De tempos a tempos surge no panorama mediático nacional um conjunto de vozes alertando para o disparo das importações portuguesas de eletricidade, um flagelo que o país precisa de combater, uma tragédia que espelha, na opinião das vozes mais alarmadas, erros catastróficos da política energética nacional. Números redondos debitados sem contexto reforçam declarações inflamadas de catedráticos em horário nobre. Em suma, um drama. Ou então não. Vale a pena refletir sobre o assunto.
Esta semana, num artigo de opinião no Observador, Mário Guedes, que foi diretor-geral de Energia e Geologia entre 2017 e 2018, falava na “situação desastrosa em que se encontra o sistema elétrico nacional”, narrativa alimentada a partir dos números das importações de eletricidade, que alcançaram em 2022 um valor recorde. O antigo dirigente público qualifica como “absoluto fiasco” a política para o desenvolvimento de produção solar, assente em leilões, e com várias prorrogações de prazos. E responsabiliza pela “situação desastrosa” os “decisores políticos nacionais”, com uma “total ausência de visão estratégica” e “profundo desconhecimento técnico e económico dos sistemas energéticos”.
Horas depois da publicação do artigo, uma peça na TVI enfatizava o pico de importações de eletricidade de 2022, apontando um alegado “descontrolo na energia”, uma “verdadeira crise energética”, um “recorde catastrófico”.
Para lá das apaixonadas manifestações de apreço pela soberania elétrica nacional (que, curiosamente, tendem a deixar de lado tudo o que importamos em combustíveis fósseis), importa enquadrar o tema com números, contexto e algum enquadramento que por vezes falha (admitamos que involuntariamente) na abordagem ao estado de saúde do sistema elétrico nacional.
Comecemos pelo contexto. O sistema elétrico nacional é hoje (e há largos anos) parte integrante de um mercado europeu de energia, sujeito a regras comuns. Mas, tão ou mais importante do que isso para o tema em apreço é o facto de o nosso sistema integrar um mercado ibérico de eletricidade (Mibel), em velocidade-cruzeiro desde julho de 2007. O Mibel começou a ser desenhado em 2001, e os anos que se seguiram serviram para preparar a implementação dessa plataforma, que juntaria os sistemas elétricos de Portugal e Espanha, num mercado comum de compra e venda de energia.
Pelo meio, eram aprovadas novas diretivas comunitárias relativas ao mercado interno de eletricidade e gás natural da Europa, enquanto em Portugal o Governo aprovava uma nova arquitetura jurídica para a criação de “um mercado livre e concorrencial de energia elétrica” (pode ler mais sobre este momento neste nosso trabalho no Expresso). Estávamos no ano 2003, quando a EDP, incumbente, tinha uma posição no setor elétrico nacional ainda mais forte do que tem hoje. Tínhamos já uma Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), e estava a dar os primeiros passos a novíssima Autoridade da Concorrência (AdC), que teve como primeiro presidente Abel Mateus.
Abel Mateus, que lá ficou até 2008, assistiu ao período-chave da liberalização do sistema elétrico nacional e de integração no Mibel. Mas hoje é uma das vozes mais críticas dos desenvolvimentos recentes do setor elétrico. À TVI, esta semana, disse que “somos um país pobre, não podemos ter uma política energética mais cara do que os mais ricos do mundo”, acusou o Governo de ser dominado por “grupos de interesse” e alertou para quando há menos vento ou não há sol: "ou pomos centrais de gás natural a funcionar ou então temos que importar [eletricidade] de Espanha a preços elevados, porque as condições climatéricas são relativamente semelhantes”.
O contexto histórico é este: Portugal e Espanha têm os seus mercados elétricos interligados há 16 anos, num Mibel cujo propósito foi o de fomentar um mercado comum, de maior dimensão, que pudesse, com mais produtores e comercializadores a concorrer uns contra os outros, induzir preços mais competitivos e favoráveis aos consumidores de eletricidade.
Na narrativa associada ao drama das importações de energia, o argumento de que compramos eletricidade de Espanha a preços elevados, como apontou Abel Mateus, não colhe. Sobretudo porque os números e a história mostram que na maior parte do tempo os dois países têm preços grossistas de eletricidade iguais. O relatório anual do Omie (operador do mercado diário do Mibel) indica que em 2022 apenas houve diferença de preços entre Portugal e Espanha em 2,9% das horas (ou seja, em 97,1% do tempo o preço grossista da eletricidade foi rigorosamente o mesmo dos dois lados da fronteira). E o histórico de preços do Mibel confirma-o (e não só o confirma, como também revela de forma cristalina uma das razões para o disparo das compras a Espanha: 2022 foi o ano mais caro de sempre em termos de preços grossistas).
