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Não, a vitória de Trump não foi surpreendente – 10 factos que os média não valorizaram

Boa tarde, caro leitor,

Na semana passada, assistimos de novo a um fenómeno que é grave para a respeitabilidade dos chamados mass media ou liberal media ou media mainstream, o que quiserem. Como a esmagadora maioria das pessoas deste meio está à esquerda da média, há uma tendência para se confundir um desejo (vitória de Kamala) com a realidade, que é muito mais complexa e caótica e que contempla a possibilidade de vitória de outro lado. Por isso, sentimos naquele dia uma sensação de absoluta surpresa da parte de quem devia estar menos surpreendido, porque o seu trabalho é estudar a sério a realidade. Lamento, mas a vitória de Trump não foi surpreendente. Pode ser triste, mas não é surpreendente.

Eu desejava a vitória de Kamala, seria o meu voto, mas esse desejo não pode invadir a minha capacidade de analisar a realidade. De resto, essa é uma das razões que me levou a abrir este novo projeto, a Contrafactual. E, já agora, se o meu caro leitor quiser mesmo compreender a derrota de Kamala, só tem de fazer uma coisa: rebobinar esta newsletter e reler boa parte dos “episódios” anteriores.

10 factos do contra do historial da Contrafactual que explicam o porquê da vitória de Trump (ou melhor, a derrota de Kamala)

Primeiro: a esquerda tornou-se pessimista, senão mesmo apocalíptica, não tem um discurso político assente na esperança e nos progressos reais e mensuráveis. Ou seja, o apocalipse negro substituiu a velha utopia luminosa, mas o erro continua a ser o mesmo: há um absoluto abstrato que tapa tudo e que impede a perceção das melhorias reais caso a caso. Na política democrática, é preciso oferecer um futuro de esperança com bases realistas, mas a esquerda deixou-se levar pelo negrume do apocalipse e, neste sentido, faz lembrar o pior da velha direita reacionária. Que esperança podemos ver naquele acto que se tornou símbolo da juventude de esquerda: atirar tinta a um quadro num museu? A primeira versão deste apocalipse de esquerda está obviamente no ambiente. Não se pode recusar a ciência das alterações climáticas, mas também não se pode recusar as melhorias na capacidade humana para fazer a sua adaptação, quer através das novas energias e técnicas de pecuária, quer através das soluções de engenharia: nós vivemos num ambiente mediático saturado de desastres ambientais, mas nunca morreram tão poucas pessoas em desastres naturais como agora. Os nossos antepassados morriam muito mais às mãos de cheias, incêndios, epidemias – e eram menos. E estou a falar dos nossos pais e avós, não em longínquos homens das cavernas.

Segundo, isto é, a segunda versão deste apocalipse: a esquerda é incapaz de reconhecer as melhorias nas sociedades humanas provocadas pelo capitalismo da globalização. A humanidade está melhor em 2024 do que em 1960. Até o continente mais pobre, África, está melhor agora do que há meio século.

Terceiro: esta desconfiança em relação ao capitalismo conduz ao desprezo pelos resultados económicos positivos dos presidentes de esquerda. Biden teve ótimos indicadores económicos, mas a própria esquerda é incapaz de ser otimista em relação aos resultados do seu próprio Presidente, porque elogiar a economia capitalista, mesmo quando é gerida por alguém à esquerda, é quase uma mutilação identitária.

Quarto: em articulação com o facto anterior, encontramos a incapacidade da esquerda identitária para falar de economia. Kamala era vaga nesse ponto. As políticas de identidade anularam o pensamento económico à esquerda. Não por acaso, havia uma aliança entre o mundo de Musk e o mundo woke. Essa aliança foi agora quebrada, mas existiu durante muito tempo, porque, para o capitalismo, uma esquerda sem consciência económica é a melhor coisa. É por isso, de resto, que os pobres passaram a olhar não para a esquerda do Partido Democrata, mas para a direita populista do Partido Republicano.

Quinto: a esquerda perdeu a consciência de classe social ou da importância da classe social e da pobreza. Quando temos fome e frio, não importa se fomos gays ou trans, homens ou mulheres, negros ou brancos, somos todos iguais na pobreza e nos interesses gerados pela pobreza. Sabia-se há muito que os negros e os hispânicos estavam a votar cada vez mais em Trump, porque estas pessoas não se veem como negros ou hispânicos, mas sim como classe trabalhadora.

