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A série “Adolescência” está a alimentar uma falácia

Boa tarde,

Vamos muito mal se precisamos de uma série para abrir os olhos de políticos e do público; o que confirma a desconfiança de Platão sobre a irracionalidade intrínseca da democracia pura (é por isso que precisamos da República, algo muito superior à mera democracia). A série “Adolescência” tornou-se num fenómeno sociológico e político. Não vou discutir os seus méritos artísticos, que é o principal, diga-se. Uma obra de arte é um universo em si mesmo, é um retrato de emoções humanas universais, não deve ser vista nunca – nunca mesmo – como um oráculo sociológico perfeito sobre a realidade. E é isso que eu estou a contestar, até porque a série entronca num ódio de estimação deste espaço: o espírito apocalíptico, a ideia de que as coisas nunca estiveram assim tão mal, de que isto e aquilo nunca aconteceram antes.

I. Esta violência não é nova e não vem das redes sociais

Sim, há um problema com rapazes incels, isso é óbvio, até com homens incels como alegados humoristas. Mas os incels são uma manifestação de algo que existiu sempre e que não foi inventado pelas redes sociais: a violência masculina de alguns rapazes/homens. A proibição de telemóveis, internet e redes sociais não vai erradicar esta violência, porque é uma marca da condição humana, lamento.

Quando publiquei o meu romance, uma das coisas mais surpreendentes nas reações das pessoas foi esta: muita gente não queria acreditar que aquela violência existia nos rapazes da minha geração. Claro que existia, porque existe em todas.

Estão a ver a maior manifestação de violência dos rapazes americanos? Os mass shootings? Pois bem, isso começou muito antes das redes sociais. Columbine, talvez o massacre mais simbólico, é de 1999. O filme “Elephant”, que conta a história do massacre, provocou um debate acalorado em 2003, tal como esta série está a fazer agora. E, tal como agora, procurou-se a desculpa da alienação: agora critica-se a net, na época a culpa era dos jogos ou dos filmes. Parece evidente que os miúdos de Columbine projetaram o massacre como se fossem personagens de um filme, como se estivessem dentro do cinema. Quer isto dizer que também temos de proibir os miúdos de ver qualquer tipo de filme? Se há suicídios através das janelas, temos de acabar com as janelas?

Também se procurou explicações sociológicas para este tipo de massacre: que é a pobreza, que é a família desestruturada, etc. Mas, como explicou Andrew Solomon (aqui e aqui), nada disso é verdade: muitos destes miúdos vêm de famílias normais, famílias que amam, que respeitam; são casas onde nem sequer há a gun culture. Lamento, mas o mal e a violência não têm uma pegada sociológica óbvia.

Querem mais exemplos? Há uma associação entre estes miúdos incels e a extrema direita. De novo: qual é a novidade? Já não se lembram do “America Proibida” que lançou Edward Norton para a fama e reputação de grande ator? É de 1998. Ou seja, este é um debate muito anterior às redes sociais; o filme continua atual, sim, porque é universal e não relativo a um tempo; pode ser aplicado a 1922 ou a 2022. Não foi a rede social que inventou o nazismo e o fascismo, pois não? Também foram as redes sociais que levaram o KKK a Washington nos anos 20? Também foram as redes sociais que criaram as leis de segregação já no século XIX? E a guerra civil de 1861?

O filme de Norton é uma violência branca, digamos assim. Sobre violência de jovens negros, “O Malta do Bairro” é de 1991! “LA a Ferro e Fogo” é de 1988. Os grandes motins após a morte de Rodney King são de 1992. Aliás, eu gostava de ver motins agora como os de 92: falar-se-ia do fim da civilização todos os dias. Já agora, há uns anos (2011), em Londres, bem antes do boom das redes, houve uma onda de motins.

