O slogan "é a economia, estúpido” está seriamente em risco, isto é, a ideia de que as pessoas votam consoante o estado da economia ou de acordo com os seus interesses económicos está seriamente comprometida enquanto variável de antecipação do comportamento político, porque a população ou grande parte da população está a determinar a sua perceção da economia através de lealdades ideológicas. A identidade é neste momento mais forte do que o próprio bem-estar económico, o que tem muito de irracional e até um pouco de suicidário.
I FACTO DO CONTRA
A própria carteira das pessoas está a ser vítima do pós-verdade
O que está aqui em causa é a ideia da “rational choice” assente em critérios objetivos e económicos. Como mostra uma verdadeira história económica como a de Niall Ferguson, esta tese teve sempre perna curta, porque não existe um homo economicus que decide apenas e só na base da racionalidade económica pura e dura. Mas claro que essa racionalidade é uma realidade evidente e até determinou um grande axioma da política pós-45 e sobretudo pós-89, época em que até os trabalhistas se rendem à economia de mercado com o “It’s the economy, stupid” – o famoso slogan escrito por James Carville, conselheiro de Bill Clinton e ainda uma alma mater dos democratas. A ideia é esta: se um governo conseguir bons resultados económicos, as pessoas votam nesse governo. Se não conseguir esses resultados, os eleitores punem esse governo.
Mas as coisas já não são claras assim, e não só nos EUA. Na Alemanha, a assimetria entre ex-RFA e ex-RDA ainda existe, mas nada justifica economicamente a nostalgia pela RDA paradoxalmente consubstanciada no voto na AfD. É uma questão identitária pura, muito para lá da prestação de serviços do estado social ou de eficácia da economia. Em Portugal, quando dizem que votam no Chega para proteger a sua reforma ou o estado social dos imigrantes, as pessoas estão a pôr em causa o seu próprio interesse económico e a sua reforma,porque os imigrantes são contribuintes líquidos da segurança social.
Há dias, num dos grandes talk shows, o Real Time, um indignado (com razão) Ian Bremmer apontou precisamente para este problema, que, bem vistas as coisas, põe em causa a própria essência da democracia e do jornalismo: as pessoas reagem à economia, não através de variáveis objetivas e com impacto na sua vida (juros, variação da inflação, variação dos juros, variação do desemprego, variação do rendimento), mas através de lealdades políticas. A economia hoje está melhor do que em 2020; o produto cresceu mais nos últimos anos e a criação de novos empregos bateu recordes, mas os republicanos pintam um cenário negro quando respondem a perguntas sobre economia, porque recusam aceitar que Biden fez um bom trabalho.
Em 2020, Trump dizia o seguinte: se Biden for eleito, as bolsas vão cair. Não caíram. Aliás, a era Biden foi bastante boa para a bolsa. Mas a perceção do povo trumpista é determinada por aquele ato de fé catastrofista e por uma péssima compreensão do que é uma economia de mercado. Há aqui até um pensamento mágico em ação: pensar que um homem apenas pode destruir uma economia tão complexa e plural como a América é pensamento mágico; tal como é pensamento mágico assumir que é a China (e não os consumidores americanos) que paga as tarifas levantadas por Trump na América.
Esta incapacidade para se aceitar um dado positivo só porque este vem de Biden tem mais manifestações, uma delas já aqui abordada: Biden e Harris expulsaram muitos mais imigrantes ilegais do que Trump, mas este facto é pura e simplesmente ignorado porque os republicanos não querem/podem aceitar que a “fraca” Harris teve pulso forte na fronteira. A verdade factual não interessa, só a sinalização da virtude ideológica.
É preciso dizer que esta cegueira económica causada pela ideologia é mais forte nos republicanos do que nos democratas. Mas os democratas não são imunes. É por isso que em 2016 os media liberais ficaram apinhados de “previsões” que garantiam que Trump ia causar queda dos mercados bolsistas ou uma gigantesca recessão global – aliás, é grave quando economistas como Larry Summers colocam a ideologia à frente dos factos nesta matéria; dirime a autoridade científica, neste caso dos economistas. Este facciosismo que causa irracionalidade económica é visível noutros pontos: os democratas deixaram de usar em grande número o Twitter quando esta plataforma foi comprada por Musk e fizeram o mesmo com os Teslas.
Ou seja, os americanos estão a perder a capacidade de percecionar a realidade económica devido à ideologia, porque não confiam nas instituições que apresentam os dados e no jornalismo que divulga esses dados; as populações estão viciadas no seu algoritmo que reproduz todos os dias a sua “verdade” privada assente em medos e ódios. Pior: são até incapazes de pensar friamente sobre as suas contas familiares.
