“Let’s turn promises into progress”. A mensagem consta de um cartaz que a organização da COP28 “plantou” nos últimos dias no Dubai num dos pontos de passagem do evento de preparação da cimeira do clima que decorrerá no final deste mês. Faz lembrar o otimismo do adepto de futebol que, inabalável no seu fervor, perante um longo jejum de títulos, proclama: “este ano é que é”. Mas acelerar a descarbonização irá requerer ação, mais do que promessas. E pragmatismo, mais do que cartas de amor ao planeta. A conjuntura é especialmente difícil. Projetos eólicos offshore de larga escala estão a ser cancelados. Fabricantes de turbinas eólicas afundam-se em bolsa. Imparidades multimilionárias. E a indústria europeia a titubear perante a concorrência asiática.
“Precisamos de um rápido progresso para conseguir um corte de 43% nas emissões até 2030”, dizia no início da semana o presidente da COP28, Ahmed Al Jaber, no lançamento da conferência de preparação da COP, que reuniu no Dubai líderes de todo o mundo, para tentar cozinhar um compromisso político antes que o aquecimento global nos coza a todos primeiro. “Isto só pode funcionar se implementarmos uma justa e responsável transição energética na base da equidade”, dizia ainda Al Jaber, um executivo cujo currículo inclui a fundação da empresa de energias renováveis Masdar e a liderança da petrolífera estatal de Abu Dhabi.
A COP28 decorrerá no Dubai, cuja economia depende em larga medida do turismo e dos serviços financeiros, e onde o petróleo tem um peso já residual. Mas os Emirados Árabes Unidos continuam a integrar a lista dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo, tal como os vizinhos Koweit, Irão, Iraque e Arábia Saudita (a segunda potência petrolífera global, apenas atrás dos Estados Unidos).
Na sua mensagem de boas-vindas na passada segunda-feira, Al Jaber disse também que “precisamos de ser responsáveis, realistas, pragmáticos, e não deixar ninguém para trás”, na missão de “descarbonizar o sistema energético atual, triplicando as energias renováveis e duplicando a eficiência energética”. No plano das ambições, é difícil estar em desacordo: a transição energética tem de ser justa e abrangente.
Desde a Conferência das Partes (cuja sigla em inglês é COP) realizada em Berlim em 1995 que o aquecimento global tem estado na agenda política. Depois veio o Protocolo de Quioto, em 1997, prometendo uma redução das emissões nos países industrializados. Em 2007, em Bali, ficaram prometidas negociações para alargar o compromisso a todos os países. Sucessivas cimeiras foram decorrendo, como a COP de Paris, em 2015, acordando limitar o aquecimento global a 2 graus face à era pré-industrial, mas envidando esforços para não ir além de 1,5 graus.
Globalmente, já se investe mais em energias limpas do que em combustíveis fósseis, mostram os dados do World Energy Outlook, da Agência Internacional da Energia (AIE). Mas a humanidade continua a precisar dos fósseis enquanto as alternativas limpas não resolvem, sozinhas, a equação.
Portugal tem feito o seu caminho. Em 2021 as emissões de dióxido de carbono (CO2) no país somaram 56,5 milhões de toneladas, uma queda de 35% face aos níveis de 2005. Com o setor da energia (incluindo transportes) a representar cerca de dois terços das emissões, é natural que as baterias estejam apontadas às políticas públicas nesta área, sendo que também aí tem havido progressos. O consumo de energia primária em Portugal recuou 23% entre 2005 e 2021. Em 2022, como pode ler no Expresso, o país elevou para 34,5% a incorporação de renováveis no consumo final de energia, um novo máximo.
Na eletricidade vamos em 61,4% de renováveis, mas enfrentamos um árduo caminho para até 2030 chegar aos 85% prometidos na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC). Veja bem: nos últimos seis anos Portugal subiu a incorporação de renováveis na eletricidade em 7 pontos percentuais. O Governo propõe agora conquistar outros 24 pontos nos próximos sete anos. Como no futebol, a esperança é a última a morrer. Mas o ambiente em que nos propomos agora acelerar o ritmo da corrida é extraordinariamente complexo.
No mesmo dia em que o Governo abriu a janela para a manifestação de interesse para o primeiro leilão eólico offshore, a dinamarquesa Orsted (que se aliou à Repsol e está interessada na licitação portuguesa) fechou a porta aos Estados Unidos. Com estrondo: a Orsted decidiu abandonar dois projetos eólicos offshore nos EUA, devido aos desafios na cadeia de abastecimento, atrasos e aumento do custo de financiamento, registando uma imparidade da ordem dos 3,8 mil milhões de euros, atirando as contas deste ano para o vermelho. Resultado: esta quarta-feira as ações da empresa dinamarquesa caíram mais de 25%.
Na Alemanha, a Siemens Energy (detida em 25% pelo grupo Siemens) enfrentou na semana passada um colapso similar. Na quinta-feira, 26 de outubro, as suas ações afundaram-se 35% (tendo desde então recuperado apenas parcialmente), depois de notícias que davam conta de contactos entre a empresa e o Governo alemão em busca de garantias estatais em torno dos 15 mil milhões de euros, para ajudar a companhia a sobreviver a uma crise, na sequência das avultadas perdas provocadas por falhas de qualidade no seu negócio de aerogeradores.