Querem mais exemplos? Fala-se, e bem, da óbvia misoginia incel. Mas a misoginia de hoje não é pior do que a misoginia do meu tempo. Vejam ou revejam o filme choque de meados dos anos 90, “Kids”, de Larry Clark. Aviso já: precisam de um saco para o enjoo para as cenas de misoginia. Há trinta anos de distância entre o “Adolescência” e o “Kids”, mas o coro das reações é o mesmo: o que vai ser da nossa juventude?, como é que chegámos a isto?, o mundo tem de acordar! Os miúdos não estão bem, dizia-se; culpa-se a música, o walkman, a MTV, o VHS. Agora a geração que se seguiu diz o mesmo e culpa a net e as redes sociais. Isto é um pouco, como dizer?, repetitivo.

Para a mesma altura, há outro filme europeu muito parecido e com o mesmo debate: La Haine.

E reparem que só estou a usar a minha memória como campo de pesquisa. Esta é a primeira newsletter feita apenas de cabeça. Se eu pesquisasse mais um pouco, encontraria ainda mais exemplos em todas as décadas por aí abaixo.

Sim, os incels são um problema para resolver, mas esse problema não é novo e não foi criado pelas redes sociais. Trata-se de um problema que ecoa em todas as gerações. Os miúdos de agora não são mais machistas e violentos do que os seus pais e avós. Talvez até se possa argumentar o inverso. Querem um exemplo? Há menos serial killer agora do que no passado, do que na segunda metade do século XX. O serial killer rebenta em número nos anos 60, atinge o pico nos 70, continua alto até à primeira década do XXI e depois baixa a pique. Neste momento temos números dos anos 40 e 50.

Podemos então parar com a ideia de que estes rapazes e homens são mais violentos do que os do passado? Podemos parar com essa ilusão de que todo o mal vem das redes sociais?

O mal e a violência serão sempre universais, intemporais e sem uma explicação óbvia. Como dizia Gus Van Sant, realizador de Elephant, há mais de vinte anos: “Nobody actually has the big picture. You can’t really get to the answer, because there isn’t one.

Deixem-me acabar com duas ideias adicionais.

Primeira: as raparigas é que mudaram, não os rapazes. E, ao mudarem, ao não aceitarem o que antes aceitavam, as raparigas lançam nova luz sobre os rapazes. Estamos a ver a mesma coisa a partir de um ponto de vista novo.

Segunda: curiosamente a série não aborda duas questões que me parecem fundamentais para o tal mal-estar dos rapazes aqui e agora e para sua cultura de agressividade, os confinamentos covid (o que acontece a um jovem se for encerrado em casa dois anos?) e o acesso brutalmente fácil à pornografia. Na internet, o grande mal para um rapaz não é a rede social, é o porno e o seu potencial desumanizador. E é incrível – absolutamente incrível – o silêncio coletivo que há sobre este assunto; um assunto que, aliás, merece um texto à parte.

Portanto, quer na lente panorâmica, quer na lente mais apertada, “Adolescência” não é o oráculo que por aí se diz.

II. CONTADO NÃO SE ACREDITA

Os estados azuis estão a perder população e assentos no colégio eleitoral

Este segmento continua na prática a newsletter da semana passada. Devido à incrível mentalidade burocrática da esquerda, que torna impossível a governação, os estados azuis estão a perder muita gente, que estão a votar com os pés: migrando para estados vermelhos. Resultado? É esta a projeção para o colégio eleitoral: Califórnia vai perder 4 lugares, e Nova Iorque dois. Minnesota, Illinois, Oregon, Pensilvânia, Rhode Island e Wisconsin perdem 1 cada. Estes estados tendem a ser azuis, até os swings states Pensilvânia e Wisconsin. Quem vai ganhar? Florida e Texas vão ganhar 4; Arizona, Idaho, Carolina do Norte e Utah ganham 1 cada. Como disseram Bill Maher e Ezra Klein há dias, isto parece game over. Mesmo que os democratas recuperem por inteiro a Blue Wall, não conseguem ganhar.

É caso para dizer: boa noite e boa sorte.

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