Na Europa passa-se algo parecido. Já falei da nostalgia (economicamente impossível de sustentar) pela ex-RDA e da miopia Chega. Mas a máxima representação deste fenómeno foi e é o Brexit. Os britânicos, contra toda e qualquer racionalidade económica e de prosperidade futura para os filhos, votaram no Brexit. E as consequências estão aí: escolheram ser mais pobres em nome de um orgulho identitário. Não por acaso, se o referendo fosse agora, o resultado seria diferente.
Esta é a chamada "Grumpy Economy”, baseada mais em sentimentos do que em factos. A “economia rabugenta” não está só associada aos tories que odeiam o mercado único da UE ou aos republicanos que recusam os sucessos da “bidenomics”. Também está na esquerda contemporânea que até recusa os sucessos dos governantes à esquerda. Porquê? Em primeiro lugar, a esquerda intelectual deixou de falar em economia (pobreza, empregos, etc.) e passou a considerar apenas as “identidades“ sexuais e étnicas e, portanto, não sabe falar de economia mesmo quando é para felicitar o seu lado. É uma mudança de fundo na esquerda, que, ao deixar de falar da pobreza e economia, deixou esse flanco para o populismo. Além disso, parece evidente que o Partido Democrata passou a ser o partido dos condados mais ricos e instruídos, o que afasta a sensibilidade do partido das questões da pobreza do dia-a-dia. Passa-se o mesmo em França ou Inglaterra. As partes mais esquecidas e pobres, longe do glamour de Paris e Londres, estão alinhadas com o populismo e não com a esquerda. Basta ver o mapa do Brexit.
Mais: se entramos no campo dos jovens woke, encontramos um culto apocalíptico – ligado ao ambientalismo – que só quer ver coisas negativas ligadas à economia e que, portanto, diaboliza a ideia de boas notícias económicas mesmo quando o presidente é um Democrata. O capitalismo, neste grelha, só pode ser uma arma de destruição do planeta, não pode ser um mecanismo que eleva da pobreza milhões. Já abordámos aqui essa esta miopia apocalíptica em várias newsletters. Como diz Rogé Karma, “para abraçar a ideia de que a economia está bem, um jovem radical teria de abdicar de parte da sua identidade enquanto jovem progressista”, até porque depois esta agenda woke insiste – de forma errada – que a economia só beneficia os brancos privilegiados.
Como diz George Packer, talvez o grande repórter americano da atualidade, isto é um reflexo de um pessimismo brutal no coração da esquerda woke, que recusa a ideia de economia de mercado ou de patriotismo ou de políticas públicas em nome do progresso. Daí a obsessão com a linguagem. A esquerda woke, em vez de tentar o progresso através de políticas económicas concretas, desistiu do progresso e tenta mascarar a realidade através de uma censura ou uma novilíngua. A “prisão” não deixa de ser uma realidade brutal só porque passamos a dizer que um “preso” é uma “pessoa a experimentar o sistema judicial”. O “gordo” não deixa de ter problemas relacionados com obesidade só porque se passa a usar a palavra “grande”. Esta “linguagem pela igualdade” é uma desistência pessimista da realidade, ou seja, um reflexo reacionário e não um impulso progressista; é uma linguagem de uma sociedade que prefere fazer sinalizações de virtude em vez de implementar verdadeiras políticas no terreno.
II CONTADO NÃO SE ACREDITA
Três condados decidem
Na imensidão de país que é a América, parece impossível acreditar no seguinte: três condados – isto é, três círculos eleitorais – decidiram a eleição de 2020 e algo semelhante pode acontecer em 2024. Quando olhamos para o mapa, o cenário é ainda mais incrível: sem estas três tirinhas de terra, a eleição teria caído para Trump. O que coloca em cima da mesa uma questão fundamental: o colégio eleitoral faz sentido na América de 2024?
III ARTE COMO LENTE
O pessimismo apocalíptico desta cultura ocidental, mesmo à esquerda, faz-me lembrar um episódio da Bíblia, o do Caleb. Depois da longa viagem pelo deserto, Moisés conduz o seu povo até à terra prometida. Mas muitos hebreus, habituados à preguiça do pessimismo rezingão, recusam acreditar na boa nova; preferem continuar na lamúria em vez de meter mãos à obra. Moisés envia Caleb como batedor: Vai ver pf se a terra prometida está ou não está ali! Caleb vai e, sim, confirma que há boas notícias, a terra prometida está ali, mas muitos recusam acreditar. Há no tremedismo apocalíptico uma inércia ou uma preguiça que se julga virtuosa.
"I, Daniel Blake" é um filme de Ken Loach que ajuda a explicar porque é que a velha classe operária inglesa votou no Brexit.