Boa tarde,
Eu não sou contra a proibição de telemóveis nos pátios das escolas, não me parece uma ideia absurda, acho que pode fazer sentido. Mas não é esse o meu ponto desta semana.
O meu ponto é contestar a narrativa instalada e alegadamente validada por Jonathan Haidt na tese/livro “Geração Ansiosa”: diz-se que os jovens de hoje vivem uma crise mental sem precedentes e que os rapazes, por exemplo, são muito piores do que no passado. Essa também é a tese da série “Adolescência”, que, não por acaso, já foi o ponto de partida de uma Contrafactual há uns meses.
Diz-se que a crise de ansiedade e de problemas de saúde mental resultam do uso de smarthpones e de redes sociais. O livro de Haidt é um sucesso de vendas, mas não me parece um portento científico, porque procura forçar uma casualidade. Ou seja, comete um erro clássico: confunde correlação com causalidade. Uma correlação não implica causalidade, significa que x e y estão a acontecer ao mesmo tempo, não significa que x causa y.
O livro é um sucesso porque os pais e avós meteram na cabeça que todos os problemas da adolescência são provocados pelos telemóveis. Parece que antes dos telemóveis e das redes sociais os adolescentes eram todos uns cordeirinhos bem-comportados. No fundo, a minha geração de pais está a repetir o erro das gerações anteriores.
2025 é igual a 1995. Dizia-se que o discman e a MTV e o rock eram o problema da adolescência. Ou eram os jogos de computador ou o VHS.
No passado ainda mais remoto, dizia-se ainda que o problema era a jukebox, vejam só.
O que se passa é aquilo que sempre se passou: os jovens habitam um mundo que é estranho para os seus pais e avós.
Haidt apresenta-se como cientista, apresenta uma tese que alegadamente tem um valor científico. Sucede que o livro de Haidt tem imensos problemas científicos, não é um estudo a sério sobre epidemiologia psicológica. Usa demasiados saltos de fé sem uma verdadeira base empírica e estatística.
Ele quer sobretudo confirmar um preconceito social muito forte e muito popular. E talvez seja este o maior problema metodológico do livro: Haidt não usa questionários e dados clínicos, usa sobretudo questionários das escolas. Ora, qual é a pergunta chave de um questionário escolar: “sentiste-te mal ou triste ou ansioso na última semana?”. Eles respondem sim; claro que sim, são adolescentes!
Tal como mostra esta psicóloga clínica, a correlação de Haidt (uso de telemóveis e rede social = crise de saúde mental dos jovens) não é clara, está por provar. Haidt apresenta uma prova circunstancial, a saber: ali por 2012 começam a disparar os casos de ansiedade e depressão; sim, então? E é aqui que surge o salto de fé: isso acontece, diz Haidt, porque também é por essa altura que se dá a explosão do smarthphone. Problema? Isto é circunstancial, não é uma causa.
2012 também é mais ou menos a época em que aparecem outros fenómenos, pelo menos dois que interessam muito.
Primeiro: é o início em força do Obamacare e do acesso à saúde e à saúde mental como nunca antes. Ou seja, passou-se a registar muitos mais casos, porque o acesso à saúde mental cresceu. Portanto, a causa da tal pico de ansiedade que aparece nos gráficos pode ser algo positivo, a saber: muita gente que não tinha acesso à saúde mental passou a ter. O problema já existia, só não aparecia nos gráficos.
Segundo: também é a época em que passámos a falar de saúde mental sem tabus, passou-se a falar destes problemas que estariam sempre lá com ou sem telemóvel. A “adolescência”, um problema geral, passou a ser repartido e segmentado numa série de questões mentais, PHDA, ansiedade, dislexia, depressão, etc. Antes, dizíamos que aquele jovem tem problemas porque é “adolescente”, hoje dizemos que este jovem tem problema porque tem PHDA ou ansiedade, e isto implica um acesso à saúde e à medicina e à medicação.
Esta é a dupla face desta excelente desconstrução de Haidt - a melhor que já vi até agora.
Para terminar: contra um único estudo (o de Haidt), é fácil encontrar estudos gigantescos que no fundo são meta-estudos, isto é, trabalham com um agregado de estudos, têm um n (uma amostra muito superior). Este, que junta 40 estudos diferentes - não encontra causalidade entre crise de saúde mental nos jovens e o uso de telemóvel. Este, que junta 30, também não.
Para explicar a tal crise ou alegada crise de ansiedade destes jovens, eu gostava de propor outra coisa: o problema não é o telemóvel, mas o pai ou mãe helicóptero, uma variação parental que apareceu, grosso modo, a partir do fim dos anos 90. Curiosamente, é essa a tese – e meu ver mais acertada – do livro anterior de Haidt.
Os miúdos que nasceram ou cresceram neste século compõem a primeira geração de seres humanos que não brincou livremente na rua, que deixou de andar sozinha na rua, que deixou de ir sozinha para a escola, que deixou de fazer pequenos recados na rua, que deixou de jogar à bola na rua.
Parte do pavor paternal que levou a esta prisão domiciliária dos jovens foi a sucessão de escândalos de pedofilia. Todos nós passámos a imaginar um pedófilo à porta da escola. Sucede que o abuso sexual de crianças é 92% feito em casa por familiares ou conhecidos. O problema não está na rua, está em casa.
Por outro lado, não é o telemóvel que justifica este absurdo nas universidades: os pais vão às faculdades confrontar os professores. Um aluno universitário é um adulto e deve resolver os seus problemas e conflitos sozinho, ou não?
Não é o telemóvel que justifica este absurdo nas empresas: quando vão a entrevistas de emprego, a geração Gen Z leva o pai ou a mãe…
Não é o telemóvel que justifica este absurdo nas livrarias: a praga young adult; ou seja, adultos que só conseguem ler literatura light, porque não aguentam temas pesados ou complexos. Todos se lembram das versões para crianças dos grandes clássicos. Pois muito bem: agora há versões dos clássicos para jovens adultos; pessoas com 20 ou 25 anos não conseguem ler um romance clássico na sua totalidade; só leem uma regurgitação infantil. Lamento, mas isto não é culpa dos telemóveis.
Até para a semana