma incógnita o efeito que a instalação de baterias ou o desenvolvimento de uma gestão flexível da procura poderão ter na mitigação dessa volatilidade, alisando os preços intradiários.


Na conferência da Apren, Ana Barillas, diretora da Aurora Energy Research para a Península Ibérica, indicava que “precisamos de procura adicional para mitigar o efeito de canibalização das renováveis”, notando que o hidrogénio verde poderá ser relevante para isso e que “Portugal e Espanha estão muito bem posicionados para a produção de hidrogénio verde”. Todavia, esta aposta enfrenta um leque alargado de dúvidas. “A RED [diretiva europeia das renováveis] prevê 42% de hidrogénio verde [na indústria] em 2030, mas nem sequer sabemos quais são as penalizações para quem não cumprir”, observou Ana Quelhas, diretora da área de hidrogénio na EDP Renováveis. A gestora acrescentou que só o transporte de hidrogénio poderá duplicar o seu custo. “Transportar hidrogénio será sempre complicado e caro e creio que estamos longe disso. Sei que há projetos virados para aí. Desejo-lhes boa sorte”, acrescentou Sérgio Goulart Machado, diretor do negócio de hidrogénio da Galp. Mensagem central: produzir o hidrogénio o mais perto possível do local de consumo.


A crise política em Portugal dificultará, no curto prazo, a tomada de decisões na cúpula do Governo. O diretor-geral de Energia, Jerónimo Cunha, no entanto, afirmou esta semana ao “Jornal Económico”, que do seu lado “as coisas vão continuar a acontecer”, prometendo que “os processos de licenciamento continuarão”. Mas o quadro confuso em que as empresas de energia têm de operar não se limita a Portugal.


Se o presidente da associação eólica europeia Wind Europe, Giles Dickson, sustentava, esta quarta-feira, que “a expansão das renováveis é uma questão de superior interesse público”, a presidente da associação Solar Power Europe, Walburga Hemetsberger, defendeu que com o protecionismo “saímos todos a perder”. “As medidas protecionistas são uma lose-lose situation, alertou a responsável da associação que defende os interesses das empresas de energia solar, contestando a hipótese de Bruxelas tentar travar as importações de equipamentos fotovoltaicos, designadamente da Ásia.


Giles Dickson qualifica como “muito útil” o que o pacote europeu Net Zero Industry Act contempla para o licenciamento de nova capacidade eólica e solar. Mas para Walburga Hemetsberger a Europa continua a enfrentar entraves na aposta renovável. “Se perguntar aos fabricantes europeus se querem algo parecido com o Inflation Reduction Act [dos Estados Unidos], a resposta é afirmativa, porque é um pacote eficaz”, sublinhou a líder da Solar Power Europe, lamentando que na Europa se demora “muito tempo” a obter “luz verde” para apoios públicos à luz das regras de auxílio de Estado.


Só o primeiro dia da conferência da Apren, em Lisboa, foi suficiente para constatar a complexa encruzilhada em que se encontra a Europa no que respeita à descarbonização da energia. Está por aprovar regulação em várias áreas (como o hidrogénio), falta alinhar estratégias comuns (como o armazenamento de energia na Península Ibérica) e há um nevoeiro cerrado quanto ao caminho que um próximo Governo em Portugal tomará nas políticas públicas de energia. Entretanto, começa no Dubai mais uma COP, com renovadas promessas de ambiciosas estratégias pelo clima. De boas intenções vamos bem. Falta o resto.

DESCODIFICANDO:


Inércia. Um dos desafios técnicos com que o sistema elétrico se tem confrontado é com a perda de inércia à medida que saem de operação centrais termoelétricas ou hídricas, cujas máquinas ajudam a estabilizar a rede. Num cenário de maior penetração de fontes renováveis, como centrais eólicas e solares, esse desafio tende a crescer, sendo mais complexo fazer a cada instante coincidir perfeitamente a oferta e a procura, sem desvios de frequência. O setor energético e a engenharia têm trabalhado em soluções para tentar conferir aos sistemas de geração renovável uma “inércia sintética” que permita mitigar o risco de instabilidade, mas também ela tem as suas limitações. Uma das soluções pode passar pelo uso dos equipamentos da geração convencional que não estejam já a produzir eletricidade para funcionarem como “compensadores” (em vez de gerarem eletricidade trabalham somente como motores, mas ajudam a estabilizar a rede elétrica). Mas de acordo com João Peças Lopes, professor catedrático da FEUP, esta opção carece ainda de regulamentação e regulação que defina os termos em que este serviço ao sistema possa ser remunerado.



VALE A PENA LER:


A Eurelectric, associação europeia do setor elétrico, publicou há dias um estudo levado a cabo pela empresa Pexapark que defende a existência de vantagens na contratação de eletricidade limpa numa base horária, 24 horas por dia, sete dias por semana, em vez do estabelecimento mais convencional de contratos de aquisição de energia (PPA, em inglês) de base anual, em que o comprador adquire e paga um determinado volume anual de eletricidade de origem renovável. O trabalho da Pexapark, que estudou casos na Alemanha e na Finlândia e que pode ser consultado aqui, defende que a abordagem 24/7 reduz a exposição ao mercado, conferindo aos contratos uma maior certeza sobre o preço.



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