Contrafactual

Trump é uma ameaça para África, mas não pela razão que se invoca por aí

Boa tarde,

Há muita agitação em redor dos cortes de Trump no USAID, mas essa polémica permanente não nos permite ver a real ameaça que Trump representa para o continente mais pobre: as tarifas contra o comércio livre.

Apesar de ser o continente mais pobre, África está muito melhor do que estava em 2000 ou 1980. Já aqui fiz uma newsletter sobre essa evolução, sim, África está melhor. E essa evolução deve-se a um fator: globalização, quer na sua vertente económica, quer na sua vertente tecnológica, a começar no avanço da medicina que chegou a África de várias maneiras, a começar em iniciativas de várias figuras, de Bush a Bill Gates. A globalização permite que os africanos aprendam a pescar sozinhos; ao invés, a ajuda trata-os sempre como vítimas sem agência própria. O complexo internacional de ONGs e das ONUs odeia que se diga isto, porque, como mostrou Bernard-Henry Lvy há uns anos, este complexo garante milhares de bons empregos que não pagam impostos e, sobretudo, uma permanente sinalização de superioridade moral. Mas décadas de ajuda têm o quê para mostrar em termos de resultados práticos?

Como mostrou a economista africana Dambisa Moyo, a ajuda internacional a África serve sobretudo o ego moralista do ocidente e não os próprios africanos, que precisam, isso sim, de liberdade comercial para ter investimento estrangeiro e passar a ter capacidade de exportar. É por isso que o investimento chinês na economia real africana é mais importante – muito mais – do que a ajuda caridosa do ocidente. Neste sentido, a China, a grande beneficiada da globalização, está a usar a globalização em África e, em consequência, está a aumentar o nível de vida dos africanos. É uma consequência indirecta, claro, mas funciona.

É pois fundamental virar a conversa para o ponto do comércio. África, como diz esta especialista do Instituto Hoover, Jendayi Frazer, precisa de comércio e não de ajuda para crescer. Temos de ver África nos seus próprios termos enquanto agente, e não como recipiente passivo da nossa alegada bondade.

Ao vermos África apenas como vítima e como recipiente da nossa ajuda humanitária, nós, ocidentais, permitimos que a China tomasse a liderança nos investimentos centrais na região. Incapazes de sairmos da visão que infantiliza o africano e incapazes de aceitar a ideia de que fazer negócios noutras partes do mundo pode implicar quebras nos nossos protocolos, nós abrimos uma passadeira vermelha à China neste continente.

África precisa de investimento, de transferência de tecnologia, não de ajuda. Só que nas narrativas europeias África só serve para alimentar a culpa do homem branco pós-colonial.

Mas, por exemplo, como é que podemos achar que nós, europeus, lideramos a narrativa ambiental a partir do momento em que negligenciamos os minerais fundamentais para a transição energética? Sim, porque África detém 48% das reservas conhecidas de cobalto e 48% de manganésio. Adivinhem quem tem a mão nestas reservas fundamentais para a nossa narrativa verde? Sim, a China. Reparem só neste número que mostra a nossa incrível estupidez estratégica, que se esconde atrás da sinalização de virtude: 72% do cobalto em bruto vem de minas do Congo; mas 76% do cobalto refinado e pronto a usar vem da China. 15 das 19 minas de cobalto do Congo são chinesas. Há outro número para ver isto: 97% do cobalto em bruto do mundo é exportado para a China refinar.

Como é que permitimos isto? Porque criámos uma cultura e narrativas que odeiam à partida qualquer infraestrutura industrial, uma fábrica de carros, uma central nuclear, uma refinaria; criou-se a ideia de que a “indústria” é por natureza má, mas neste caso precisamos mesmo da indústria da transição energética, isto se quisermos ser coerentes com a narrativa da energia verde. Sucede que a coerência é de facto um bem escasso na era do pós-verdade. Repare-se: mesmo quando descobrimos metais da transição no nosso território há logo manifestações contra a abertura da mina. Se Portugal quer ser líder da energia verde, como é que pode haver resistência às minas de lítio, por exemplo? É um absurdo.

Não concordo, mas percebo o porquê da recusa em explorar o petróleo na nossa costa. Não concordo nem percebo o porquê da recusa em explorar o lítio, metal fundamental da transição verde. Ou melhor, percebo: as narrativas que circulam no espaço público não têm muitas vezes qualquer critério racional, é pura emoção primária.

Os americanos já acordaram para esta realidade. E nós, europeus? Como é que podemos recuperar do atraso? Ajudando os africanos a desenvolver no seu próprio território as refinarias destes materiais para não serem apenas uma barriga de aluguer da China.

É por tudo, caro leitor, que a grande ameaça de Trump a África não está no corte da ajuda, está na imposição de tarifas a países africanos.

Um abraço,

Henrique

Contrafactual