Vale a pena continuarmos no tema da emigração, porque é o tema chave, pelo menos até à eleição do próximo presidente dos EUA, de certeza a eleição mais importante deste século no ocidente e talvez a mais importante desde a II Guerra. Seja qual for o resultado, vamos ficar a saber se a ordem liberal que apelidamos de "ocidente”, criada após 45, perdura ou não no tempo.
Esta semana também escrevo contra as minhas perceções ou medos. Sou e serei sempre cosmopolita, acredito na imigração e na emigração, sou filho de migrações, mas tenho receio em relação a um ponto: a resistência cultural que alguns grupos de imigrantes revelam em relação a valores fundamentais do nosso modo de vida, a começar nos direitos das mulheres e dos homossexuais. Povos oriundos do Médio Oriente, Ásia e mesmo da América Latina são por natureza mais reacionários neste campo. Basta pensar na relação entre islão e homossexualidade. Tenho muitas dúvidas e críticas neste ponto, até porque são alimentadas pela inconcebível aliança entre os mais radicais do islão e os mais radicais do “progressismo” europeu e americano - uma absoluta traição dos valores progressistas por parte da esquerda dita intelectual e sofisticada, um tema que me acompanha desde sempre. Mas, se calhar, estou a valorizar em demasia algo que se situa numa bolha e não na realidade.
I. FACTO DO CONTRA
A imigração cria comunidade, logo integração e sucesso individual
Começo com algo que já aqui coloquei numa newsletter anterior: as comunidades imigrantes não potenciam a criminalidade, pelo contrário. Ou seja, a ideia muito comum de que "imigração" é o mesmo que "gueto" tem pernas curtas. É preciso ter cuidado com os outliers. Quando olhamos para as comunidades muçulmanas só através dos radicais terroristas que atacaram o Charlie Hebdo, estamos a concentrar o olhar numa minoria. Seria o mesmo que assumir que todos os homens do sul dos EUA eram KKK, ou que todos os bascos eram ETA, ou que todos os irlandeses eram IRA, ou que todos os comunistas portugueses eram FP-25.
Por outro lado, as sociedades ocidentais de 2024 não são mais segregadas do que as de 1950 ou 1980. Aliás, se pensarmos em casamentos mistos, não há sequer comparação: em 1967, nos EUA, os casamentos mistos eram 3%, agora são 17%. A evolução é notável, apesar das críticas da esquerda woke que defende a segregação e não mistura de negros com brancos. Em 2010, sabia-se que 1 em cada 12 casamentos na UE era um casamento misto (não consegui encontrar dados mais recentes; se conseguirem, pf enviem-me).
Olhemos para outro elemento: a segregação dos asiáticos em relação aos brancos nos EUA não tem comparação com o passado; as coisas evoluíram num sentido notável. Do cinema à tv, passando pela academia e jornalismo, e até no humor, os asiáticos, dos indianos aos coreanos, passando pelos japoneses e outros, estão profundamente integrados nas elites económicas, académicas e culturais dos EUA. Até seria fastidioso estar aqui a dar exemplos.
Ao nível da habitação/bairros, eis a evolução nos índices de segregação entre 1980 e a atualidade nas cidades do centro dos EUA: 41 para asiáticos, 52 para latinos, 75 para negros (uso os dados de Hein de Haas, cap. 11). Em 2010, os números tinham evoluído para 39, 51 e 60, respectivamente. Os autores dos estudoscontinuam a dizer que há injustiça e segregação, mas não podem negar que há uma evolução; e registar esta evolução é a melhor forma de desarmar os profetas da desgraça e da eterna guetização que agrada à extrema-direita. O mundo move-se, e muitas vezes numa direção positiva.
Na Europa passa-se algo parecido. Aliás, tem níveis de segregação mais baixos. Por exemplo, registo sempre com agrado a quantidade de políticos – de todas as cores políticas – que têm raízes imigrantes. Tivemos um PM britânico de uma minoria; em Portugal também. Na Alemanha, o líder dos verdes tem origem iraniana, Omid Nouripour. Uma política alemã emergente, Sahra Wagenknecht, também tem origens iranianas.
Ao nível da habitação, os turcos na Alemanha têm em geral uma taxa de segregação baixa por comparação com a realidade americana, entre os 30 e os 18. Mais: quando procuramos críticas à condição feminina das mulheres muçulmanas na Alemanha e da Europa, as escritoras e ativistas de origem muçulmana lideram a causa – mesmo que isso seja um embaraço para a esquerda woke. Destaco, entre outras, Marjene Satrapi ou a imã feminista Seyran Ates. Estas mulheres fazem lembrar a luta das primeiras sufragistas ocidentais no início do século XX.
