Caro leitor,
Se calhar, fomos sempre assim; se calhar, como diz o pessimista Woody Allen, fomos sempre uma espécie tribal e que precisa de malhar noutro grupo ou em grupos de pessoas que conotamos com o mal absoluto. Se calhar, sempre precisámos de exagerar a maldade do “outro” para assim nos sentirmos melhores e moralmente superiores. Seja como for, hoje em dia conseguimos ver isso com muita clareza. Uma coisa é a realidade dos outros, outra é a nossa perceção dos outros.
E a diferença é abissal. Os outros não são tão maus como nós gostamos de pensar. Nem a espécie humana é tão má como se tornou norma dizer.
Em “Os Perigos da Percepção”, um belo livro editado por uma editora nova atenta a este fenómeno, a Zigurate, Bobby Duffy dá vários exemplos contemporâneos do que estou a dizer. A necessidade de sinalizar virtude – um moralismo julgador – exige uma deformação das perceções. Por exemplo, a moda das dietas (das diferentes dietas) pode ser uma forma de a pessoa x se sentir superior às outras, o que acaba naquele moralismo muito comum: os gordos só são gordos porque comem mal. Este moralismo chega ao ridículo cómico quando se diz que a doença e a saúde são meras escolhas.
Por exemplo, as pessoas nos inquéritos dizem sempre que são os outros que comem demasiado açúcar. 66% das pessoas acha que os outros comem açúcar a mais e só 40% admite o mesmo erro. O açúcar é pecado, há uma moralização da dieta; somos boas ou más pessoas devido ao que comemos e não devido ao que fazemos e dizemos na relação com os outros. Há aqui sempre um excesso pessimista (e moralista) sobre os outros. Em consequência, todos as populações sobrestimam o número de concidadãos com diabetes. Itália: 5% da população tem diabetes, mas os italianos acham que é 35%. Na Austrália é 5% vs 32%. Em Israel 8% vs 31%.
Isto é ainda mais interessante quando as perguntas chegam a um tema como a felicidade geral dos concidadãos. 92% dos brasileiros é feliz; mas, quando são questionados sobre a felicidade dos outros brasileiros, o brasileiro médio diz que só 40% é feliz. Na Polónia, é 93% vs 42%; Suécia: 95% vs 49%; EUA: 90% vs 49%. Billy Duffy diz sobre este abismo de perceção o mesmo que Hans Rosling dizia da globalização: o público fica desorientado quando vê a resposta certa.
O público não acertava na pergunta de Rosling sobre a globalização por larga margem; só 10% acertava, isto é, só 10% é que sabia que a globalização tinha reduzido a pobreza à escala global. Quando ficava a par da resposta certa, o público ficava sem ar. Passa-se o mesmo no debate nuclear. As pessoas acham que morreram milhares e milhares de pessoas em Fukushima, mas não morreu ninguém. Zero. Quando ouvem isto numa palestra, o público começa a rir de incredulidade.
Eis o que diz Bobby Duffy sobre o erro colossal das pessoas sobre a felicidade dos seus concidadãos (p. 57):
“É isso que torna este exemplo de percepção errónea um caso incomum: os olhares perplexos e os abanares de cabeça entre o público costumam dever-se ao reconhecimento de que o palpite estava ridiculamente errado, mas, no caso da felicidade, são os resultados reais que tiram as pessoas do sério.”
Entre aquilo que é emocionalmente necessário para a sua sinalização de virtude e aquilo que é objetivamente verdadeiro, as pessoas tendem a escolher a primeira opção. É por isso que aquilo que apelidamos à pressa de “civilização” (ciência, direito, literatura, filosofia) é um esforço contranatura, contra o nosso instinto tribal e emocional.
Há outro clássico deste fenómeno: as preocupações ambientais. De forma sistemática, as pessoas acham que os outros são inconscientes e negacionistas quando na verdade os outros – na sua maioria – estão conscientes e disponíveis para ação. Ou seja, é uma “realidade social falsa” assumir-se que os outros não querem saber do ambiente, o que torna ainda mais ridículo os protestos idiotas à Climáximo, que se julga uma vanguarda ultraminoritária e isolada.
Nesta semana, após o assassínio de Charlie Kirk, o grande Fareed Zakaria relembrou uma coisa: as pessoas do outro lado político não são tão más e violentas como se pensa. Quando se questiona os republicanos sobre a percentagem de democratas que acreditam na violência política, a resposta é 40%. Sucede que a verdade é outra: 10%. Passa-se o mesmo – com as mesmíssimas percentagens – na cabeça dos democratas: só 10% dos republicanos acredita na violência política, mas os democratas acham que 40% dos republicanos são radicais violentos. As duas franjas radicais acreditam na violência, 80% da população não. Então porque é que se fala tanto em guerra civil? É ilógico, é dar como válida a perceção de 20% sobre a maioria de 80%. Porquê? Porque as empresas de redes sociais – Meta, X – fazem dinheiro com o ódio e a polarização?
Há mais estudos que explicam este viés com outros números. Este diz que os democratas sobrestimam a violência dos republicanos em 245%; os republicanos devolvem o favor na casa dos 299%. Porquê? De onde é que isto vem? De uma ideia preconceituosa do outro lado; assume-se à partida que o outro lado é muito mais desumanizador do que na verdade é. Os académicos chamam a isto “falsa polarização”: nem sequer se chega a discutir o tema x ou y, assume-se à cabeça que o outro não nos respeita, que nos desumaniza e que portanto é mau por inerência.
É por tudo isto que resolvi avançar há dois anos com este projeto, talvez seja mesmo este o maior motivo que me leva a fazer a Contrafactual todas as semanas: somos melhores do que pensamos, estamos melhor do que pensamos, há um excesso de “pessimismo social” sem validade empírica e há de facto um “optimism gap” que é preciso fechar. Até porque, se virem bem, o pessimismo apocalítico é a ferramenta dos extremos. Em França, os eleitores mais apocalípticos são os da Frente Nacional e os da França Insubmissa. Lembram-se do discurso inaugural de Trump em 2017?: “This American carnage stops right here and right now.”
Carnificina? Se as pessoas do centro são incapazes de ter uma visão otimista ancorada em factos, então o caminho está aberto para os cavaleiros do apocalipse. Passa-se o mesmo em Portugal. Se não conseguimos assumir como cultura, ao centro, que os últimos 50 anos não foram um fracasso, então a porta está aberta para os radicais.
Caro leitor, tenha a coragem para ser um pouco otimista.
Até para a semana