Contrafactual

As alterações climáticas não conduzem (nem conduzirão) a migrações em massa

Caro leitor,

Antes de mais, deixo aqui um pedido de desculpa. Na semana passada, a “Contrafactual” não apareceu devido a dois imprevistos: teletrabalho fora de casa com crianças a chapinhar à volta e, sobretudo, um café derramado sobre o portátil.

Vamos então à última "Contrafactual" deste ano 23/24, que está preocupada com um dos maiores mitos que poluem o espaço público; uma falácia alegadamente bondosa que enterra o debate na pressa apocalíptica. Como diz Hein de Haas num livro fundamental, “Como Funciona Realmente a Migração”, as alterações climáticas não conduzirão a migrações em massa. Mais uma vez, este é um mito submerso no eurocentrismo do citadino privilegiado sem noção da história humana. Este ambientalismo é perigosamente apolítico, ahistórico e anti-humano.

I. FACTO DO CONTRA

As alterações climáticas são reais, mas não causarão um apocalipse
A ligação entre alterações climáticas e migrações humanas é errada e até perigosa, porque cria uma pressa sem sentido no debate sobre as alterações climáticas e respectivas soluções, e porque esconde verdadeiros problemas.

De forma simples, os números e a metodologia desta correlação vulgaríssima nos média e no discurso político não batem certo. Este mito é comum e popular porque infelizmente - no modelo de negócio jornalístico dependente dos algoritmos - os media procuram o clickbait e não há nada tão tentador a esse nível como o apocalipse.

Além do desejo de apocalipse, há outra razão para o sucesso deste mito: há na nossa cultura uma incompreensão da antropologia e da história, sobretudo da história da pobreza.

Por exemplo, porque é que no ocidente os urbanitas privilegiados continuam a não perceber porque é que as pessoas pobres do terceiro mundo migram para os bairros de lata, deixando para trás a alegada beleza idílica das aldeias? Como diz Edward Glaeser no livro “Triumph of the City”, o privilegiado da cidade não percebe precisamente o seu privilégio e acha que aquilo que usufrui na cidade é o estado da natureza. Ora, quem vive na pobreza rural sabe que não é assim. Aliás, se me permite a ousadia, o meu romance começa precisamente aqui, na ilustração do último êxodo rural da Europa contemporânea, o êxodo rural dos portugueses da segunda metade do século XX; a família do meu enredo sai da beleza campestre da serra e fixa-se nas cercanias horríveis de Lisboa, porque ali têm acesso mais fácil à saúde, à educação, à liberdade, coisas que o privilegiado da cidade dá por adquirido.

Os subúrbios das cidades, com ou sem bairros de lata, podem ser horríveis para os critérios estéticos da cidade, mas são eticamente superiores às aldeias, porque às portas de uma grande cidade as pessoas vivem melhor do que nas aldeias remotas. Uma favela do Rio é horrível, mas o sertão do nordeste é pior. As barracas de 67 à beira do Trancão e Tejo eram horríveis, mas eram melhores do que o Alentejo ou Beira. Aliás, um bairro de lata em cima da cidade grande é uma terra de oportunidade para quem vem das profundezas da aldeia.

O citadino não compreende este ponto, fixando-se apenas no lado inestético do bairro de lata. Pela mesmíssima razão - a incompreensão da antropologia da pobreza, se quiserem - este privilegiado eurocêntrico e preocupado com a sinalização de virtude ambiental tem pressa em ligar as alterações climáticas com as migrações e os tais "refugiados climáticos".

Ora, financiado pelo governo do Reino Unido, este é o maior estudo alguma vez feito sobre a matéria e desafia essa ideia pré concebida: não, as alterações climáticas não criarão hordas de migrantes climáticos; só há uma correlação fraca, parcial e indireta. Os fatores humanos são muito mais importantes na explicação das migrações.

Factores económicos: procura de mão de obra no destino mais rico, pobreza extrema na origem.

Factores políticos: guerras, perseguições religiosas, anarquia causada por gangues, ditaduras.

Na Europa, nós tivemos vagas de imigrantes causadas pelas guerras no Médio Oriente e na Ucrânia. Nos EUA, o influxo de migrantes resulta muito da anarquia causada pelos cartéis da droga nos países hispânicos a sul da fronteira. Há migrações políticas e económicas, como sempre houve e haverá. A ideia de que a migração disruptiva de milhões só será causada pelo clima é uma ideia que só pode nascer na ignorância eurocêntrica sem qualquer sentido de história.

O Bangladesh costuma sempre aparecer como prova da migração climática. Mas, como dizem Haas e Glaeser, as pessoas migram dentro do Bangladesh em 2024 como migravam dentro da América ou França em 1904, é o mesmo movimento de urbanização, que é independente da variável climática. E, quando saem do país, as pessoas do Bangladesh emigram por causa da corrupção da sua elite governativa.