Em França, a segregação em Paris é de 12 para portugueses e 23 para argelinos. Na Holanda, a segregação sobe para 40. Os níveis americanos de segregação só existem na Europa em alguns cenários, os marroquinos em Bruxelas, outros magrebinos em Antuérpia, iranianos em Estocolmo. Quer isto dizer que estas cidades ou estes bairros não podem causar problema? Claro que podem. Mas temos de saber distinguir o desvio e o padrão. E o padrão vai mais no sentido da integração. O problema é que a integração é um lento processo que é feito no dia-a-dia e que não aparece nos telejornais; podemos ter milhares de jovens muçulmanos integrados nas faculdades e empresas e isso não abre telejornais. Mas basta que um (1; um apenas) ataque um concerto ou jornal para falarmos disso. É de novo o problema da dramatização das notícias; as notícias enquanto dispositivo que lança emoções fortes e dramatizáveis.
Mas continuemos: olhemos para as listas de medalhados da França ou da Alemanha, estão lá sempre nomes de origem africana ou muçulmana. No passado, desde o império romano, usava-se o exército enquanto fator de integração e de cidadania de quem vinha de fora; hoje em dia usa-se o desporto para o mesmíssimo e salutar efeito. Também se pode olhar para a nossa seleção de atletismo. Os nomes e apelidos são africanos. E, já agora, será que não podemos dizer que, do ponto de vista do ideal liberal e democrata, o Pepe e o Deco são mais portugueses do que o Eusébio e o Coluna?
O que muitas vezes está em causa é classe social e a pobreza, e não a etnia ou comunidade. O Reino Unido é um bom exemplo. Neste momento, a segregação é mais elevada nos paquistaneses e dos bangdadeshianos, porque chegaram há menos tempo. Os negros do caribe e os indianos têm níveis de segregação inferiores, porque chegaram há mais tempo e já tiveram tempo de, através do trabalho e do estudo, subirem um pouco no elevador social, que é também um elevador de integração. Basta pensar na integração dos portugueses em França e nas diferenças entre 1960 e 2024. É um padrão clássico: quando chegam na primeira geração, os imigrantes ficam mais juntos, depois espalham-se à medida que as novas gerações trabalham, estudam e casam com os locais. Os judeus são outro bom exemplo. Viviam em guetos e subiram na escada social em todos os países ocidentais. Aliás, nada do que temos hoje se compara à velha segregação que era aplicada aos judeus até à esquina entre o século XIX e XX.
É por isso que alguns especialistas na matéria falam numa diferença entre "gueto" e "enclave étnico", sendo que o enclave surge de forma natural e positiva. É normal, quando chegamos a um país novo, procurar um bairro com pessoas iguais a nós, facilita a integração e a vida, onde estudar, onde trabalhar. É uma forma de vida citadina normal e orgânica, que é diferente do gueto que segrega à força e através de leis exteriores ou de vontade interior. Muitas vezes, a segregação é auto-imposta através da vontade e da força dos mais radicais dentro da comunidade. O escritor Boualem Sansal tem escrito sobre isso sobre muçulmanos em França. Há dias, um jovem cigano português que entrou na faculdade - contra a vontade da sua comunidade - também teve coragem para falar disso. (Aliás, este tema é fundamental e escapa sempre ao ângulo que esta newsletter defende, é o seu ponto fraco: a auto-segregação por imperativos culturais, a defesa da identidade contra a cidade à volta; e aqui uma minoria étnica não é diferente da velha classe operária branca; e passa-se o mesmo com os negros nos EUA: se um menino negro demonstrar gosto pelos livros e pela escola, é destratado pelos outros, que dizem que ele “está a ser um branquelas” - um tema fascinante e que merece um texto à parte).
Nos bairros dos imigrantes, o tal empreendedorismo surge com naturalidade, porque há uma tendência para as pessoas abrirem os negócios na rua, as padarias, os cafés, as mercearias, as empresas de construção. E, nesse processo, acabam por dar trabalho aos locais. O MARL de Loures – que recebe o trabalho de agricultores da zona saloia – não existiria neste momento sem os chineses e indianos que têm as mercearias em Lisboa.
É por isso que o estado e o mercado falharam por completo. Se querem um vilão, procurem no estado e no mercado, e não nas comunidades. E explico porquê.
