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O lado mais negro da IA: as robôs sexuais que desumanizam o seu filho

Pris, personagem interpretada por Daryl Hannah em "Blade Runner", de 1982

Boa tarde,

Há qualquer coisa de muito sinistro na discussão em curso sobre Inteligência Artificial (IA). Fala-se muito de um futuro hipotético em que a IA vai destruir muitos empregos, mas não se fala da realidade daqui e de agora: o consumo de energia brutal da IA aqui e agora (que abordámos há 15 dias) e o consumo pornográfico de água aqui e agora da IA (que abordámos na semana passada). Além disso, convém sublinhar que as previsões do fim do emprego humano podem ser exageradas: vejam a forma como Malcolm Gladwell explica porque é que carros automáticos sem condutor não funcionam em contexto urbano.

A par do consumo de eletricidade e de água, há um consumo gerado pela IA que me intriga há muito tempo: o consumo de sexo numa escala que coloca o porno a um canto; estou a falar do uso de bonecas/robôs sexuais, sex dolls, que têm e terão cada vez mais componentes de IA. Repare-se que não estou a falar de namoradas virtuais, avatares, boots de linguagem apenas, que diluem a diferença entre virtual e real. Estou a falar mesmo de bonecas/robôs físicos; se procurar na net encontra já dezenas de empresas que vendem esta dondoca sexual, uma escrava robotizada.

Este é um assunto que me desperta curiosidade há muito. Há uns anos fiz um ensaio para a revista E sobre os desafios morais que a IA nos coloca, sobretudo a forma como vai humanizar robôs, e robôs desenhados para satisfazer as nossas necessidades afetivas e até sexuais. Perante isto, parece-me, a questão não é sabermos se um robô vai ser capaz de nos amar. A questão é se nós seremos capazes de amar um robô ou se iremos transformar esses seres sencientes (ou perto disso) em escravos.

Escravas sexuais, sobretudo.

Mesmo olhando só para o que existe agora no mercado, entre os 1000 e os 8000 euros (8000 mil!), e para o que chegará muito em breve até pela mão de Musk, fica claro que este tema é urgente porque se relaciona com a questão da “masculinidade tóxica”, da dependência do porno, do abuso no namoro e da violência doméstica. Porquê? Se os rapazes começam a sua vida sexual usando bonecas sexuais cada vez mais realistas estamos no caminho da desumanização da mulher real. A diferença entre sexo e violação torna-se obscura numa mente habituada a isto. Estamos de facto no campo da absoluta objetificação da mulher; a ideia de que a mulher existe apenas para satisfazer o homem fica ainda mais perto. A objectificação não é uma metáfora, é literal: os homens estão mesmo a fazer mulher artificiais e robóticas para a sua gratificação sexual. Este imenso mercado está a desenvolver-se sem prestar cavaco a uma pergunta moral e até médica muito simples: quem se habitua a ter sexo com uma boneca sem vontade própria vai depois conseguir lidar com uma mulher real sem cair nos excessos? Não, não vai. E vários estudos já apontam para isso: quem tem este tipo de boneca é mais propenso à violência sobre mulheres reais; os danos psicológicos provocados por estes robôs sexuais são reais, estão documentados.

Onde está a indignação? Ainda se pensará que proibir qualquer manifestação sexual é por inerência algo reacionário e limitador da liberdade?
Não, não pense que este assunto é só para os nossos filhos em 2050. Não: o assunto já está aqui. Por um preço que não é por aí além (duas PlayStation 5), um adolescente em casa dos pais ou um jovem adulto a viver sozinho pode comprar uma boneca sexual altamente realista no toque, embora seja sempre caricatural nas formas, curvas; uma boneca com IA capaz de reproduzir/imitar sons, fluídos e movimentos de uma mulher.

Caro leitor, basta procurar em qualquer site agregador de pornografia amadora como o Pornhub: faça uma pesquisa com “sex doll” e veja aquilo que tantos jovens ocidentais já fazem; aliás, fazem, filmam e mostram ao mundo. Fiz isso agora e o que se vê reforça a minha perplexidade já aqui exposta há umas semanas aquando da polémica sobre a série "Adolescência": como é que se fala tanto da relação entre masculinidade tóxica, rapazes e redes sociais quando ao mesmo tempo parece haver um tabu sobre a relação mais do que óbvia entre esta masculinidade tóxica e o porno de acesso tão fácil?

Repare-se que já há bordéis só com bonecas sexuais animadas por IA. Além do sexo físico com a boneca física, nestes bordéis também há sexo através de realidade virtual, o que torna “Strange Days” (1995), filme de Bigelow, ainda mais genial e profético. Quer ficar ainda mais indisposto? Tendo em conta a natureza humana, adivinhe qual é um dos produtos procurados neste mercado de “sexo” virtual? A violação; ou seja, há homens que querem experimentar como é violar uma mulher e isso é vendido enquanto produto legal numa atmosfera virtual “onde não há feminismo” e onde também não há protecção de menores.

Sim, vou repetir: neste mercado do sexo gerado por IA um homem pode comprar pedofilia e violações. O que me leva a uma questão óbvia: porque é que as autoridades permitem isto? Bom, da mesma forma que permitem que 70 mil homens partilhem fotos e vídeos da intimidade de milhares de mulheres numa atmosfera de completa impunidade criada pela internet.

O clima sinistro ou surreal deste tema não acaba aqui. Os donos destes bordéis virtuais vendem o seu produto como coachs, como se estivessem a fazer coaching sexual em nome de um conceito intitulado “self care”.

Por enquanto, parece que a vanguarda desta indústria está na China, onde a indústria da robô sexual com IA integrada já é uma indústria pujante. Mas adivinhem quem é um grande cliente desta indústria? Homens ocidentais solteiros. E, já agora, sabem o que também vem do oriente através da Temu e da Shein? Brinquedos e bonecos sexuais para pedófilos. Vou repetir: a pedofilia – através de bonecos sexuais robotizados – está à venda na Temu e na Shein.

No mercado da indignação, não há por aí um espacinho para isto? Temos medo de sujar as mãos neste tema?

Um abraço,

Henrique

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