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Alerta: demasiados negros estão a trocar Kamala Harris por Donald Trump

I. FACTO DO CONTRA

Kamala Harris (negra) é a candidata democrata com menos apoio da população negra

Com a troca Biden-Harris, seria de supor que os democratas iriam estancar este dreno eleitoral, isto é, seria de esperar que a esquerda iria recuperar os eleitores negros que já estavam com Trump. Sucede que, além de não estarem a recuperar quem já tinham perdido, os democratas estão a perder ainda mais negros. Ou seja, muitos negros deixaram de apoiar o partido democrata quando uma mulher negra substituiu um homem branco. Biden tinha 87%, Harris tem apenas 80% dos votos negros. Isto quer dizer que um quinto dos negros está com Trump – é um rombo demasiado largo.

As pessoas não estão fechadas dentro de caixinhas estanques como pretende a esquerda woke, que reduz uma pessoa à sua cor de pele, à sua identidade mais básica e biológica.

Há muitas razões para um negro votar em Trump.

Se olhar para a política à procura de uma política económica protecionista e que impeça a entrada de mais imigrantes, um trabalhador negro pode votar na política económica de Trump, que é anti globalização e anti imigração; é por isso que Trump tem dito que os imigrantes roubam “black jobs”. Um fluxo com mais imigrantes quer dizer que os salários das profissões braçais baixam, porque esse fluxo dá ao capitalismo um exército de reserva de mão de obra que subverte o poder negocial de quem já está no terreno – o velho marxismo ou socialismo defendia este raciocínio; esta esquerda woke de hoje acha que isto é só “racismo”. Eu não sei se a teoria/perceção do exército de reserva bate certo com a realidade, sei que é um impulso económico bastante humano e sindicalista e, estando certo ou errado na frieza dos números, não pode ser destratado como mero racismo - o erro dos “liberais”.

Em resumo, se se identificar como pobre e trabalhador braçal, um negro pode juntar-se a Trump. A variável decisiva aqui é a classe social, e não a raça. Antes de serem negros, são pobres.

Neste campo, convém aqui registar o seguinte: enquanto o eleitor democrata branco, educado e privilegiado é esmagadoramente pró imigração, os eleitores negros, asiáticos e hispânicos têm posições mais ambíguas em relação ao tema. Ou seja, o pobre hispânico ou asiático ou negro é mais anti imigração do que o branco privilegiado. Perante a pergunta “deve o governo aumentar o patrulhamento da fronteira?”, nem 20% dos brancos de esquerda dizem que sim. Mas 45% dos negros e dos hispânicos respondem afirmativamente.

Mais: se se identificar enquanto conservador, o negro também vai votar em Trump na recusa do radicalismo trans ou mesmo na recusa do feminismo ascendente. Aliás, repare-se que a tal “masculinidade tóxica” é muito forte entre homens negros, basta ver a misoginia da cultura rap, ou basta ver a forma como há um preconceito lançado sobre o menino negro que gosta de estudar e de ler; preconceito, atenção, lançado pelos próprios negros num fenómeno de automutilação intelectual e económica em nome de uma alegada pureza identitária e tribal. Uma automutilação criticada por Charles Barkley, que critica a forma como os miúdos negros recusam profissionais normais que implicam estudo (médico, advogado) e só veem “respect” numa carreira desportiva.

(Este é um problema que massacra todos os rapazes pobres de todas as cores e nações; em muito do que escrevo, faço exatamente esta mesmíssima denúncia das amarras da masculinidade tóxica que, na pobreza, cria ainda mais pobreza).

Seja como for, num movimento idêntico a todos os homens de todas as etnias, os homens negros, sobretudo os mais jovens, estão a ficar cada vez mais reacionários, sobretudo na questão da igualdade em relação a uma mulher como... Kamala. Ou seja, antes de serem negros, são homens.