Ora, não só o preço praticado no Mibel é quase sempre idêntico em Portugal e Espanha, como se constata que a fatia de leão das importações portuguesas ocorre durante o dia, coincidindo com as horas de maior produção fotovoltaica espanhola (que proporcionalmente tem maior capacidade solar do que Portugal). Deste modo, Portugal beneficia de períodos em que o preço grossista da eletricidade tende a ser mais baixo (devido à abundância, do lado de lá, da energia solar, mais competitiva do que as opções termoelétricas, sejam a carvão ou a gás). É a vantagem de estarmos num mercado integrado. Ao invés, se Portugal não pudesse importar eletricidade de Espanha, se não beneficiasse dos períodos de abundância fotovoltaica do lado de lá, se tivesse de explorar ao máximo da sua capacidade as centrais alimentadas a gás natural e as centrais hidroelétricas, qual o preço que pagaríamos por essa eletricidade?
Frequentemente, na narrativa do desastre, é também invocada a ideia de que Portugal fechou as suas centrais a carvão para passar a importar eletricidade de Espanha… produzida a partir do carvão. É certo que ao importarmos estamos a comprar o cabaz que a cada momento o sistema espanhol está a gerar. Mas importa recordar que o carvão é residual na matriz elétrica do país vizinho: teve um peso de 2,9% no ano passado e este ano está nos 1,5%, segundo os dados da Red Eléctrica. No mix deste ano, pela mesma fonte, destacam-se os pesos da energia eólica (23%), nuclear (21,7%) e centrais a gás natural e fotovoltaicas (cada uma das tecnologias com 15,6%).
O fecho das centrais a carvão em Portugal em 2021 (primeiro a da EDP, em Sines, depois a da Tejo Energia, no Pego) é um assunto sensível, sobretudo pelo impacto negativo que teve para centenas de trabalhadores que ficaram sem emprego, alguns dos quais em idades demasiado avançadas para conseguir novos trabalhos e demasiado recuadas para passar à reforma. É um dos vários desafios da transição energética. Mas não devemos ignorar que problema similar se coloca noutras áreas de atividade, onde a digitalização e a automatização vão ocupando funções e tarefas antes desempenhadas por mão humana. Procurar a justiça social nestes processos de transformação da economia será crucial. Mas regressemos à energia.
O acréscimo das importações de eletricidade dos últimos anos também tem suscitado preocupações do ponto de vista da segurança de abastecimento, com a tese de que após o fecho das centrais a carvão, em 2021, Portugal passou a depender muito mais de Espanha para garantir que não falta energia elétrica aos seus cidadãos e indústrias. Eis algum contexto. O ex-diretor-geral de Energia e Geologia, João Bernardo, chegou a deixar um aviso no verão de 2022: “vamos estar em cima das cinzas”. E meses depois o relatório de monitorização da segurança de abastecimento da DGEG também notava que num cenário extremo o sistema elétrico poderia ser insuficiente no curto prazo. Em julho João Bernardo indicou, citado pelo Jornal de Negócios, que o Governo já estava a tratar do concurso para prolongar a exploração da central de ciclo combinado da Tapada do Outeiro, cujo contrato termina em março de 2024 (a eventual desativação desta termoelétrica, com quase 1 gigawatt de potência, criaria uma fonte de pressão adicional no sistema elétrico, que perderia capacidade firme para responder às flutuações da geração renovável, como a eólica).
Do ponto de vista da segurança de abastecimento os ativos críticos serão as centrais a gás e as hídricas com armazenamento e bombagem. As centrais a carvão entretanto fechadas chegaram a produzir volumes relevantes de eletricidade no país, mas não tinham a mesma flexibilidade e rapidez para arrancar a produção que têm as centrais de ciclo combinado (ou as hídricas).
Há outro aspeto a considerar no tema das importações de eletricidade. Se é um facto que as importações aumentaram após os fechos de Sines e do Pego (o que não significa que aumentaram por causa desses encerramentos), também é verdade (poucas vezes apontada) que em grande parte do tempo em que estamos a comprar eletricidade em Espanha não estamos a explorar as nossas próprias centrais de ciclo combinado a gás à sua máxima capacidade. Nos primeiros oito meses deste ano a ponta da produção de eletricidade a partir do gás natural em Portugal não chegou a 3,4 gigawatts (GW), enquanto a capacidade instalada desta tecnologia é de 4,6 GW (dados da REN). Podíamos produzir mais eletricidade dentro de portas do que produzimos? Podíamos. Por que não acontece? Porque produtores e comercializadores operam diariamente num mercado ibérico, e da relação entre oferta e procura vem resultando que a capacidade espanhola de geração se apresenta como competitiva.
