Bom dia, caro leitor.
Este espaço foi construído para combater as perceções ou as narrativas que não têm tradução real nos factos. Uma das narrativas vigentes que é bastante irritante, devido à sua distância para a realidade, é a ideia de que a Rússia está a vencer a guerra. É muito comum ouvirmos esta tese na voz de comentadores e políticos ocidentais; o que é estranho, dado que isto só pode fazer sentido se observamos a realidade através da propaganda russa; é o mesmo que aceitarmos a visão do mundo russa. Como a população russa vive numa bolha surreal, como os russos acham mesmo que não existe democracia em lado nenhum (acham que isso da democracia é um conto de fadas), Putin pode fazer qualquer spin e consegue passar por vitorioso. Mas não é esse o nosso papel. O nosso papel não é dizer que, dada a força da realidade paralela em que vivem os russos, Putin pode transmitir a percepção de que venceu.
Não.
Há critérios objetivos que se mantêm, independentemente do spin e das vibes do momento; spins russos, vibes ocidentais. E a vibe do momento vai no sentido de um certo derrotismo ocidental, que encaixa noutra grande narrativa aqui criticada muitas vezes: a tendência ocidental para o apocalipse. Sucede que esse derrotismo não faz sentido. É algo que só pode fazer sentido, repito, em cabeças moldadas pela propaganda russa e dos seus aliados de extrema direita aqui na Europa.
(Este é um dado muito perigoso e que merece newsletter à parte: é de facto assustador verificar que há demasiada gente à direita com ligações até monetárias com a Rússia, tal como à esquerda há demasiada gente com ligações até monetárias com os petrodólares do fascismo sunita que sustenta o Hamas, entre outros grupos jiadistas; mas, por hoje, vamos centrar atenções na narrativa – popular à direita – de que a Rússia está a vencer).
I. FACTO DO CONTRA
Qualquer coisa além de uma vitória em menos de um mês era (e continua ser) uma imensa derrota para Putin
Esta guerra está a ser uma gigantesca derrota para a Rússia; eis dez factos nesse sentido.
- Uma “operação especial” que devia durar três dias já vai em três anos de guerra. A resistência de Kiev, logo nas primeiras semanas, é uma derrota russa que ficará para sempre registrada na história das sagas e lendas da guerra.
- A Rússia já perdeu 760 mil homens na Ucrânia. É muito acima do preço que a Rússia comunista pagou no desastre que foi a invasão do Afeganistão nos anos 80. Aliás, não posso deixar de ver uma repetição histórica: o desastre do Afeganistão foi fundamental para a queda da URSS em 1989-91. Em 2025, podemos estar próximos desse cenário. Putin não aguenta outro ano como 2024. Só em 2024 estima-se o número de baixas russas em 420 mil. Para termos a dimensão deste número, devemos lembrar que os EUA, em quase 20 anos de guerra no Iraque, perderam apenas 4500 soldados. Repita-se: a Rússia em três anos perdeu 760 mil homens na Ucrânia; os EUA 4 mil e tal no Iraque em duas décadas.
- A economia russa está tudo menos sólida. As taxas de juro são absurdas (23%), e a inflação está nos 9%. Mesmo com toda a propaganda, os russos têm medo de um novo colapso económico como aquele que viveram nos anos 90.
- A Ucrânia até conseguiu invadir espaço russo, Kursk; algo altamente simbólico (é a primeira vez que a Rússia sofre uma invasão desde 1941) e altamente decisivo nas negociações de paz do futuro próximo.
- Além da mediocridade da campanha em terra, a marinha russa foi humilhada no Mar Negro. As exportações ucranianas (sobretudo os cereais) não foram afetadas, o que foi fundamental para manter o preço do pão em níveis aceitáveis na Europa. Recorde-se que a estratégia de Putin passava por asfixiar o cabaz de bens essenciais da Europa, liderado pelo pão obviamente. Falhou por completo: pelo menos 15 dos seus navios foram afundados ou danificados por drones ucranianos.
- A reviravolta na Síria é outra humilhação: Moscovo foi incapaz de proteger o seu aliado, Assad. Putin não tem tropas suficientes para derrotar a Ucrânia e defender a integridade da Rússia, quanto mais para defender aliados no Médio Oriente.
- Registe-se ainda aquela que será porventura a humilhação mais risível: a convocação de soldados norte coreanos. Seria o mesmo que os EUA pediram ajuda a países como Honduras e Panamá.
- As sanções ocidentais levaram a Rússia para a dependência da China, o que não está a ser salutar para as relações entre Moscovo e Pequim.
- A NATO cresceu na resposta, ou seja, entraram novos países que tinham mantido até 2022 a sua neutralidade, Suécia e Finlândia, dois velhos inimigos de Moscovo no Báltico. O poder militar (e a indústria militar) da Suécia é particularmente formidável.
- Outros países da NATO estão a recuperar ou a reforçar a tradição do serviço militar para rapazes e raparigas. Até Portugal, na outra ponta da Europa, está a reagir.
Como é que, perante este cenário, alguém pode argumentar que a Rússia está a vencer?
II. CONTADO NÃO SE ACREDITA
Lisboa tem 42 vezes mais voos do que uma metrópole africana com 13 milhões de pessoas
No livro “Números que contam histórias”, o jornalista André Rodrigues deixa-nos um facto que parece inacreditável: a capital do Congo, a terceira cidade mais populosa de África (13 milhões), quase não tem ligações aéreas com o exterior. Portanto, na prática, é como se não existisse; a internet, por muito importante que seja, não substitui a interação real. Do aeroporto de Kinshasa partem apenas 13 voos por dia. Uma cidadezinha do Alaska como Barrow (5 mil habitantes) tem 10 voos por dia.
III. LIVROS
Sobre a fragilidade estrutural deste gigante com pés de barro, a Rússia, este livro de David Satter continua a ser magistral. Sobre a mente irracional e mística de Putin, nada como ler este livro de Anna Arutunyan. Sobre a dinastia igualmente irracional e inacreditável, os Romanov, nada melhor do que ler Montefiore. Sobre o supremo irracionalismo que foi o comunismo russo, voltem a ler Montefiore.