Boa tarde,
Porque é que Karl Popper dizia que a televisão pode ser uma ameaça à democracia? Entre outras coisas, porque cria perceções emocionais deslocadas da realidade. A imagem puxa pela emoção; a leitura puxa pela razão.
Por exemplo, a existência de imagens do 11 de Setembro desviou emocionalmente os EUA dos seus verdadeiros inimigos. O ataque às torres é (foi) uma gota de água estrutural no sistema internacional. Só que a imagem de um único evento tem um poder emocional tremendo; tem a capacidade para criar erros de cálculo, porque ignora os processos históricos que não se veem em imagens.
Dou dois exemplos do nosso tempo, do nosso dia a dia.
FACTO DO CONTRA: nunca foi tão seguro andar de avião
No último ano e picos, temos assistido a um fenómeno bem representativa do que estou a dizer. Como há uma câmara (telemóvel) em cada esquina, nós ficamos logo a par das imagens obviamente dramáticas de um avião a cair. Gera-se falatório. As televisões pegam nas imagens. Aparecem pilotos e “especialistas” a explicar o que se terá passado Pior: começa uma conversa – até nas televisões – sobre superstições e alegados lugares (11A) com poderes mágicos para salvar uma pessoa de um acidente aéreo.
Sucede que nunca foi tão seguro andar de avião. Os acidentes aéreos eram muito mais comuns no passado; na segunda metade do século XX ou mesmo no início deste século, o número de mortos por desastre de avião era muito maior do que o atual; nunca esteve tão baixo.
Nos anos 70, o número de mortos por ano andava na casa dos 2000/2500. Agora estamos na casa dos 200/300.
Os números, seja qual for a fonte, vão sempre no mesmo sentido: diminuição, menos acidentes, menos mortos, menos feridos. Em 1982, tínhamos cerca de 3500 acidentes aéreos; em 2019, o número tinha caído para a casa dos 600.
FACTO DO CONTRA: o número de mortos provocados por desastres naturais nunca foi tão baixo
No mesmo sentido, podemos sublinhar o abismo entre realidade e perceção no campo dos desastres naturais. A tal presença de câmaras em todo o lado, que nos dão imagens dramáticas e detalhadas sobre o medo e a morte, cria a ideia de que nunca tivemos tantas mortes causadas por incêndios ou cheias. Até porque estas imagens encaixam na grande narrativa das alterações climáticas. A natureza está a vingar-se num apocalipse – é a mensagem implícita ou mesmo explícita.
Aliás, os políticos procuram logo essa narrativa que os iliba dos erros, como se viu nos recentes incêndios na Califórnia. Não foram provocados por alterações climáticas mas por erros políticos graves na gestão prática da res publica.
Sucede que nunca tivemos um número tão baixo de mortos provocado por desastres naturais. É um pouco estranho o que estou a sentir: estou a dar boas notícias, mas sinto-me no lado minoritário do espaço público. Chegámos a um ponto em que dar boas notícias é que é ser punk, é que é ser rock, é que é pensar de forma heterodoxa. Mas a verdade é esta: o nosso número de mortos em desastres naturais é baixíssimo quando comparado por exemplo com os anos 60 ou com toda a primeira metade do século XX.
Há que suspender o desejo permanente de Apocalipse.
Um abraço,
Henrique Raposo