Sexto: quando se fala em homens negros ou hispânicos, entramos ainda mais fundo nos ângulos cegos do wokismo. Fala-se muito dos direitos das mulheres, mas esse tema fica sempre à porta das comunidades negras ou castanhas. Não fica bem, por exemplo, criticar o machismo do rap, não fica bem criticar a imensa misoginia dos muçulmanos. Somos rapidamente alcunhados de “racistas” e, portanto, o tema morre. Mas, além de ser uma incoerência ou cobardia intelectual, isso teve agora consequências eleitorais: se o machismo é uma força do trumpismo, esse machismo não é apenas do homem branco. O homem hispânico e mesmo o homem negro não seguiu Kamala porque ela é mulher, porque vivem em comunidades onde o machismo mais reacionário é estimado e protegido pelo manto do “antirracismo”. Nas semanas antes das eleições, este foi um tema duas vezes repetido aqui na Contrafactual. Enquanto uma metáfora desportiva de Tim Walz é considerada uma parte da "masculinidade tóxica" pelo “New York Times”, toda uma cultura de misoginia presente na música ouvida pelos miúdos negros é um assunto tabu.

Sétimo: a automutilação provocada pelos tabus woke é evidente noutro ponto, a imigração e a fronteira. Kamala e Biden deportaram muito mais gente do que Trump. Nem tem comparação. Kamala deportou mais imigrantes ilegais do que Trump, ponto, é um facto. Mas é um facto tabu para os dois lados. Os republicanos recusam aceitar que um democrata possa ser eficiente na gestão da fronteira. Pior: se Kamala tivesse dito que deportou mais gente do que Trump porque assim teve de ser (não é uma questão de vontade), a ala esquerdista do partido, dominante nos média e nas faculdades, iria rasgar as vestes. Portanto, Kamala calou-se e permitiu que Trump prometesse algo que já foi feito por ela própria.

Oitavo: da mesma forma, a produção de petróleo dos EUA atingiu o pico nos anos de Biden. De novo, não se pode falar disto porque isso incomoda os radicais do partido, que só veem a questão das alterações climáticas. Mas há uma razão para esse aumento: a guerra na Ucrânia e a instabilidade no Médio Oriente. Os EUA aumentaram a sua produção para estabilizar o preço da gasolina; caso contrário, teríamos ainda mais crises, instabilidade e inflação. Mas, claro, não se falou disto e Trump de novo conseguiu prometer algo que já foi feito pelos democratas.

Nono: o radicalismo trans é uma ameaça para o feminismo e para as mulheres. Como tem dito Ricardo A. Pereira, ninguém diz “pessoas portadores de sémen” para substituir a palavra “homem”, mas estão a impor "pessoas gestantes” ou “pessoas com útero” para anular a palavra “mulher”. Além disso, há um escândalo evidente no desporto: ex-homens a competir com mulheres. O tema é silenciado nos média, quem levanta a questão é de imediato cancelado ou diabolizado. Mas não podem cancelar as urnas e as eleições. E o caso Lia Thomas, entre outros, levou muitas mulheres a votar contra o Partido Democrata.

Décimo: o pós-verdade não é só uma realidade da Fox News, também marca o ecossistema “liberal” da CNN e do “New York Times”. Isso ficou clarinho aquando da mudança de Biden para Kamala. A verdade inquestionável antes daquele debate era: Biden está bem; questionar as capacidades mentais de Biden devido à idade é um sinal de trumpismo. Foi assim durante quatro anos, até que o véu da mentira piedosa caiu e a verdade ficou à vista. Problema? Era tarde demais. Além disso, as pessoas viram como, de repente, a verdade passou a ser outra num instante, num ápice e sempre de acordo com a vontade ideológica de uma elite democrata que vai de Hollywood à CNN, passando por figuras senatoriais como Pelosi e Obama. Ficou-se com a clara ideia de que para o mundo da NBC e CNN a verdade é aquilo que dá jeito às elites liberais.

Porque é que não se debateu mais cedo o óbvio ululante: Biden está debilitado pela idade? Porquê? Porquê esta cultura de tabus permanentes à esquerda? O tabu costumava ser uma marca da direita mais conservadora, mas agora é o que define a esquerda alegadamente mais progressista.

Para terminar: o que temos visto no rescaldo das eleições não é positivo. Esta agenda democrata ou liberal, dominante nos média tradicionais, está a falar em “resistência” ou está, no fundo, a dizer que o povo é feio, porco e mau. O mesmo povo que foi glorificado quando deu a vitória a Obama. É preciso mais humildade para ver os factos que estão antes das nossas narrativas. Ao contrário do que pensa, por exemplo, a “New Yorker”, não é apenas o outro lado que está no pós-verdade.

Até para a semana.

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