Boa tarde,
A ladainha do apocalipse continua; as pessoas querem sentir-se mal à força, querem sentir que são uma geração especial porque vivemos aqui e agora tempos horríveis. Nunca foi tão difícil existir, meu deus! Isso ficou bem claro no Festival de cinema de Veneza, quer na pergunta tonta da jornalista, quer na resposta blasé de Christoph Waltz. Este pessimismo é uma pose, quer de quem pergunta, quer de quem responde. E esta pose, que se pretende progressista (a utopia deu lugar à distopia à esquerda), não percebe que está a fazer o jogo do tremendismo trumpista que acha que vivemos num mundo walking dead. O espírito apocalíptico é a marca do trumpismo, não só devido à Bible Belt ultrarreligiosa, mas também devido à devastação económica pós-industrial. Junta-se a fome com a vontade de comer. Se a esquerda ou o campo liberal mantém a carga apocalíptica, então temos os dois lados do espetro numa obsessão pessimista e apocalíptica que é, lamento, o magma dos fascistas. Nesta atmosfera, quem joga em casa são os fascistas. Porque este clima de distopia é tão pós-verdade como um clima de utopia.
Não só não vivemos tempos monstruosos como temos razões para otimismo realista.
As notícias sobre o ambiente não são todas negras, longe disso. Mas porque é que peças/notícias positivas não têm destaque? Se calhar podíamos experimentar dar tanto ou mais destaque às notícias positivas, até para criar um retrato mais complexo. Ou será que ser positivo é ser “negacionista”, seja lá o que isso for? Como é que o tremendismo que vê o fim do mundo é a posição mais racional e moralmente superior? Porque é que um estudo que diz que as alterações climáticas, sendo reais, não são contudo o fim do mundo é destratado como negacionista e é alvo de ataques e silêncios?
Posso dar mais uma notícia positiva – e que vai passar ao lado da grande narrativa? Fica aqui: será muito mais fácil guardar CO2 no solo; estamos a descobrir que enterrar CO2 é muito mais fácil do que se pensava.
Posso mais? Parece que o gelo do Ártico está a derreter a um ritmo mais lento do que nas últimas décadas. Ouviram falar disto? Não. Podemos discutir isto, pf.
Ainda no campo ambiental, é preciso repetir: o número de mortos provocados por desastres naturais nunca esteve tão baixo. É ridículo compararmos o nosso baixíssimo número de mortos com outras épocas sem a nossa capacidade política e tecnológica para responder na hora a um desastre.
A outro nível, o número de fogos florestais nos EUA está basicamente na mesma desde 1990. Na América, pelo menos, não estamos a arder mais nem menos. É igual.
Podemos falar de crime? O crime caiu a pique nos EUA – a pique – desde 1990. Não há comparação possível, seja qual for o agregador de dados. As tais “percepções” do povo, alimentadas por ciclos noticiosos 24 sobre 24 horas, dizem que há muito crime nas ruas. A direita quer alimentar a ideia de violência para culpar emigrantes. A esquerda quer alimentar a ideia de violência para culpar a polícia. Estão ambas erradas.
Em Portugal é igual. Como dizia há dias Isaltino Morais, quem acha que hoje em dia a Grande Lisboa é perigosa é porque não viveu ou não se lembra dos anos 80 e 90.
E sabem qual é o indicador mais revelador da redução do crime? O flagelo que era o assassino em série caiu também a pique. Se tivesse de confrontar a vaga de crimes, assassínios, epidemias (SIDA) e droga dos anos 80 e 90, a população de hoje sairia à rua?
O número de acidentes aéreos nunca esteve tão baixo apesar de nunca terem existido tantos voos.
As guerras de hoje são violentas? Sim, claro, mas perdem por comparação com outras guerras do passado remoto e não tão remoto.
A invasão da Tchechénia pela Rússia nos anos 90 foi mais violenta e brutal do que a invasão da Ucrânia.
A barbaridade da guerra nos Balcãs nos anos 90 não perde para nenhuma guerra de hoje.
Genocídios? 800 mil mortos à catanada em cem dias no Ruanda, 1994.
Ainda no campo da guerra, é incrível como não conseguimos assumir sem pruridos a imensa derrota que tem sido a guerra para Putin.
Temos ainda de acrescentar os avanços notáveis no combate à pobreza e à doença no mundo inteiro nas últimas décadas. Podemos também falar de avanços notáveis na educação no mundo inteiro, nas últimas décadas. Podemos encontrar e “brincar” com esses dados na fundação Gapminder.
Mas, como dizia o fundador da Gapminder, Hans Rosling, o público “informado” e “sofisticado” do ocidente acerta menos do que um grupo de macacos num quiz sobre o estado do mundo, porque, lá está, acha que a posição moral certa é a do pessimismo e da autocrítica permanente que leva à incompreensão do que foi, por exemplo, a globalização (pós-1945 e pós-1989) no campo da erradicação da pobreza e da doença. Dou-vos um exemplo. Há uma pergunta: “em 1980, 40% da população mundial vivia na pobreza extrema, isto é, com dois dólares por dia. Qual é essa percentagem hoje em dia?”. Há três opções: 10%, 30%, 50%.
A opção certa é 10%, ou seja, a pobreza baixou muitíssimo devido à globalização desde 1980. Mas 90% do público erra na resposta. Só 10% acerta. Metade escolhe logo a resposta mais dantesca, 50%. Isto é um fracasso total do nosso ecossistema jornalístico, intelectual, académico. Os factos não interessam se forneceram a emoção desejada. Os macacos acertam mais porque são aleatórios, logo, espalham as respostas de forma igual pelas três hipóteses.
Um abraço e até para a semana,
Henrique