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O vegetarianismo é só um modo de vida, não é o “ambientalismo”

Há duas maneiras de encarar o vegetarianismo e/ou veganismo. Primeira: é um estilo de vida legítimo como tantos outros; tem as suas falhas e as suas forças, como qualquer outra escola de pensamento. Segunda: é o único estilo de vida ecológico, devia ser seguida por toda a gente, deve enformar a totalidade da nossa visão do planeta e do ambientalismo. Esta segunda visão, demasiado comum no espaço público, é uma ideologia radical, ilegítima e muitas vezes contrária ao próprio meio ambiente. Na verdade, muitas vezes, não passa de um animalismo mal disfarçado que é contrário ao próprio ciclo da vida e da natureza.

I. FACTO DO CONTRA

As vacas não são o inimigo

Vale a pena começar pelo início. O vegetarianismo é contranatura. Admiro eticamente quem mantém a austeridade alimentar imposta por esta dieta vegetariana, precisamente porque é uma imposição ética à nossa biologia. Mas isso tem custos e objetivamente não é para todos. Somos omnívoros e, dentro desse leque omni, a parte carnívora é fundamental. É por isso que a larga maioria de pessoas que tenta ser vegetariana acaba por desistir: sente um cansaço profundo que deriva da ausência de proteína animal; o corpo vive num défice de vários nutrientes como a vitamina B12.

É difícil e contranatura e, por isso, ao contrário do que se pensava, o mercado vegan estagnou. Neste momento, só 6% dos americanos são vegan ou vegetarianos. Repare-se que a necessidade de carne está na própria história natural da nossa espécie. O homo sapiens separou-se dos outros primatas, porque, ao comer carne de forma tão eficiente, desenvolveu um cérebro superior. O cérebro humano exige muito mais energiado que o cérebro dos outros primatas e isto só é possível com carne. Como tem salientado Nina Teicholz, a nossa espécie precisa de carne e até de gordura animal; evoluiu através da proteína animal e não através dos hidratos, porque a gordura animal tem muito mais energia por massa. A maior densidade da carne permitiu aos nossos antepassados obter a energia necessária no menor tempo possível, libertando-os assim para lá do estado da natureza, isto é, libertando-os para outros aspetos contemplativos da vida para lá da mera sobrevivência.

Como muitas vezes acontece com os radicalismos ambientais, a retórica de um vegetarianismo radical anula os progressos reais conseguidos neste século no campo da pecuária.

A área usada para a pecuária atingiu o seu pico há 25 anos, por volta do ano 2000; de lá para cá, os agricultores tornaram-se mais eficazes. Em 2018, a FAO dizia que as pastagem de gado diminuíram 1 398 593 km 2 – são dois Texas. E isso não se deveu a qualquer revolução vegetariana. A produção de carne aumentou ao mesmo tempo que a área usada diminuiu. Não é um paradoxo: chama-se economia de mercado, ciência, conhecimento. Mas este progresso não entra nas narrativas. Ainda vemos repetida ad nauseum a imagem do fazendeiro brasileiro que faz queimadas para produzir carne, não é? Basta um post de Instagram de um famoso a sinalizar virtude para que isso passe a ser a “verdade”. Mas a verdade, pelos dados da FAO, é que até países como o Brasil estão a conseguir ser mais sustentáveis neste campo: o pico da desflorestação no Brasil já ficou lá atrás (início deste século), e a área de pasto também decresceu a partir de 2005, apesar do aumento do número de cabeças de gado.

A outro nível, há de facto uma passagem do bovino para os galináceos, uma carne que emite menos gases com efeito estufa; todos os estudos vão nesse sentido. Criar frangos ou perus é incrivelmente mais fácil; uma grama de carne de vaca precisa de oito vezes mais alimento para ser produzida do que uma grama de carne de frango. Mais: se a terra usada para produzir vacas nos EUA fosse usada na criação de galináceos, haveria carne para alimentar mais 140 milhões de pessoas a comer carne dentro dos padrões americanos. E depois há a carne de coelho, talvez a mais ecológica de todas. A carne de coelho, porém, tem um problema: para os citadinos, comer coelho é quase tão nojento como comer cão ou gato – um exemplo claro das limitações do animalismo dos citadinos.

E este ponto – a sensibilidade do animalismo citadino – é aqui fundamental, porque torna impossível a compreensão da pecuária bovina. Em primeiro lugar, esta população urbana alegadamente verde não quer perceber uma coisa: a produção de carne de vaca nos EUA duplicou desde 1960, mas as emissões de gases com efeito estufa com origem no gado diminuíram 11%. Mais: muitas vezes é dito que é precisamos de vacas a céu aberto, em pastos livres. Sucede porém que a carne de bovino ao ar livre gera 3 a 4 vezes mais emissões do que o gado dos estábulos. Portanto, se apostássemos só em bovinos de pasto livre, algo que agrada aos nossos olhos urbanistas que romantizam a natureza (estou a colocar-me dentro do problema), nós não só deixaríamos de ter carne suficiente para alimentar a população como estaríamos a contribuir para o aquecimento; além de, como salienta Michael Shellenberger, aumentar a pressão para a desflorestação, que, como já vimos, está em queda.