Como diz Hein de Haas, "com os meus conhecimentos de geografia ambiental, sempre me espantei com a ingenuidade com que algumas organizações aceitam este raciocínio determinista que assume uma relação biunívoca entre ambiente e migração”; é como se o ser humano não tivesse milénios de adaptação ao meio ambiente em perpétua mutação. Mas repare-se que é isto que é imposto aos cientistas que estudam estes assuntos: a cultura de debate académico está aqui contaminada pelo ativismo que recusa heterodoxias, que recusa por exemplo esta ideia simples da resiliência e da capacidade de adaptação do ser humano. Pior: rejeita políticas de incremento de soluções práticas que podiam melhorar essa resiliência local e insistem em grandes medidas e grandes metas à escala global sempre com a ameaça do apocalipse; despreza-se o conhecimento local, caso a caso, em nome da grande narrativa, o grande mito que tem a pretensão de tudo explicar.

É por isso também que temos em cima da mesa esta imensa contradição: o discurso mediático e político está concentrado na ideia de que há mais vítimas de catástrofes naturais, mas isso é falso; nunca tivemos tão poucas mortes devido a catástrofes naturais. De novo: é este o efeito das redes sociais e do algoritmo que isola de forma emocional um acontecimento outlier negativo que acaba por esconder o padrão positivo de evolução. Repito: se a tese apocalíptica estivesse correta, estaríamos perante um aumento das vítimas de catástrofes naturais, mas está a ocorrer precisamente o contrário, lamento. Os números não mentem.

Por outro lado, convém frisar que, ao longo da história e nos nossos dias, as pessoas migraram e migram para sítios ambientalmente perigosos e não o contrário. Migraram e migram para vales e para locais fluviais, migram para os deltas dos rios e para as margens que são regularmente varridas por cheias. Porquê? Porque estes solos são os mais férteis e nunca têm carência de água. É por isso que todos os deltas dos rios - do Mississipi ao Mekong - foram e são fortemente habitados, apesar dos riscos.

Para terminar, há o óbvio problema da pressão política tout court: ou seja, são os governos que deslocam pessoas, não é o ambiente. Estamos a falar de deportações e movimentações forçadas de populações provocadas por projectos governamentais na casa dos 15 a 20 milhões por ano.

Olhe-se para o caso paradigmático das Maldivas: o governo usou a narrativa da migração climática forçada para deslocar pessoas, um objectivo que estava há décadas na gaveta à espera de oportunidade. Porquê? Estamos a falar de um território com 200 ilhas e o governo queria centrar todas as pessoas em apenas 15 ou 20 por razões económicas óbvias. E este caso - que devia ser um escândalo global - não se fica por aqui. O governo tinha ou tem a intenção de vender algumas ilhas à família real saudita no sentido de incrementar o turismo. Eis de novo uma estranha aliança que já encontrámos mais vezes neste espaço: as narrativas do ocidente podem ser idiotas úteis do dinheiro saudita. A subida do nível do mar era uma ameaça para os locais; para os sauditas e para os turistas ricos do ocidente, parece que o Apocalipse não se aplica durante as férias em resorts de luxo que alegadamente deviam estar debaixo de água.

II. CONTADO NÃO SE ACREDITA

Os desertos não estão a crescer
Ouvimos todos os dias: os desertos estão a crescer, um resultado inevitável das alterações climáticas e, em consequência, as populações têm de migrar. Mas será mesmo assim? Não.

Em primeiro lugar, não há provas para o tal crescimento dos desertos. Pelo contrário, há zonas em que o verde está a crescer. Ou seja, a desertificação real e perigosa não está no "deserto que cresce" devido ao clima, o tal mito que está por todo o lado na cultura popular; aquilo que existe é o empobrecimento dos solos produzido pela acção humana e não pelo clima. Como diz Hein de Haas, um geógrafo especialista na matéria, é tentar ver as imagens da terra gretada, da areia e da palmeira seca e pensar que o deserto está a expulsar as pessoas. Mas é o contrário: "a causalidade vai antes no sentido inverso: não é o deserto que está empurrar as pessoas para fora, mas sim estas estão a desistir da agricultura (...) o que pode parecer migração causada por secas induzidas pelas alterações climáticas é, na verdade, uma crise agrícola e ecológica causada pelas pessoas". E aqui entra em jogo, por exemplo, as dramáticas alterações sociais em sociedade como Marrocos. Só que estudar todas estas realidade locais dá muito trabalho; é mais fácil ter um mito que garante ao mesmo tempo a explicação total e o monopólio da virtude.

III. A LENTE DA ARTE

Os mitos
Tenho usado este espaço para mostrar como um romance ou um quadro podem ser lentes soberbas para compreendermos a realidade. Mas também pode acontecer o oposto. Por exemplo, a profusão de filmes e séries pós-apocalípticas alimenta a pressa apocalíptica que aqui critico. Eu, que fui sempre um fã de Mad Max, já estou pelos cabelos com esta obsessão com o fim do mundo, que vai desde "Walking Dead" até "Fallout", de "The Last of Us" até "Leftovers", de "Raised by Wolves" até ao universo manga, e há mais, muito mais. Nunca se viveu tão bem; nunca houve uma civilização com indicadores de saúde tão bons; nunca tivemos tantos direitos garantidos - contudo somos uma civilização obcecada com o apocalipse.

Por outro lado, ainda para cá do apocalipse, séries como “True Detective” (temporada 4) mantêm a ideia falsa de que nada mudou na relação entre empresas e meio ambiente.

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