Boa tarde,
Vou hoje repetir para Portugal o esquema mental que apliquei à vitória de Trump: o resultado do Chega não é nada desejável, mas é tudo menos surpreendente. Os sinais estão e estavam na realidade, mas foram e são desprezados ou diabolizados pela atmosfera progressista que se respira na bolha mediática; uma atmosfera que coloca demasiados véus e biombos entre nós e a realidade, demasiados tabus, demasiados temas que não podem ser vistos e debatidos, demasiados temas que só podem ser debatidos de uma dada maneira, caso contrário o debatente heterodoxo é alcunhado disto e daquilo. O Chega cresce nestes tabus e silêncios, está sozinho atrás dos biombos, está sozinho em certas zonas do país, literalmente sozinho. As respostas que dá ou estão erradas ou são perigosas, mas são respostas que o povo ouve. Os outros nem sequer fazem a pergunta. E neste "outros", lamento, também está o ecossistema mediático e jornalístico.
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Os autarcas do PS já tinham dado sinais e, não por acaso, foram trucidados pela ala esquerdista do seu próprio partido, a ala com mais câmaras de eco nos média. Ricardo Leão, presidente da câmara de Loures, terra onde começou o Chega, tem tentado fazer coisas óbvias para desarmadilhar o populismo. Por exemplo, há pessoas que têm casas de habitação social com rendas baixas e que, mesmo assim, não pagam, apesar de terem evidentes sinais de riqueza. Não importa se são brancos, negros ou ciganos. São cidadãos que não estão a cumprir regras e isto torna-se grave socialmente num contexto de crise de habitação. A maioria da população que tem dificuldade em pagar a renda ou a prestação da sua casa olha para esta impunidade e fica obviamente ressentida e zangada. É uma bomba social e eleitoral. Faz sentido portanto despejar pessoas que não pagam a renda social de uma casa que é de todos, até porque há mais gente à espera de casa, há gente que trabalha e que vive em barracas e que podia viver naquela habitação social. Porque é que isto tem de ser logo alcunhado de "racismo"? Porque é que Ricardo Leão foi passado a ferro, sendo apelidado de “xerife”? Se querem desarmar o Chega na realidade dura e crua, convém de facto ouvir Ricardo Leão e não tomar logo o lado confortável e trendy da Isabel Moreira, porque não é Isabel Moreira ou as demais aristocratas do PS que têm de lidar com os choques de classes e de etnias da realidade suburbana.
Porque é que a esquerda que está no pó do terreno é destratada em prol da esquerda da torre de marfim lisboeta?
E há mais autarcas do PS, que, a partir do terreno, têm dito coisas que podem ser desagradáveis à sensibilidade das elites da bolha. Estão no terreno e estão atentos a fenómenos que podem ser de facto corrigidos. Só que estas pessoas são logo destratadas nos média e pelas patrulhas do Twitter e, por arrasto, calam-se e deixam o problema para o Chega. Os problemas têm de ser tratados com sensatez e não com o martelo do Chega, mas para serem tratados temos em primeiro lugar de reconhecer que eles existem.
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As PPP na saúde funcionavam muito bem, segundo todos os estudos e reguladores como o Tribunal de Contas, e serviam duas grandes áreas suburbanas, Loures e Vila Franca, onde o Chega agora tem bastante poder. A esquerda da geringonça acabou com esse serviço público na saúde por birra ideológica e contra a vontade das populações, contra a opinião dos autarcas de esquerda das respetivas zonas. E agora é o que sabemos: os dois hospitais estão caóticos e não servem as populações com a mesma eficácia; há mais dificuldades para estas populações, mais raiva, mais ressentimento, mais Chega. O que nos leva de novo aos autarcas de esquerda que estão no terreno a defender o regresso das PPP. A este respeito, uma nota pessoal e jornalística: leio o “Mirante”, porque é o jornal regional que serve a zona dos meus pais e tios, nos dois lados do Tejo (Vila Franca, Alverca, deste lado; o Ribatejo do outro); vem sempre com o “Expresso” e é a primeira coisa que o meu pai lê. Foi sempre impressionante ao longo destes anos acompanhar a assimetria. Nos grandes jornais de Lisboa, as figuras da esquerda intelectual da torre de marfim criticavam as PPP na saúde de forma abstrata e sem qualquer justificação prática; no Mirante, eu lia os autarcas locais – todos de esquerda – e as populações a defender a PPP de Vila Franca porque funcionava bem. O autarca de Loures, que era do PCP, nunca disse nada contra a PPP. Querem saber o que disse a minha mãe quando a esquerda acabou com a PPP Loures onde ela recebeu os melhores cuidados de saúde da sua vida? "A esquerda em 1977 acabou com a fábrica onde eu trabalhava, agora acaba com a minha saúde". Quando eu escrevo sobre isto, caem os insultos dos costume, não é? Pois, mas insultar-me não abole a realidade.
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Continuando na vida da Grande Lisboa, cujos subúrbios (margem sul e margem norte) têm sido pasto para o Chega. Já repararam que, quando se fala em crise nas escolas/professores e na crise do SNS/médicos, há uma inflação de notícias sobre a Grande Lisboa e que por oposição há boas notícias sobre os serviços do Norte? Porque é que há menos carência de professores no Norte? Porque é que os hospitais do Norte têm uma gestão mais eficiente? Se a região de Lisboa aprendesse de facto alguma coisa com o Porto/Norte, talvez fosse mais fácil viver na Grande Lisboa e por arrasto haveria menos raiva e ressentimento no mercado eleitoral.