Quando se passou a construir enormes centros comerciais, matou-se o comércio de rua que era fundamental para a integração dos imigrantes. Um centro comercial, no centro ou na periferia, seca a comunidade e, nesse sentido, é muito pior para os mais pobres, a começar nos pobres imigrantes que chegam. Eis o fracasso do mercado. E qual foi o fracasso do estado? As políticas habitacionais. Os projetos de habitação social foram feitos de forma a cortar aquelas pessoas do resto da cidade, porque seguiram uma arquitetura de meados do século XX que era por natureza quase inumana e indiferente ao fator humano e comunitário. É por isso que se criaram “projects” e "bairros sociais", edifícios gigantescos, sem lojas, sem espaços comuns, sem ligação ao exterior, bairros onde ninguém gosta de morar e onde ninguém gosta de entrar. Assim de repente, conheço três grandes livros sobre o fim da cidade - grande e pequena - enquanto espaço comunitário devido à pressão gémea do centro comercial e do “gueto” criado pela câmara municipal: "Inglaterra, uma Elegia", o “Bowling Alone” (que já usei numa newsletter anterior) e o “Vida e Morte das Grandes Cidades Americanas” de Jane Jacobs. E posso ilustrar a tese geral através da literatura, cinema e tv. Quando pensamos na chegada dos imigrantes aos EUA na primeira metade do século XX, o fenómeno é mais orgânico. Lemos “As Aventuras de Augie March” e sentimos a própria biografia de Saul Bellow enquanto filho e neto de imigrantes numa cidade que fervilha na rua, onde a rua é um fator de segurança e integração. Sentimos o mesmo obviamente nos filmes “Era uma vez na América” do Leone e ou no "Padrinho". Isto desapareceu a partir dos anos 60, 70, 80, quando o novo capitalismo do “shopping mall” e quando as políticas camarárias dos “projects” destruíram a ideia de cidade para os pobres.
Sobre este assunto, quero ainda destacar uma entrevista que o arquitecto Renzo Piano deu ao Expresso (Nelson Marques) há uns anos; parece-me o resumo perfeito do problema urbanístico e social que muita gente quer afixar na testa dos imigrantes e não dos verdadeiros responsáveis:
Porque é que diz que as periferias são um deserto emocional?
É isto. É o maior problema do ocidente – está no coração das forças que o ameaçam – e é um problema que cruza urbanismo, classe e pobreza, e não etnia, religião e comunidade. Aliás, se repararem, a revolta dos brancos pobres – trumpismo, Le Pen – é uma revolta também de pessoas que se sentem segregadas, que se sentem esquecida por cidades – as suas cidades – onde não podem morar, onde não podem pagar uma refeição num restaurante e onde às vezes já nem conseguem entrar com o seu próprio carro – porque são carros antigos e poluentes. Em resumo, o problema é a classe social, não a cultura/etnia/religião. À esquerda e à direita, o ocidente deixou de pensar a classe e a pobreza. Esse erro colossal está a consumir-nos.
Para terminar, quero voltar à questão dos valores: cerca de metade dos muçulmanos britânicos considera que a homossexualidade devia ser ilegal. Parece muito? Sim. É um problema? Sim. Mas isto também quer dizer que a outra metade não acha isso,sobretudo os mais novos.
De resto, ser um rapaz gay num contexto muçulmano em França ou UK não será muito diferente de ser um rapaz gay num contexto da velha working class branca. E, já agora, se fizermos a mesma pergunta a imigrantes evangélicos da América do Sul vamos encontrar respostas semelhantes. Mais ainda: em certas zonas dos EUA e da Europa, uma grande parte da população nativa também pensa isto sobre a homossexualidade. Portanto, para quê valorizar apenas a homofobia de metade dos muçulmanos? Até porque temos imãs homossexuais em defesa da igualdade em França. Porque é que no campeonato mediático, um imã gay tem menos atenção do que os islamitas radicais, que tragicamente são escolhidos enquanto líderes e representantes do islão, quer pela esquerda woke, quer pela direita radical? Um muçulmano gay não dá jeito a quem recusa a integração à esquerda e à direita.
II
A ARTE COMO LENTE
A série “Shogun”, ultrapremiada agora nos Emmys, mostra a alta integração dos asiáticos na sociedade americana e do sonho americano.
O filme britânico “Império da Luz”, passado nos anos 80, mostra como o racismo nessa época era dirigido contra os negros das Antilhas e não contra os muçulmanos, uma questão mais recente.
Sobre o fracasso das políticas de habitação que criam guetos para brancos ou negros, podem ver em paralelo aquelas que são – para mim – a melhor série americana, “The Wire” – e a melhor série europeia – “Gomorra”. As duas partem do mesmo fracasso urbanista. Seja negro, castanho ou branco, um rapaz vai entrar em revolta se viver num sítio assim. Esta arquitetura desumana, típica dos subúrbios pós anos 60 e 70, cria monstros. A série “Show me a Hero” (de David Simon, o génio de the Wire e Trème) conta a história verídica de um político local que lutou por uma política de habitação social anti-gueto, pró comunidade, pró mistura social e racial. O preço foi alto, mas funcionou.