Boa tarde, caros leitores
Acho difícil considerar Elon Musk um nazi. Em primeiro lugar, o gesto parece-me mais uma manifestação desajeitada de alguém muito desajeitado em público do que um gesto político. Em segundo lugar, se aquilo é nazismo, então isso quer dizer que a esquerda woke que anda há um ano a fazer ou a permitir saudações nazis no ativismo pró Hamas também é nazi.
Portanto, vamos lá por outro lado.
Musk não é nazi, mas pode ser algo pior. “Pior” não no sentido moral, mas no sentido das probabilidades e da verosimilhança.
MUSK PODE SER UM AFRIKANDER
Musk vem de uma família sul-africana; viveu na África do Sul do apartheid até aos 17 anos. Para quem é demasiado novo para se lembrar do apartheid, eis um pequeno resumo: os brancos afrikander (descendentes de holandeses que conquistaram aos portugueses aquele espaço na grande guerra luso holandesa do século XVII) são superiores aos negros, não pode haver qualquer tipo de mistura sexual ou social entre brancos e negros; a experiência do colonialismo português que gerou o mestiço é vista aqui com enorme nojo e incompreensão. Uns mandam e vivem nos melhores sítios, outros obedecem e vivem em barracas e nada disto deve causar indignação, porque é apenas a fórmula normal, é apenas a natureza a funcionar.
E sabem o que é ainda mais preocupante? É que Musk não é o único barão sul-africano na órbita do MAGA e de Trump. David Sacks, Peter Thiel e Paul Furber são todos figurões do trumpismo neste momento e têm todos raízes no apartheid afrikander. Lamento, mas as semelhanças entre o nativismo trumpista e o apartheid não são, portanto, coincidência.
David Sacks é um “ventura capitalist” que se tornou lobista de Trump; nasceu e cresceu na África do sul do Apartheid e, a partir dos 5 anos, passou a viver num dos estados dos EUA mais parecidos com aquela velha África do Sul: Tennessee.
Peter Thiel é outro dos magnatas das novas tecnologias, estudou na Ivy League; nessa época, dizia aos colegas que o apartheid funcionava. O seu pai fez parte da equipa clandestina que procurou urânio para um programa nuclear da África do Sul afrikander.
E Paul Furber foi identificado por duas equipas forenses do campo linguístico enquanto o original QAnon, a teoria da conspiração que está no coração do trumpismo.
Este é um caminho muito mais interessante do que as habituais acusações de fascismo ou nazismo, até porque não há nada mais parecido com a África do Sul do apartheid do que o sul dos EUA, o sul que viveu em segregação até aos anos 60. Aliás, há uma comunicação explícita ou implícita entre o nazismo, entre o sul-americano da segregação e o apartheid sul-africano. É um triângulo em comunicação racista. O racismo americano dos confederados e depois da segregação foi uma das inspirações de Hitler. A codificação legal do apartheid no sul da América era um sonho para os nazis e para qualquer sul-africano afrikander.
Ora, qual é a essência primordial desta nova Alt Right americana que está no coração do trumpismo? O regresso à segregação, à separação entre brancos e o resto, o regresso ao (alegado) direito de viver sem negros, mestiços ou judeus por perto, o regresso do direito ao racismo, no fundo, é o regresso à ideologia dos confederados que perderam a guerra civil do século XIX ou um regresso aos defensores da segregação até aos anos 60 do século XX. Tragicamente, isto encaixa no “racismo” intrínseco das “políticas de identidade” da esquerda. Dentro dessa lógica, o Alabama diz que qualquer esforço para acabar com o racismo no Alabama é em si mesmo racista, porque a maioria da população quer viver em segregação. Repito: este era o argumento dos sulistas confederados. Se a maioria da população escolhia democraticamente a escravatura, quem era o Lincoln para contestar isso? Então se cada estado escolhe democraticamente x ou y, porque é que o estado federal quer impor a sua vontade? Para uma desmontagem desta lógica, nada como reler Harry Jaffa, que, pelos vistos, volta a ser atual.
Portanto, sim, Musk pode ser algo pior do que nazi; é pior porque é verosímil, porque é uma ligação histórica que faz sentido. Ele pode dizer, e bem, que o reductio ad hitlerium está esgotado. Mas o filão que é explorarmos o lado afrikander de Musk só agora começou. Para um sul-africano com nostalgia do apartheid, o trumpismo representa uma esperança: o regresso da segregação se cada estado assim decidir democraticamente. E, para completarmos este círculo, convém dizer que o Supremo Tribunal americano está neste momento nas mãos de juízes que defendem este princípio confederado. O fim do Roe vs Wade (no campo do aborto) é isso que representa, pois os juízes disseram que o direito ao aborto deve ser decidido por cada estado, impondo assim a ideia confederada, a dos Estados Desunidos da América: se a democracia de cada estado votar contra o direito ao aborto, então deve ser essa a lei.
É fácil imaginar isto aplicado à segregação.
É fácil imaginar isto aplicado à ideia de que um homem, só por foi eleito, não pode ser criticado e tem direito à impunidade – ah, espera: isso já aconteceu.
Não, Peter Thiel e Musk não são anti democráticos, podem até usar a democracia contra os princípios da liberdade e da igualdade, os princípios dos confederados sulistas que tiveram poder durante séculos (até 1961). O regresso da confederação, ainda para mais suportada no poder e na imaginação de africakanders, não é uma teoria da conspiração; é um caminho que está a ser feito. Neste momento, a minha grande esperança é olhar para a grande diferença entre a América de 2025 e a América de 1860 e talvez 1960: mesmo nos estados vermelhos, boa parte das grandes cidades são sempre azuis, e isso impede o regresso do fantasma da guerra civil. Não haverá guerra civil enquanto todas as grandes cidades forem do “norte” liberal. Mesmo em estados como o Alabama, Tennessee, Missouri, as cidades como Birmingham ou Nashville ou St Louis são azuis. Cidades fundamentais no imaginário sulista da guerra civil, Charlotte (Carolina do Norte), Charsleston (Carolina do Sul), Atlanta (Geórgia) são hoje em dia bastiões azuis. Só conheço um estado vermelho sem cidades azuis, aliás, sem um único condado azul: Oklahoma. No Texas, todas as grandes cidades são bastiões azuis, Houston, Austin, Dallas e San António.
Enquanto essas cidades permanecerem azuis, a distopia não se completará.
CONTADO NÃO SE ACREDITA
Se a IA precisa de energia, porque não voltar em força ao nuclear?
O czar para a energia de Trump disse que, tendo em conta a quantidade absurda de energia exigida pela nova IA (inteligência artificial), os EUA têm de voltar em força aos combustíveis fósseis, senão serão ultrapassados pela China.
Em primeiro lugar, convém registar que a emissão per capita de C02 nos EUA caiu para níveis do tempo da I Guerra Mundial. É um sucesso brutal que – mais uma vez – não tem espaço nas narrativas.
Em segundo lugar, se a IA precisa de eletricidade e se os níveis de C02 estão a cair devido ao corte nos combustíveis fósseis, então porque é que não se avança para a energia nuclear, que se encontra estagnada há décadas? Há uma nova geração de reatores (muito mais pequenos e eficientes) à espera. Isto é o futuro, não o “drill, baby, drill”.
Até para a semana,
Henrique