E repare-se que isto não se vê apenas nos negros; nas outras comunidades (hispânicas, asiáticas), a questão do conservadorismo associado à masculinidade alegadamente em perigo está a puxar muita gente para Trump. Portanto, estamos perante um estilhar das narrativas da esquerda deste século. Lamento, mas as minorias étnicas estão a deixar a esquerda e a caminhar no sentido da direita. Porque boa parte destas pessoas recusa precisamente ser encaixada à força nessas categorias identitárias ou mesmo racistas, "o afro-americano", o "hispânico", o "asian american". As pessoas têm várias identidades além da sua cor de pele. Olhe-se para o caso paradigmático dos “tejanos”, que estão com Trump (Tejano é o texano de origem mexicana).

Esta clivagem não acontece apenas na linha economia/classe social e na linha machismo/feminismo; há outras causas como o patriotismo ou meritocracia.

Perante a pergunta “é a América a melhor nação do mundo?”, os brancos de esquerda são a camada mais pessimista e anti patriota, apenas 30% responde que sim. 60% dos negros respondem sim, tal como quase 80% dos hispânicos.

Perante a pergunta, “a maioria das pessoas consegue ter uma vida boa se trabalhar com afinco?”, os brancos de esquerda mais uma vez são os mais anti-americanos, pouco mais de 20% diz que sim. Os negros têm o dobro da crença no ideal americano, e os hispânico o triplo - o triplo.

Tudo isto leva-nos a uma pergunta que merece uma newsletter à parte: não está a esquerda a cometer suicídio quando defende a entrada em massa de comunidades (asiáticas, hispânicas, muçulmanas, negras) que são sempre absolutamente mais conservadoras ou mesmo reacionárias do que a média da população branca? Se adicionarmos a homofobia à questão, até Ta-Nehisi Coates é forçado a passar pela percepção de que os negros são mais homofóbicos do que os brancos.

II. CONTADO NÃO SE ACREDITA

Os radicais republicanos estão na liderança do negacionismo ambiental, isto é, estão na liderança da contestação ao consenso científico atual: que a atividade humana, não sendo a principal força do cosmos e do planeta, não sendo mais forte do que o sol ou oceano, tem já contudo a capacidade para desequilibrar o equilíbrio natural do clima, sobretudo através da combustão que gera c02 a mais.

Há duas coisas chocantes que convém adicionar a isto.

Primeira, estes radicais vêm sobretudo do sul dos EUA. Adivinhem qual é a zona dos EUA mais propícia a sofrer os impactos climáticos? O sul. Por aqui se vê como a percepção e a identidade ideológica - o orgulho - podem ser mais fortes do que a própria sobrevivência física de uma sociedade. Este sul republicano faz lembrar Macbeth: prefere atravessar uma sala cheia de sangue do que admitir o erro.

Segunda, os republicanos que recusam a ciência do aquecimento global enquanto consequência indireta da ação humana são os mesmos que agora estão a dizer que “eles” (as elites, os judeus) têm um poder total sobre o clima; é uma teoria da conspiração que diz que "eles" controlam o clima ao ponto de conseguirem fazer de raiz aqueles tufões que assolam os EUA. Isto prova que o fanatismo fascista é um poço sem fundo, e aqui até junta o clássico antisemitismo com a recusa da ciência. Olhemos para este gráfico: a atividade do homem não preenche nem metade daquela temperatura do oceano, mas é o suficiente para desequilibrar e aumentar a intensidade dos fenómenos. Os tufões não estão a ser inventados por “eles” numa ação direta e propositada (como se fosse possível fabricarmos uma tempestade); os tufões são os mesmos de sempre, só que têm mais força devido a uma consequência indireta e indesejada da ação quotidiana de biliões de seres humanos.

Isto é absolutamente incrível e indicador de que, de facto, uma guerra civil - que pode tomar várias formas - é um futuro palpável nos EUA. As pessoas que não aceitam a ciência do aquecimento global são as mesmas que dizem que "eles" têm a capacidade para aquecer o oceano como e quando quiserem. Estas pessoas, como Marjorie T Greene, não estão nas margens, estão no Congresso e nos media conservadores.


III. ARTE COMO LENTE

Num dos grandes filmes da minha juventude, “Magnólia” (1999), há uma personagem curiosa: um negro que se veste à cowboy e tem um ar republicano. Na época era exótico; agora nem por isso. Sobre a forma como um ethos masculino fechado ligado um orgulho braçal/operário pode automutilar os sonhos dos negros, há que rever o filme “Fences”.

Até para a semana.

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