O vendaval no setor das renováveis tem sido abrangente e não deixou de parte as empresas portuguesas. A EDP Renováveis já no primeiro semestre havia assumido uma perda de 10 milhões de euros pelo cancelamento do contrato de energia de um dos seus projetos eólicos offshore nos Estados Unidos, bem como custos com o atraso de novos projetos nos EUA e na Colômbia (que a empresa avaliou em 55 milhões de euros até setembro, mas admite que se possam aproximar dos 100 milhões de euros até final do ano). Também a Galp revelou esta semana o adiamento de um conjunto de cinco projetos de energias renováveis no Brasil, assumindo um encargo de 59 milhões de euros.
Importa lembrar, todavia, que derrapagens como as que as renováveis vão tendo estes dias têm marcado também outras apostas energéticas. Se falarmos em dinheiro que voa, lembremo-nos da construção da central nuclear Hinkley Point C, no Reino Unido, que terá 3,2 gigawatts de potência, e vai custar o equivalente a 37,6 mil milhões de euros, mais 14 mil milhões do que a estimativa inicial. Também podemos recordar os 9 mil milhões de euros de custos literalmente afundados com a sabotagem do gasoduto Nordstream 2.
Se as perdas podem ser mais preocupantes, em primeira linha, para os acionistas (desde o início do ano a capitalização bolsista da EDP Renováveis encolheu 26%, por exemplo), elas podem também funcionar como um alerta à navegação dos decisores políticos: entre a vontade, pública e privada, de contribuir para a descarbonização, e a concretização dos projetos vai um tempo maior que o do processo de fixação de objetivos ambiciosos.
Não deixa de ser um sinal positivo que a Galp tenha tomado a decisão final de investir 650 milhões de euros na descarbonização da refinaria em Sines. E é positivo que em setembro Portugal tenha adicionado mais 157 megawatts (MW) fotovoltaicos, chegando a uma potência solar de 3,35 gigawatts (GW). Mas parece curto para o caminho traçado. O país adicionou nos primeiros nove meses do ano 691 MW fotovoltaicos, sendo ainda incerto se conseguirá bater os 958 MW instalados no total do ano passado. Cumprir o objetivo de ter 20,4 GW de capacidade solar em 2030 obrigaria a instalar anualmente 2,4 GW de nova potência. Estamos longe.
Dar corpo à ambição do PNEC irá requerer um alinhamento de incentivos. Os promotores de projetos de energia solar já mostraram que a tecnologia não precisa de subsídios. Tem o mais reduzido custo nivelado de produção entre as soluções renováveis (e não renováveis) para o futuro do sistema elétrico. Pode contribuir para a descarbonização tanto no modelo centralizado como no formato distribuído, para autoconsumo. Mas o futuro não é garantidamente um mar de rosas.
Na quarta-feira o mercado ibérico de eletricidade viu o preço grossista afundar-se para o valor mais baixo do ano. Esta quinta-feira repetiu a proeza e recuou mais uns cêntimos, para novo mínimo anual. O fenómeno faz parte da normal volatilidade do mercado, que tão depressa encaminha o preço para zero como o dispara para o céu. Mas a prazo que promotores (e produtores) estarão dispostos a arriscar investir dezenas ou centenas de milhões de euros em centrais solares sabendo que a abundância de oferta fotovoltaica na rede afundará o preço do mercado? E como garantir que a produção das centrais a gás natural estará disponível para funcionar numa ínfima parte das horas do ano, quando a incorporação renovável for maior, mas a sua variabilidade exigir, em alguns momentos, backup termoelétrico?
A transição energética, além de bandeira da COP, precisa de se afirmar, solidamente, como um ativo com retorno, capaz de mobilizar decisões de investimento racionais, ao mesmo tempo que garanta preços comportáveis para o consumidor final. O desenho do mercado de eletricidade, das suas condições e incentivos, e dos seus complexos mecanismos, é uma peça-chave. Não é preciso reinventar a roda. Mas é fundamental que o carro ande.
DESCODIFICANDO:
Energia primária. Refere-se às várias fontes energéticas disponíveis na natureza e que tanto podem ser usadas diretamente como ser sujeitas a transformação para outras formas de energia final. Segundo a DGEG, em 2022 Portugal consumiu 21,3 milhões de toneladas equivalentes de petróleo (TEP) de energia primária e 16,5 milhões de TEP de energia final. Na energia final o petróleo teve a maior fatia: pesou 45% (transformado em diversos produtos), seguido da eletricidade (25,3%), gás natural (9,9%), biomassa (6,8%), calor (6,6%) e outras formas de consumo. O petróleo é um exemplo de fonte de energia primária que pode ser transformado em energia final em produtos como a gasolina ou o gasóleo. O gás natural é uma fonte primária que tanto pode ser consumida diretamente pela indústria e famílias como pode ser queimado em centrais de ciclo combinado para gerar eletricidade (a energia final). Também a biomassa pode ser usada diretamente pelas famílias (que usam lenha no seu aquecimento, por exemplo) ou como meio para produzir eletricidade como energia final.
E VALE A PENA LER:
Há dias o think tank europeu E3G, focado nas alterações climáticas, publicou uma análise sobre a cooperação transatlântica em matéria de descarbonização. O documento, que pode ser lido aqui, lamenta que do último encontro de alto nível entre os Estados Unidos e a União Europeia não tenham resultado progressos neste dossiê, e enfatiza a necessidade de nos próximos meses os líderes dos dois blocos negociarem três áreas principais: padrões para a descarbonização da indústria, cadeias de abastecimento sustentáveis para as matérias-primas críticas e cooperação no desenvolvimento de novas tecnologias limpas.
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