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E o que dizer dos transportes transportes públicos na Grande Lisboa? O caos é absoluto e, neste caso, pior do que era há 20 anos. Os transportes são os mesmos de 2000, mas sucede que a Grande Lisboa recebeu nos últimos anos centenas de milhares de novas pessoas – como é evidente, o caos é inevitável e a irritação com este facto não é racismo, é o desespero porque o dia a dia ficou ainda mais difícil. A incompetência do sistema político neste campo é evidente e provoca raiva; uma raiva justa que precisa de uma resposta sensata. Antes do aeroporto, se calhar, a prioridade é uma nova travessia do Tejo e liberalizar o metro e os comboios e os barcos para permitir mais serviços às pessoas, tal como há nos autocarros. E porque é que Medina e Costa apostaram numa linha circular do Metro dentro de Lisboa em vez de esticar o Metro para lá de Odivelas e Amadora?
Se cruzarmos todos estes factos – há muitos mais, mas por hoje chega – fica claro que a Grande Lisboa é, como diz Clara Ferreira Alves, uma cidade inóspita e agressiva, uma tese que sempre defendi e que se torna ainda mais forte quando comparamos com a vida do Norte. Entre Aveiro, Porto e Braga, há mais comunidade, mais família, mais clubes, mais igreja, mais corpos intermédios da sociedade que tornam a vida das pessoas mais fácil: além disso, também têm melhores serviços públicos, desde os hospitais aos transportes.
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A conclusão dos quatro pontos anteriores. Muita gente não quis acreditar na evidência que defendo há anos: o Chega iria crescer sociologicamente nos espaços tradicionais da esquerda, margem sul, Setúbal, Alentejo, subúrbios norte de Lisboa. Porque na verdade esta nova direita radical resgatou para si a nova luta de classes. A esquerda perdeu o faro da luta de classes, perdeu o sentido dos problemas da pobreza, ficou refém de políticas de identidade. É como diz este rapper que morou no morro que fica por baixo do hospital de Loures: o BE é para meninos de Lisboa. A direita do Chega convocou para si esse ressentimento de classe que antes era da extrema-esquerda. Isto aconteceu noutros países, da França aos EUA: as zonas da esquerda saltaram para a extrema-direita.
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Claro que Portugal democrático é uma história de sucesso como aqui defendi, mas as pessoas não andam com um livro de história debaixo do braço, a memória é curta e a sensação económica é fundamental. E a sensação fundamental dos últimos 30 anos – 30! – é de estagnação económica. Em 1995, na viragem de Cavaco para Guterres, Portugal tinha um PIB per capita de 80,9% da média europeia; em 2024 o nosso PIB per capita é de 81,6% da média europeia. Ou seja, estamos há uma geração na estagnação e isso obviamente gera um eleitorado zangado e desesperado por mudança. A grande fatia de eleitores do Chega não são “fascistas”, são pessoas desesperadas por melhores condições de vida, por uma possibilidade de esperança além desta estagnação.
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No ocidente inteiro, o eleitorado clássico desta nova extrema-direita tende a ser mais pobre e menos letrado. É o retrato do trumpista. Pegando nesta grelha, as zonas do PCP e do PS eram as mais propensas a perder votos para o Chega, como está de facto a acontecer. A ideia de que o Chega ia ser sobretudo um problema para a AD e IL, o centro-direita, era um erro de quem vê a política olhando apenas para o parlamento, como se o parlamento fosse um jogo de xadrez isolado da sociologia do país. Sociologicamente, o eleitor do Chega está mais distante do eleitor AD/IL e está mais próximo do eleitor PS. O eleitor do PS tem menos rendimento e menos estudos do que o eleitor da AD (mais rendimento e mais educação) e por isso está mais próximo do retrato típico do eleitor Chega. Há outro factor além do rendimento e dos estudos: de forma geral, os católicos resistem ao populismo.
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Cada vez mais, a classe média tem procurado seguros de saúde e colégios privados, porque se saturou dos serviços públicos defendidos pela esquerda. Ou seja, na prática do dia a dia há uma viragem do país à direita neste ponto, no sentido quase sociológico, num sentido muito prático. Votam com a carteira. Mas queria salientar outro ponto. Quem é que permanece nas escolas públicas? Os mais pobres e remediados, os mais propensos ao ressentimento do Chega. Pois bem: os pais de alunos das escolas públicas estão saturados das greves nas escolas que tornam a sua vida num inferno. Idem para as greves nos transportes públicos. Estas greves, sempre protegidas pela esquerda, são um pasto para a raiva suburbana que alimenta o Chega. O instrumento da velha luta de classes da esquerda é agora um paradoxal e indireto instrumento da luta de classes do Chega.
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Claro que o país precisa de imigrantes. Claro que deve ter imigrantes. Mas isso não significa que não há problemas. Por exemplo, foi no mínimo estranho assistir ao silêncio generalizado dos média em relação a estas queixas das alentejanas em relação a imigrantes muçulmanos. Da mesma maneira, vimos como várias reportagens de fundo mostraram que de facto há problemas no Martim Moniz gerados pela imigração. António Vitorino foi claro: não podemos apelidar de “racismo” todas as manifestações de incómodo em relação a uma imigração tão grande e tão súbita, até porque, como o próprio Vitorino reconheceu, a entrada de imigrantes no tempo de Costa foi pessimamente conduzida.
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Sobre o sul, sobretudo o Alentejo, não tenho a acrescentar ao livro que escrevi em 2016 e que foi considerado maldito por boa parte da esquerda. Pessoas como Francisco Louçã tentaram tudo para desprezar o que ali está escrito, Quem era eu para escrever um livro, ainda por cima narrativo, sobre o Alentejo e que ainda por cima não via a região através da narrativa neorrealista do costume? Está lá tudo. Peço desculpa por puxar a brasa à minha sardinha mas ganhei esse direito por tudo aquilo que passei só por ter dito a verdade dura sobre uma região que é a minha origem.
Boa tarde e até para a semana.