A questão está portanto na melhoria das condições das vacarias fechadas e é isso que tem acontecido nas últimas décadas, graças sobretudo ao trabalho revolucionário de Temple Grandin, a mulher que mudou para sempre a nossa perceção dos animais e da própria pecuária bovina. Usando a sua sensibilidade de autista, Grandin consegue pensar como os animais e, dessa forma, melhorou as suas condições de vida nas explorações. Ou seja, ela é literalmente a mulher que fala com animais. Não é a encantadora de cavalos, mas de vacas; não é tão poético, mas é mais prático.

Ao viverem de forma mais calma e “humana”, as vacas dão menos trabalho; não é necessário recorrer à violência chocante do passado e a carne é de melhor qualidade, porque não está saturada com as hormonas do stress. Grandin ama animais, mas, respeitando a natureza e a sua natureza humana, não é animalista. Precisa de comer carne. Tal como os indígenas de outrora, faz tudo o que está ao seu alcance para tratar os animais que vai comer de forma... humana. O seu maior feito está talvez relacionado com a grande cadeia alimentar do mundo: Grandin foi contratada pela McDonald’s para revolucionar e humanizar a forma como o gado é tratado a montante da cadeia de produção.

Neste longo processo já com alguma décadas, ela percebeu que a ideia de ter gado à solta não é necessariamente melhor para o gado. Para uma vaca, a previsibilidade de um estábulo é melhor do que a vida na natureza. Um estábulo não tem coiotes. O importante é manter os estábulos limpos, secos e sem ruídos, sobretudo ruídos inesperados.

Este ponto leva-nos à Argentina. Ainda temos o mito de que a carne argentina vem daquelas enormes pampas selvagens e livres. Não. Através do métodos modernos, os argentinos reduziram muitíssimo o uso de terra para a pecuária, o que beneficia a fauna e flora selvagens.

Isto é ainda mais importante se pensarmos no resto do mundo e na caça de animais selvagens. Sem acesso à pecuária do primeiro mundo, os povos mais pobres do mundo têm de caçar para obter a proteína animal, o que conduz a desastres ecológicos. Ou seja, longe de ser uma inimiga do ambiente, como diz o vegetarianismo radical, a pecuária salva e salvaria ainda mais a vida selvagem. Ainda hoje pessoas no Congo, só para dar um exemplo, que comem carne muito raramente – e isso tem impactos na sua saúde e bem-estar. Muitos povos africanos ainda caçam milhões e milhões de toneladas de animais selvagens devido à ausência de uma indústria pecuária. Aliás, a pobreza nutricional do Congo e de outros países africanos é tal utopia vegan – ou melhor, é uma distopia, um regresso a um passado de pobreza absoluta e da consequente doença crónica para os humanos, e um regresso à extinção ainda mais acelerada para os animais selvagens. O ambientalismo não pode querer uma coisa e o seu contrário. Se quer a preservação das espécies selvagens, não pode ser contra a pecuária moderna associada à ciência e à economia moderna.

Há ainda um segundo ponto fundamental nesta questão do gado. A ecologia não se reduz à redução do C02. Na obsessão pela redução de gases que provocam aquecimento, as políticas verdes tendem a esquecer outras coisas: o solo, por exemplo. Por isso, fala-se pouco do desastre ambiental que são as minas de lítio e cobalto (baterias). E, neste campo, é fácil esquecer que os grandes herbívoros são fundamentais para a qualidade dos solos e, por arrasto, da água. Se, de repente, os grandes herbívoros – os tais vilões se olharmos apenas pela variável dos gases – desaparecessem, os solos e toda a vida vegetal e animal teria dificuldades em sobreviver. É a chamada “agricultura regenerativa” com base no gado. Sigo no Instagram um grupo muito interessante de agricultores e cientistas que se chamam“carbon cowboys”; mostram todos os dias que é impossível termos uma ecologia equilibrada sem os grandes herbívoros. Aliás, o nosso modelo de “montado” alentejano é uma forma de “carbon cowboy”: as grandes vacas mertolengas são adubadoras naturais dos solos, que depois permitem a vida vegetal e de outros animais mais pequenos. Em Foz Côa, um projeto de regeneração da natureza começou precisamente com a reintrodução de uma espécie de vaca selvagem geneticamente modificada. Portanto, a ideia de que as vacas são as grandes inimigas do meio ambiente é mais um daqueles mitos que não sobrevive a uma compreensão não radical do mundo. Mais: estas vacas podem ser as grandes inimigos dos fogos.

II. ARTE COMO LENTE

Sobre a forma como o autismo de Temple Grandin lhe deu as ferramentas para compreender a sensibilidade animal, nada melhor do que veste este filme na HBO.

No início do “Apocalipto” de Mel Gibson ou do “Último dos Moicanos” de Michael Mann, os indígenas perseguem um veado para caçá-lo e comê-lo. Mas, quando o abatem, mostram o seu respeito pelo animal que tiveram de matar. Respeitar a natureza implica comer carne. É tal ciclo da vida – já ninguém vê o "Rei Leão"?

Para mim, alguns episódios do Anthony Bourdain eram artísticos, na forma como escrevia sobre outros povos, na forma como confrontava as limitações da nossa visão do mundo urbanita e privilegiada. Quando caçava ou matava um animal, ele estava a educar-nos: a carne não vem já empacotada, vem de um animal e, se não queremos matar e amanhar a carne que comemos, se calhar não temos o direito de a comer.

Até para a semana.

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