O acréscimo ou decréscimo das trocas com Espanha depende de vários fatores, incluindo comerciais (que preço é oferecido pelos vários produtores, nas várias tecnologias, de cada lado da fronteira), técnicos (se houver grupos geradores parados para manutenção num dos lados isso pode condicionar os fluxos), climatéricos (maior pluviosidade numa região permitirá às centrais hidroelétricas vender energia a mais baixo custo) e de estrutura do sistema (Espanha, tendo muito mais potência fotovoltaica do que Portugal, a somar ao recurso nuclear, consegue durante as horas de sol ser especialmente competitiva).
Sim, Portugal perdeu alguma capacidade de produção com o fecho das centrais a carvão (e ganhou com a expansão fotovoltaica). Mas não, essa não foi a razão central do acréscimo das importações, que resultou da combinação de fatores já descritos (a somar a outros, como o facto de o país ter tido seca extrema no ano que passou, por exemplo). Importa também notar que Espanha é um mercado maior e isso está patente não só no sistema elétrico mas também no de gás natural (do qual as centrais de ciclo combinado dependem), com sete terminais para recepção de navios, contra apenas um em Portugal (em Sines).
E outro facto é que Portugal é tradicionalmente importador de eletricidade de Espanha. Os dados da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) mostram que nas últimas três décadas só em quatro anos (1999, 2016, 2017 e 2018) Portugal teve um saldo líquido exportador em matéria de eletricidade. Em todos os outros anos importámos de Espanha mais do que exportámos para o país vizinho. E, em rigor, em volume de energia, até já tivemos um saldo importador pior que o de 2022 (9,25 TWh): aconteceu em 2008 (9,43 TWh).
As importações de eletricidade de Espanha são, portanto, uma componente normal do nosso sistema energético. Tão normal como foi normal no passado importarmos carvão. Segundo os dados da DGEG analisados pelo Expresso, entre 2007 e 2019 Portugal importou 3,8 mil milhões de euros em carvão, e no mesmo período as importações brutas de eletricidade, sem descontar as exportações, foram de 3,5 mil milhões de euros. Não há registo, todavia, de especial preocupação pelo que então o país importava. Importar eletricidade não é uma bizarria. É normal, como continua a ser normal importarmos milhares de milhões de metros cúbicos de gás natural todos os anos e milhões de toneladas de petróleo, sem que isso cause propriamente grandes sobressaltos entre os especialistas energéticos.
O que o forte aumento das importações de Espanha em 2022 mostra é a necessidade de Portugal acelerar a instalação de capacidade solar, ampliando a produção de baixo custo durante o dia, em complementaridade com a geração eólica e hídrica. Note-se: é desejável que o país reduza a sua dependência energética do exterior, tanto na eletricidade como no restante consumo. E será bom que aceleremos a aposta nas fontes endógenas ao nosso dispor. Esse caminho está a ser feito. Poderemos questionar a velocidade da implementação da aposta solar (já o fizemos), e devemos escrutinar as opções de política energética. No futuro, o reforço da capacidade renovável do lado de cá, sobretudo por conta da energia fotovoltaica, deverá permitir diminuir o saldo importador de eletricidade. Mas viver num mercado integrado com Espanha proporciona mais benefícios do que diabolizar as importações e fechar o sistema elétrico nacional num retângulo, como se por milagre pudéssemos abastecer as centrais de ciclo combinado sem importar gás ou reanimar as centrais a carvão sem o importar do exterior. Importar eletricidade não é uma tragédia. Faz parte.
E se se questiona: então e como fica o consumidor no meio de tudo isto? O disparo nas importações de eletricidade em 2022 penalizou as famílias portuguesas? Não. E os dados do Eurostat são claros: os consumidores domésticos em Portugal no ano passado pagavam menos do que no pico de preços de 2016, pagavam menos do que a média da zona euro e pagavam menos do que as famílias em Espanha.
DESCODIFICANDO:
PDIRT. O Plano de Desenvolvimento e Investimento na Rede de Transporte é o pacote de investimentos para a década seguinte que o operador da rede (neste caso a REN) elabora, listando um conjunto de projetos prioritários e outros complementares, que entende serem necessários para manter e reforçar a rede de eletricidade ou de gás natural (cada uma tem o seu próprio PDIRT). O operador submete a sua proposta de PDIRT ao regulador da energia e a ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos emite um parecer. O operador da rede tem então a possibilidade de reformular a proposta, antes de a submeter ao Governo, que poderá aprovar ou não o plano. A REN precisa dessa aprovação para poder realizar novos investimentos na rede (os quais lhe permitem manter as receitas reguladas). O último PDIRT da REN para o gás natural mereceu várias reservas por parte da ERSE.
E VALE A PENA LER:
A IRENA, agência internacional das energias renováveis, publicou no final de agosto o relatório “Renewable Power Generation Costs in 2022”, um documento interessante que compara os custos das várias tecnologias de energia limpa com os das opções fósseis para a produção de eletricidade. O relatório evidencia a forte queda de custos da energia fotovoltaica e a melhoria de competitividade de várias soluções verdes.
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