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Inteligência Artificial: podemos falar do consumo pornográfico de água do ChatGPT e afins?

A questão não é se a IA vem para ficar com os nossos empregos; a questão é se vem para ficar com a nossa água

Boa tarde,

Confesso que há silêncios que não compreendo.

Parte do meu trabalho, quer como jornalista quer como escritor, é detetar tabus e explorar silêncios; o meu trabalho pode ser desagradável e até ofensivo para x e y, porque procura sempre o ângulo cego de crenças e narrativas; é desagradável porque vê o que ninguém quer ver e porque mostra incríveis contradições.

Porque é que a esquerda, altamente progressista no campo dos homossexuais e das mulheres, acaba o dia sempre de mão dada com a cultura muçulmana, que, mesmo nas suas formas moderadas, é machista e homofóbica? Porque é que os média europeus – que diabolizaram e gozaram com o “neoliberal” demoníaco da Argentina, Milei – estão agora calados perante os bons resultados económicos de... Milei? Porque é que o liberal Milei com bons resultados (redução de pobreza, redução do défice e da inflação, normalização da economia argentina) não aparece nos média ao mesmo tempo que o candidato socialista que os democratas escolheram para disputar Nova Iorque tem espaço de sobra?

Eu percebo de onde vêm estes silêncios e contradições. Mas depois há casos que são incompreensíveis.

Como salientei na semana passada, porque raio não estamos a falar da corrida à energia da Inteligência Artificial e do seu capitalismo?, porque razão não estamos a falar do regresso em força do nuclear devido à IA?, e sobretudo porque não estamos a discutir esta absurda incoerência?: de manhã, a narrativa verde afasta de forma irracional os países da energia nuclear; à tarde, a narrativa da IA faz com que o nuclear volte em força mas apenas para ser usado por empresas como a Microsoft e Meta.

É incompreensível.

E, além da energia, a IA consome algo ainda mais delicado: água.

A ausência de um debate alargado sobre o consumo de água da IA é algo que nos coloca, como sociedade ou espécie, naquela fronteira do comportamento suicida.

A questão não é se a IA vem para ficar com os nossos empregos; a questão é se vem para ficar com a nossa água. De novo, é incompreensível a ausência de debate sobre o assunto.

A água é usada para arrefecer a maquinaria dos centros de dados e servidores. Estamos a falar – atenção – de água potável das redes públicas de água. Não estamos a falar do desvio de um rio que entra na central para arrefecer e depois regressar ao seu leito. A velha central termoelétrica de Sines fazia isto. Mas os servidores de IA não fazem. Estamos a falar do uso de água potável que é canalizada para os sistemas de arrefecimento e que acaba por evaporar; ou seja, a água não é reutilizada, desaparece literalmente, evapora. É por isso que é importante perceber que não estamos apenas a falar de “utilização de água” como recurso ("water use") mas de um “consumo de água” efetivo (“water consumption”). Uma fábrica pode desviar água para arrefecer as máquinas e depois pode devolvê-la por canais. A IA não devolve nada: a água que entra dentro dos centros de dados evapora, ponto.

Para terem uma ideia, duas imagens:

- Treinar um modelo de linguagem na Microsoft significa a evaporação de 700 mil litros de água potável – e pode ser mais porque as empresas não são necessariamente transparente. E, até 2027, toda a IA pode roubar entre 4 biliões a 6.6 biliões de metros cúbicos de água, o consumo anual de água de quatro a seis Dinamarcas ou de metade do Reino Unido. Isto é um escândalo de primeira grandeza, mas está a ser completamente secundarizado no mercado das indignações e do debate.

- Em termos gráficos, há outra forma de visualizar o consumo de água: o ChatGPT usa três garrafas de água para fazer um mail de 100 palavras. Vai voltar a usar o ChatGPT depois de saber isto? Não tem esta indústria de desenvolver métodos mais amigos da água, o nosso bem mais precioso?

Em cima disto tudo, está a absoluta falta de transparência das empresas. Em 2023, só 41% dos centros de dados revelou o seu uso de água de forma transparente. Porque há esta coisa absurda que é o secretismo do negócio dos tech bros. Que a Google use lóbi para criar leis que protejam o secretismo do seu algoritmo eu até concedo; mas leis que protegem este uso quase secreto de água é um crime; é um crime político e ambiental sobre toda a comunidade. Este uso de água não é um “segredo do negócio”, não é propriedade privada; é o uso indiscriminado do bem mais público de todos.

E os políticos parece que estão a fazer o jogo. Repare-se neste absurdo: devido à falta de água histórica, a Catalunha e Barcelona impõem imensa restrições ao seu uso pelos cidadãos, câmaras e agricultores. Esta é a mesma Catalunha que está a permitir a implementação de inúmeros centros de dados que vão consumir água que não há. Ou seja, o simples agricultor e o simples cidadão não pode regar ou ter uma piscina para que ao lado os tech bros possam consumir quantidades absurdas de água. Repito: como é que isto não causa ondas de indignação? Como é que isto não está no centro do debate? Já agora, onde é que a gigafábrica prometida para Sines vai buscar água? O projecto contempla uma dessalinizadora? A economia não pode ser feita numa bolha que nega a própria natureza. O Alentejo sadino não tem água para um empreendimento destes; aliás, é a zona mais seca do país.

Em resumo, sobram duas perguntas.

A primeira obedece a uma indignação imediata: a água potável pode ser usada para tudo isto, ainda por cima num contexto de aquecimento global e de crise hídrica em várias pontes do mundo, Ocidente incluído? Esta indústria está a atacar o nosso recurso natural mais preciso, está a fazê-lo num contexto de aquecimento, e a sociedade está calada? Reparem neste dado assustador dos EUA: os centros de dados estão a ser colocados em qualquer lado, mesmo em regiões com comprovada falta de água. O Arizona, um dos estados mais massacrados pela falta de água até a um nível apocalíptico, instalou 26 data centers desde 2022. Isto é um suicídio coletivo, lamento. Não há outra forma de descrever.

A segunda pergunta: tendo em conta o clima que estamos a vivenciar, não há demasiada água a ser evaporada através deste meio artificial? Que consequências este vapor de água em excesso tem na estabilidade do nosso clima?

Até para a semana,

Henrique

PS: beba água enquanto pode.

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