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6 factos que mostram como a violência doméstica está em sua casa (mesmo quando não se vê)

Boa tarde,
Todos os dias vemos notícias sobre violência doméstica. Todos. Há uns anos, numa crónica, fiz as contas e percebi que, per capita, os homens portugueses são mais violentos do que os americanos, por exemplo. Brandos costumes, ah? Sistematicamente, há campanhas de sensibilização para o assunto. A mais marcante, parece-me, foi feita na semana passada pela Rádio Renascença liderada pelas 3 da Manhã.

Mas a questão é que a agressão física é a manifestação criminosa de uma cultura muito mais lata; ou seja, a minoria de homens que agride e mata não vem do inferno, não são encarnações terrenas e tugas de Lúcifer; estes homens vêm de uma cultura que é mesmo patriarcal e que dá ao homem a ideia de que deve ser servido e que a mulher deve servir. Todos os relatos das mulheres ouvidas pela Renascença, desde a cidadã anónima até à artista, vão no mesmo sentido das grandes reportagens sobre o tema: quando deixam de servir – desde a cama à mesa – as mulheres passam a ser agredidas. O não servir é desculpa para a agressão. E esta cultura – a mulher serve, o homem é servido – está por todo o lado e todos nós somos coniventes com a dita, direta ou indiretamente. Basta não questionarmos.

Deixo-vos seis factos que mostram isso.

Primeiro. Quando um casal descobre que vem aí um bebé, ele vai para os copos com os amigos do trabalho; ela fica cheia de preocupações. Porquê? Porque sabe que a sua carreira vai travar a fundo. Chama-se a motherhood gap. A carreira delas e deles é igual até ao primeiro filho; as mulheres não são penalizadas no mundo laboral por serem mulheres, não há "gender gap" mas “motherhood gap”. Depois do primeiro filho, sim, há uma queda abrupta na folha salarial dela, e no acesso a cargos de chefia; porque se convencionou que o pai não pode deixar de trabalhar para ser ele a ficar em casa nos dias de doença do filho (nem que seja a 50%, partilhando esse fardo com ela). Assume-se que é ela, a mãe, quem tem de abdicar de dias de trabalho para servir o filho e por arrasto o marido. Cinco anos depois do parto, porque é que é ela, e não ele, quem fica em casa a cuidar do filho por esta ou aquela razão? É assim em Portugal e noutros países, deste lado do oceano e do outro.

Segundo. É o mesmo raciocínio aplicado ao cuidado de idosos. É ridículo que se fale no “estatuto do cuidador informal”, porque na verdade estamos a falar de cuidadoras. 85% - dos cuidadores registados - são mulheres. Ou seja, quando o pai ou mãe adoecem, são as filhas e não os filhos que se chegam à frente para servir. O irmão olha para a irmã como a servidora dos pais; é ela, a irmã, quem tem de abdicar de parte da sua carreira e da qualidade de vida pessoal e íntima.

Terceiro. O trabalho doméstico – além dos filhos – é sobretudo das mulheres. Quando as mulheres recusam casar ou ter filhos, é contra isto que estão a protestar, estão a recusar esta divisão de classe dentro do casamento, entre géneros: elas trabalham, eles são servidos. O trabalho não pago e invisível é feminino.

Quarto. Quando há cancro num dos membros do casal, o risco de divórcio aumenta porque muitos homens abandonam as mulheres durante ou depois dos tratamentos. Para mim, isto é uma forma de violência. Cobarde, sim, mas uma forma de violência. De novo, surge a ideia de que o homem não está aqui para servir uma mulher, muito menos uma mulher “danificada”. Claro que a maioria dos casais permanece junto e atravessa o cancro. Um estudo considera que apenas 6% dos cancros causa divórcio, mas esses 6% são sempre causados pelos homens que abandonam a mulher doente.

Quinto. O que acontece quando um homem fica viúvo, isto é, sem a pessoa que o serve diariamente? A tendência para o suicídio do viúvo é incrivelmente mais alta do que a tendência da viúva. Para quem achar que este estudo/link é muito antigo, aqui fica um estudo recentíssimo do ano passado que vai no mesmo sentido. Como é que se arruma a roupa, como se estrela um ovo? É difícil aprender isto aos 70, 60, 50. Para pôr as coisas noutros termos: um viúvo tem 70% mais chances de se matar do que uma viúva.

Sexto. 70 mil homens publicam fotos e vídeos íntimos e sexuais de mulheres, devassando a sua intimidade. Não há uma queixa, não há uma investigação. Como é que perante tudo isto, não há um naqueles 70 mil homens que diga assim, “Pá, isto está errado, vou denunciar”? Nem um. É um estúdio de futebol cheio a partilhar fotos e vídeos à revelia das mulheres envolvidas.

Estes seis factos marcam o dia-a-dia pacífico das famílias, à vista ou em segredo. Haverá mais. Por exemplo, toda a gente sabe que a esmagadora maioria dos “encarregados de educação” são mulheres. E, quando o miúdo está doente, também é a mãe que vai ao hospital ou centro de saúde. Não fixei estes dados na lista porque não encontrei os dados registados. Seja como for, é este dia-a-dia que serve de base à violência doméstica, que surge neste contexto como algo óbvio e inevitável; é esta cultura levada ao seu expoente máximo. Portanto, caro leitor, não se refugie na narrativa confortável de que não tem nada que ver com a violência doméstica.

Até para a semana,
Henrique Raposo

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