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IA: porque é que coisas consideradas péssimas (energia nuclear) passaram a ser aceitáveis num ápice por causa do ChatGPT e afins?

Boa tarde!

Como toda a gente, tenho as minhas dúvidas sobre a Inteligência Artificial (IA). Nem nunca usei. Há dias alguém me dizia que esta newsletter já tinha o dedo de IA sobretudo na busca de estudos e links. Não. Nunca usei. Talvez venha a usar, não sei. Se calhar, tenho de treinar um algoritmo para me coletar dados e links mediante as minhas indicações. Não sei. Continuo a achar que usar essas ferramentas pode mesmo causar um declínio cognitivo; pode poupar tempo e trabalho, sem dúvida, mas a mente precisa de exercício, ou não?

Mas não é esse o debate que quero lançar. Quero salientar factos ligados à IA que estão a passar grotescamente ao lado do debate; factos que são ou seriam considerados nefastos até há pouquíssimo tempo, mas que, por pressão da alegada inevitabilidade da IA, têm de ser considerados normais ou aceitáveis. Para a semana, falarei do grotesco uso de água desta tech. Hoje quero salientar a questão da energia.

CONTADO NINGUÉM ACREDITA: o regresso da diabolizada energia nuclear nas costas da IA e dos Bill Gates

Já tinha salientado aqui que devido à IA várias empresas como a Google (empresas, não estados) iam apostar em massa em reatores nucleares de nova geração, além de apostarem na reativação de antigos, porque os centros de dados têm consumos brutais de energia que só o nuclear pode abastecer. O consumo de energia nos EUA vai dobrar em apenas cinco anos.

Deixem-me dar uma imagem para terem uma ideia do que está em jogo: a transformação do Google de um motor de busca como o conhecemos num algoritmo de IA significa que só esse instrumento precisa da energia consumida agora por toda a Irlanda.

Há outra imagem ainda mais forte: os data centers nos EUA usaram 200 horas de terabytes em 2024; é o que a Tailândia inteira usa num ano. Servidores específicos de IA usaram entre 53 e 75 terawatts-hora; isto é suficiente para abastecer mais de sete milhões de casa por ano. Em 2028, a conta de servidores só para estes modelos novos de IA deverá subir para 165-326 terawatt. Isso é toda a energia consumida por todos os centros de dados – todos – neste momento. E é suficiente para 22% das casas dos EUA.

O projecto Stargate, assinado por Trump, vai gastar mais do que o programa Apollo (ida à Lua) e projecta dez data centers; cada um poderá consumir cinco gigawatts. O meu caro leitor não sabe bem o que são cinco gigawatts? Eu também não. Aqui fica uma ajuda: é a quantidade de energia neste momento consumida por um estado inteiro como New Hampshire.

Para perceber ainda melhor, vamos personalizar e focar no uso que você, caro leitor, já pode fazer destes modelos. Estes autores fizeram um cálculo com base num exemplo muito americano (adapte e pense em algo equivalente na sua vida): você quer organizar um evento de caridade, uma minimaratona local, por exemplo: faz 15 perguntas a um modelo de IA para ver qual é a melhor maneira de organizar tudo; depois tenta gerar em IA 10 imagens para o flyer; e faz ainda três vídeos de cinco segundos para o Instagram. Só nisto, gastou energia suficiente para ter um microondas a funcionar três horas e meia ou para um carro elétrico andar 10 milhas.

Se calhar, não me apetece de facto usar IA.

Perante a evolução do modelo, é claro que nós – como consumidores ou mesmo cidadãos – vamos ter no futuro próximo telemóveis ou qualquer outro aparelho que nos permita falar por voz com um modelo de IA personalizado e concebido numa base de resolução complexa de problemas: só que este futuro próximo implica um uso de energia 43 vezes superior ao atual. É a diferença entre uma sociedade com smarthphones vs. a sociedade com algoritmos de IA ligados à nossa mente de forma direta ou indireta e com quem iremos falar constantemente (sim, como nos filmes).

