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Será que o mundo está mesmo tão violento como se diz?

PHILIPPE LOPEZ/Getty Images

Boa tarde,

Se não se importam, quero continuar o espírito desta crónica: não somos tão maus como pensamos. O pessimismo apocalíptico é uma epidemia intelectual. E os dois grandes equívocos das perceções contemporâneas – ditadas por este pessimismo – são as seguintes: a globalização empobreceu o mundo e o mundo contemporâneo é incrivelmente violento. Hoje quero contestar o segundo ponto, segundo sobretudo Steven Pinker. Lamento, mas, mesmo com a guerra na Ucrânia e com a atual crise no Médio Oriente, não aceito essa tese. O passado, quer o longínquo, quer o recentíssimo, já foi muito mais violento.

Concedo que, antes da guerra da Ucrânia, era mais fácil fazer este argumento: não, o mundo não está mais violento, aliás, nem está particularmente violento. Entre 1989 e 2023, viveu uma das eras mais pacíficas da história, senão a mais pacífica e, mesmo assim, a narrativa do mundo violento estava por todo o lado. O 11 de Setembro, por exemplo, é uma migalha na história da violência.

I.

O conflito entre Israel e o Hamas – segundo o Hamas, repito, segundo o Hamas – fez cerca de 50 mil vítimas. Isso é o número mais baixo de vítimas de todos os conflitos recentes no Médio Oriente. O mais baixo. Só a guerra recente na Síria fez 620 mil vítimas. Não é 50 mil vs. 62 mil, é 50 mil vs. 620 mil.

E as guerras no Iraque? Os números são tão vastos que variam entre 150 mil e 1 milhão. Afeganistão? 170 mil. Muito? Sim, mas na guerra do Vietname o total de mortos está na casa dos milhões.

A atual guerra no Sudão já fez 150 mil vítimas e dez milhões de deslocados.

A guerra civil no Iémen – há dois anos – já tinha causado 380 mil vítimas.

A minha pergunta é: porque é que os mortos que envolvem direta ou indiretamente a estrela de David criam um interesse mediático que outras guerras – muito mais pesadas e mortíferas – não criam?

Os números na guerra da Ucrânia são obviamente sérios (150 a 230 mil do lado russo; 50 mil a 100 mil do lado ucraniano), mas, se fizermos a comparação com qualquer grande guerra do passado, vamos descobrir o ponto central de Steven Pinker: estamos menos violentos. Não vou comparar a guerra da Ucrânia com a II Guerra. Vou só compará-la com outros conflitos médios do passado. Por exemplo, as guerras civis na Jugoslávia nos anos 90, com estados ou forças muito mais pequenas, apresentam números de mortos talvez ainda mais impressionantes. Só na Bósnia, tivemos 250 mil mortos, 35 mil mulheres violadas e mais de 100 mil refugiados. A Bósnia, ao pé da grandeza da Ucrânia e da Rússia, é minúscula. Se calhar, se acrescentarmos as guerras na Croácia, antes, e no Kosovo, depois, vamos descobrir que morreram tantos ou mais jugoslavos nos anos 90 do que ucranianos e russos agora.

II.

Agora deixemos as guerras e concentremos atenções em fenómenos dentro da sociedade ocidental, sobretudo a mais violenta de todas, a americana.

Os mass shootings têm sido uma marca americana dos últimos anos ou décadas. Mas sabem o que está a acontecer neste momento? Estão a zero, segundo alguns. Já estamos em junho e ainda ninguém morreu este ano num mass shooting nos EUA. Isto é uma enorme notícia. Há quem diga que o número não é zero; porém, mesmo os mais pessimistas ou rigorosos não deixam de apresentar o número mais baixo desde que há contagem (início deste século). Isto mostra-nos duas coisas. Primeira: o problema é grave, com certeza, mas não uma “epidemia” e muitos menos necessariamente ascendente; há boas notícias no campo da violência, ela pode baixar. Segundo: há nisto tudo uma face de acaso e aleatório; não se percebe porque é que os números estão a baixar.

Em cima disto, eu gostava de recordar algo que já aqui salientei há talvez dois meses: o número de serial killers nunca esteve tão baixo. Temos números de serial killers equivalente aos tranquilos anos 50, depois do pico que vai dos anos 60 ao início deste século; aliás, esta forma de crueldade está em queda desde os anos 80.

III.

E o que dizer do terrorismo nas sociedades europeias? Já nos esquecemos? Depois da vaga do terrorismo esquerdista, depois dos picos do terrorismo independentista e depois do pico do terrorismo islamita, o terrorismo parece estar em queda na Europa. A época do Bataclan e afins parece – parece – que ficou para trás. O que parecia um problema endémico há poucos anos – terrorismo de muçulmanos europeus – está numa fase descendente.

No geral, no mundo inteiro, há mais pessoas a morrer na queda de aviões do que no assalto terrorista a aviões e, em geral, os ataques terroristas estão em queda em todo o lado.

O meu ponto é: não podemos estar só a valorizar a má notícia, pois corremos o risco de ignorar processos históricos positivos, que, ao não serem valorizados, criam uma atmosfera cultural pessimista e apocalíptica que depois tende a olhar para homens hobbesianos que só falam em “carnificina”, como se vivêssemos nos piores dos tempos. Trump e os seus subprodutos são filhos de uma época com um viés distópico sem sentido e esse viés vem de todo o lado, está no ar que se respira. Não há semana em que não apareça uma nova série distópica e pós-apocalíptica.

Até para a semana.

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