Portanto, temos aqui um facto – IA e o seu consumo de energia – que passa por completo ao lado da narrativa das energias alternativas. Se este é o caminho, se a IA faz parte mesmo do futuro, então não me parece verosímil apostarmos nas energias renováveis, porque não têm a capacidade para alimentar a sociedade normal mais a sociedade subterrânea que é o mundo IA, os centros de dados, os servidores só para IA, etc. Com este nível de consumo, a IA só é sustentável se o nuclear estiver em cima da mesa de novo. Porque, lamento informar, a IA está neste momento a dar vida nova às centrais de carvão. Não por acaso, isto ajuda a explicar uma coisa: as emissões de C02 estão a disparar por causa da IA. Mas onde é que está o escândalo? Onde é que estão as Gretas do mundo? Onde está o debate? Isto está a ser feito aqui e agora debaixo do radar do debate e da indignação.

Seja como for, se o caminho é a IA, só há uma forma de conciliar isso com baixos níveis de C02: nuclear.

E é o que está a acontecer.

Para terem uma ideia: na Pensilvânia, uma velha central nuclear está a ser reativada e toda a sua energia – suficiente para 800 mil casas – vai ser vendida só para a Microsoft. Conseguem imaginar este mundo? A Amazon quer fazer o mesmo na mesma zona. Há quem diga que só os EUA precisam de 35 centrais nucleares novas na rede (novas de raiz ou reativadas) para responder às necessidade de energia.

Neste sentido, é a IA que está a impulsionar a revolução de energia que são os SMR (small modular reator), reatores de nova geração, muito mais pequenos, mais fáceis de montar e mais baratos. A Oracle tem programado um data center alimentado por três destes pequenos reatores, que em breve revolucionarão a maneira como produzimos e consumimos energia. A Microsoft e Bill Gates estão no mesmo campeonato dos novos reatores. É uma revolução no mundo nuclear; há 50 anos que não havia nada de novo neste campo: agora há.

Não é por acaso que, na semana passada, o Banco Mundial anunciou que vai deixar de boicotar energia nuclear e que financiará de novo centrais nucleares. Debaixo da pólvora da guerra, esta foi a notícia da semana passada. O boicote durava desde 2013. O boicote não fazia sentido, atenção. A questão é que o regresso ao nuclear está a ser feito de forma ínvia, sem debate, à força, à pressa porque dá jeito aos tech bros.

Em resumo, este facto que está a passar por completo ao lado do debate leva-nos a três perguntas que estão por fazer.

Primeira: como é que o nuclear está a passar de vilão a herói desta maneira? Eu não tenho nada a opor ao nuclear, sempre fui defensor do nuclear. O meu problema está com as narrativas políticas. Até há muito pouco tempo, os estados foram forçados pela agenda verde a abandonar os seus reatores; Alemanha e Espanha são bons exemplos. Mas agora, pouquíssimo tempo depois ou mesmo em simultâneo, são as empresas que fazem o nuclear voltar sem sofrerem qualquer protesto ou crítica; é como se isto estivesse a ser feito debaixo da mesa e não está.

Como é evidente, a Alemanha deve voltar ao nuclear, a Alemanha não é menos do que a Google, parece-me.

Segunda pergunta. Tenho de repetir, lamento, porque é demasiado grave o que se está a passar. Se é este o caminho, então as energias renováveis não serão uma redundância? Uma inutilidade? Não me parecem compatíveis estas duas narrativas. Ou seguimos uma, ou a outra. E parece-me claro que as coisas vão no caminho da IA.

Acrescento uma terceira pergunta: se a Meta, a Amazon ou a Microsoft têm centrais nucleares, é óbvio que países médios como Portugal também precisam. E o nosso país tem aqui um dado muito específico: Portugal é central no mapa dos cabos subaquáticas que alimentam e ligam a internet; somos um ponto de amarração central desses cabos. Mas, para aproveitarmos mesmo a sério este potencial, temos de criar centros de dados e servidores de IA. Para isso, precisamos de uma fonte de energia potente e estável.

Um abraço e bom futuro de ficção científica.

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